quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Diário de bordo

Resolvi criar mais este item no blog.
Um item que não exija de mim uma preparação prévia, onde me permita soltar-me e seguir o fluir do pensamento,
onde me exponha numa outra dimensão,
é este que enceto agora,
o diário de bordo.
De momento a minha vida divide-se entre as minhas duas cidades
embora só uma seja realmente e verdadeiramente a minha: Tavira!
O meu ser,
o meu sentir,
o meu cheirar,
a minha musicalidade...
a minha aprendizagem do mundo e da sua valorização foi feita aqui
em Tavira
e através desta cidade, das suas manchas cromáticas, dos seus volumes, dos arredores, dos seus ventos e águas... das suas temperaturas... das suas gentes, enfim....
se me começaram a despontar os humores
e a classificar os sabores.
A outra,
é aquela onde nasci, Lisboa,
aquela que nunca quis conhecer, nem quando para lá fui e lpor á andei a vender cursos de porta em porta,
(não vendi grande coisa porque não estava muito convencida do que queriam que eu convencesse os outros a comprar...)
nem quando lá renasci,
no Ar-Co,
escola que frequento agora de novo, após vinte e um anos de ausência.
Essa coisa de ter nascido fora da minha terra sempre me deu que fazer por dentro.
Sempre achei que Lisboa me tinha roubado qualquer coisa por me ter visto nascer.
Arrancou-me à plenitude das minhas raízes e eu fiquei muito zangada.
E não me tornei menos provinciana lá por causa disso, palpita-me que bem antes pelo contrário,
sinto uma mistura profunda com o horizonte natural destas bandas.
Com o urbano nem por isso.
A Eulália marcou o meu destino com as histórias que me contava na minha infância, quando eu estava doente ou, muito simplesmente, quando ela precisava de fazer qualquer coisa, e por isso era imperioso que eu me mantivesse pelo menos quieta.
Ela conseguia prender minimamente a minha atenção com aquela coisa da Maria dos Reis, a lavadeira que levava os meninos que não comiam a sopa toda ou que se portavam mal.
Antes de me mostrarem na rua a Maria dos Reis de saco às costas, pois eu ainda ía construindo uma imagem de uma criatura humana capaz de levar tanto menino dentro do saco, mas quando a vi, ri-me logo toda por dentro e pensei cá com os meus botões que elas deviam achar mas é que eu era tansa. Como se eu não tivesse já sentido prático e noção do que é plausível de ser verdadeiro ou falso.
Então, pois se andavam sempre a chagar-me a mioleira porque eu marinhava às árvores, corria pelos telhados, queria apalpar as coisas e misturar-me com o mundo...
Quem corre e finta e salta, tem que avaliar os balanços do corpo, medir a força dos músculos... eu competia também com rapazes nestas brincadeiras necessárias a encontrarmo-nos com a matéria que nos rodeia e com aquela que nos enforma...
Com certeza que quando me disseram que aquela senhora meio magra com ar triste, não de má, que vergava uma quase corcunda de fazer as costas aos sacos... eu pensei: Coitados, não vêem que isso não tem jeito nenhum!? Então não se vê logo que o mundo não pode ser assim?
Às vezes ia para a contra loja das minhas tias e escondia-me dentro dos caixotes de papelão.
Ai!? Precisava de respirar fundo de tanto disparate que me envolvia. Depois andava tudo à minha procura e eu ficava ali encolhida a pensar: Já está! Já estou outra vez metida numa embrulhada!?
Ah! A Eulália tinha também aquela da Mulher das Orelhas Grandes que estava escondida na casinha do tanque. Está bem!
Não acreditava lá muito mas o que é certo é que a Mulher das Orelhas Grandes de algum modo marcou a minha infância pois houve fazes em que já adulta sonhei muito com a casinha do tanque, com uma espécie de elefante do tamanho da minha tia Júlia mas gordo como um elefante, de pé, no meio da casinha, com um ar de estátua imperturbável mas que no seu interior continha uma vida com tiques de perversão e olhava com ironia por dentro de um outro olhar que pareciam bocados de vidro que fazem de conta que vêem.
E esse elefante baixo, sem dentes mas com tromba, estava ali, prostrado, no centro, contornado por um lago redondo que circundava a ilha onde o elefante permanecia, cheio de cobras pequenas, muito coloridas, muito cheias de intensidades fosforescentes nos seus corpos longos e finos ou curtos e finos, muitas, diferentes, rabeando por todo o lago, impregnadas de venenos dispares e intensos.
Toda a luz existente na casinha do tanque, nesses sonhos, provinha daí, desse lago entre dois círculos... o que dava ao (à) elefante um ar ainda mais ridiculamente pérfido.
Mas, na vida real da minha infância, eu também não ia lá muito nessa coisa da Mulher das Orelhas Grandes. Achava que já que ela insistia tanto, até que podia ser que realmente existisse uma mulher de orelhas grandes escondida na casa do tanque pronta a fazer mal a qualquer criatura inocente que passasse. Isso para mim, mesmo em pequenina, não fazia sentido nenhum.
Quando embalava mais na cantiga da Mulher das Orelhas Grandes era quando seguia as suas descrições, fazia uma espécie de visualização (a gente sempre fez coisas destas, das maneiras mais caseiras possíveis, só que não lhes dávamos nome nenhum, nem pensávamos nisso, né? Agora é que a consciência dos processos vem a chamar a essas coisas de "visualizações" e são-no na realidade e podem ser conduzidas de milhentas maneiras). Ficava em transe, pois claro, e aí a gente embarca em muita coisa...
Mas a Eulália um dia descobriu o Tarzan!
Contou-me uma história do Tarzan e eu nunca mais quis outra coisa! Tarzan é que era!
Aí, aderi perfeitamente à personagem e depois comecei a ler bandas desenhadas do Tarzan e depois também romances... e depois... colei-me ao bom selvagem solitário cheio de valores.
Esse, toda a gente sabe que era inventado, eu também sabia que o Tarzan tinha nascido da cabeça de um homem. Pois, mas esse que me disseram que era inventado, eu cá achava-o até muito real.
E foi assim que a Eulália, sem crer, marcou definitivamente o meu destino porque me abriu uma porta, tipo luva, para eu encaixar uma directriz estrutural para o olhar.
A Ilha de Tavira fez o resto.
É interssante que estas imagens me venham à cabeça exactamente na altura em que resolvo conciliar-me com Lisboa, em que me disponho a conhecê-la e a re-partir para a minha vida também dentro dela.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Fotografia - Reflexos e Pintura 1

Aqui está outro registo fotográfico de reflexos de barcos de pesca na ria, na Fuseta.

É por estas e outras que eu costumo dizer que ando à procura das pinturas do Criador. As pinturas que já estão dentro das coisas, do mundo real que nos circunda, tão cheio de histórias e lendas escondidas por contar.


Tenho outras que são autênticos quadradinhos de banda desenhada, mas interessa-me mais mostrar a plasticidade da realidade não apenas nos reflexos mas na forma como estes podem estar instalados na realidade, como podem já estar enquadrados "à maneira" nos bocados da realidade onde a gente pousa o olhar.

Ou como esta foto que se segue, que me suscita de imediato mil histórias para desenvolver e onde ao mesmo tempo se pode ver o que o toque da evidencia do real, encarnado naquela tira de lancil, pode implicar na composição.

Fotografia - Reflexos e Pintura

Sinto que as minhas buscas com a máquina fotográfica me conduzem à pintura.
Nos reflexos torna-se muito evidente essa minha tendência para a pintura.
O olhar pictórico.
Aconteceu-me encontrar este reflexo no Sécua, foi registado do lado de lá da ponte (na zona das esplanadas à beira rio, a seguir ao arco, perto da Ponte Romana).
A rua de onde se vê nascer a luz, sobe em direcção às traseiras do Palácio da Galeria.
De algum modo parece uma pintura, mas não é, é um registo fotográfico.

Um registo fotográfico que pode ser reenquadrado:


Pode ser reenquadrado de várias maneiras, dando destaque a partes diferentes do mesmo registo.


Posso querer explorar apenas a luz de permeio quase de um diálogo.


Ou procurar, a partir da luz, um ténue princípio de um rosto.






E estes registos podem apenas iniciar projectos de pintura que evoluem posteriormente para outros caminhos.