quarta-feira, 3 de junho de 2009

Entrevista/reportagem com Jorge Côrte-Real

in "Postal do Algarve"
Abril de 2007


"A foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam... diante da objectiva, sou ao mesmo tempo, aquele que a fotografia julga e aquele de que se serve para exibir sua arte."
Roland Barthes in “A Câmara Clara”






Quando deixar de haver “material fotográfico sensível” a fotografia morre.

Jorge Côrte-Real nasce praticamente com uma máquina fotográfica nas mãos. O negócio de família na fotografia vem de Angola faz mais de 60 anos. Começou com um tio paterno que mais tarde passa o negócio a seu pai (hoje com 80 anos). Já em Portugal, passa para o seu irmão mais velho (já falecido). Actualmente encontra-se nas suas mãos. Como profissional começou a “dar ao dedo” em velhas maquinetas analógicas aos 14 anos. Na firma, inicialmente a sua tarefa era mais parecida com a pintura. Limitava-se a retocar os positivos de fotografia. Não apenas as de maiores dimensões como era habitual, mas em todos os tamanhos devido ao perfeccionismo do pai. Apesar de ser um trabalho mais de pintura do que de fotógrafo, entusiasmou-o e agudizou a sua paixão pela imagem.

Depois do 25 de Abril “caí em Olhão por acaso. O meu pai é natural de Ermesinde mas como na altura não havia lá lugar para nós, acabámos por rumar ao Algarve. Naquela altura mandar revelar um rolo de fotografias a cores demorava no mínimo uma semana. Eram todos revelados em Lisboa. O meu pai abriu o primeiro laboratório a cores no Algarve para onde passaram a ser encaminhadas quase todas as revelações da região. Trabalhávamos praticamente 20 horas por dia. Quase todo o trabalho era artesanal”. Nessa altura os Côrte-Real já tinham preocupações ambientais. “Os químicos não eram despejados directamente nos esgotos. Eram previamente filtrados. O processo permitia não só evitar descargas poluentes mas também a recuperação da prata existente na película fotográfica que era posteriormente vendida, o que nos proporcionava uma mais valia. Hoje em dia temos de pagar a empresas para a recolha das soluções químicas.”



- Desculpem interromper. Isto é uma entrevista?
- É!
- Para que jornal?
- Para o “Postal do Algarve”!
- Mas como? Eu também venho fazer uma entrevista para o “Postal”. Há aqui qualquer coisa que não bate certo!
- Problema seu... o meu está praticamente resolvido.
- Mas o que não está é o meu...


- “Desculpem, não tenho nada a ver com isso nem quero ser mal educado, mas ou fazem mais perguntas ou vou-me embora. Tenho mais que fazer!”

Regista Olhão, o Algarve e as suas gentes há mais de 30 anos.

Jorge Côrte-Real regista Olhão, o Algarve e as suas gentes, em película, até hoje. Isso resulta num espólio considerável. Um testemunho histórico importante que já merecia ser estudado e publicado. No seu deambular de mais de 30 anos pelas ruas desta cidade foi captando imagens do que já não existe e daqueles que já cá não estão. Muitas personagens típicas desta cidade só continuam a existir graças às suas películas religiosamente guardadas.
A primeira exposição de fotografia em que Jorge participa foi uma colectiva em Olhão em 1981, num antigo café à data abandonado, onde hoje funciona a dependência do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa. Exposição que na altura se saldou por um sucesso de público calculado em alguns milhares de pessoas.
Em “A Semana Santa do Senhor Morto em Olhão” - fotos nocturnas de 1984- as fotografias são impressas em tela de modo artesanal, o que lhes confere um ar quase “sobrenatural” quando a cor e o brilho da textura da tela se misturam. Todo o processo é manual, desde a captação das imagens sem flash, até às molduras que ele próprio cola e pinta.
- Desculpe mas agora sou eu a fazer a pergunta!
- Como queira, desde que não me atrapalhe!
- Ora querem lá ver!?
- “Ou se entendem ou vou-me mesmo embora!... Santa paciência!”


Possui material e conhecimentos para ampliar fotos em grandes dimensões

Possuidor de diverso material que possibilita ampliações de grandes dimensões em papel fotográfico, mantém-no guardado numa cave do seu antigo laboratório em Olhão, Jorge Côrte-Real confidencia que consegue “revelar fotos de 3 por 5 metros. Hoje em dia não sei se haverá mais alguém em Portugal com capacidade ou conhecimentos para fazer ampliações tão grandes. Há alguns anos havia laboratórios que o faziam mas agora não sei se haverá.” Truques que aprendeu na mestria do ofício e lhe permitem, utilizando pequenas tinas, revelar fotografias de grandes dimensões. Um segredo que guarda só para si: “há pessoas que têm noções de fotografia e quando vêem fotografias grandes dizem: ‘Isto teve que ser no chão, teve que ser na banheira!’ Não é nada disso! A ampliação faz-se na parede e a revelação em tinas pequenas. São trabalhos que dão muito gozo mas que hoje raramente faço por falta de tempo. Estou sozinho no negócio. O meu pai já tem 80 anos, está reformado, o meu irmão faleceu. Tenho mais irmãos que gostam de fotografia mas não se dedicam a ela profissionalmente”.

A firma Côrte-Real foi das últimas a aderir ao formato digital sem ter abandonando o analógico. Prova disso é que as reportagens efectuadas pelo Jorge ainda são feitas em filme e só depois passadas para digital. Diz-nos com alguma mágoa que “no dia em que a película a preto e branco acabar, a fotografia para mim e para outros que eu conheço, acaba também. A fotografia analógica tem magia! É uma lente mágica! Quando deixar de haver o “material fotográfico sensível” a fotografia morre, perde o interesse.”

Não somos pessimistas ao ponto de pensar que a fotografia acabará quando se deixar de fotografar em película ou quando se deixar de revelar em papel fotográfico. A prova disso mesmo é existirem artistas como ele. E enquanto existirem artistas tão sensíveis e imensamente grandes na sua simplicidade como Jorge Côrte-Real uma coisa é certa: as coisas que eles fizeram ou vierem a fazer, quer queiramos ou não, ficarão para sempre guardados em filme, ou em fotografias amareladas pelo tempo, muito para lá da nossa memória colectiva.

- Só por curiosidade, quem assina a entrevista?
- Claro que sou eu!
- Tu... E porque não eu?
- Porque estou há mais tempo no jornal e porque fui eu quem começou a entrevistar o Jorge.
- Pois vê-se pelos cabelos brancos! Mas também pelo que escreves... não aprendeste nada.
- “Basta! Xau até depois. Mas que seca de entrevista!”
- Jorge... Jorge? Espera lá, Jorge... ainda não...
- Olha, foi-se embora! Tinhas mais alguma pergunta para fazer?
- Eu não. E tu?
- Eu também não... que se lixe! Fica assim...


Paula Ferro versus Henrique Estêvão




Entrevista/reportagem com Daniel Vieira



in "Postal do Algarve"
Abril de 2007









“Pela Arte o homem sente que domina e detém, enfim, o poder de imobilizar e conservar, não só o que viu à sua volta, mas também o que viveu dentro de si.”

RENÉ HUYGHE




A minha verdadeira universidade foi pelos cafés e por aí.


Daniel Vieira começou a gostar de pintura em criança. “O meu pai pintava a vista da varanda e eu gostava daquilo. Um dia apareceu aqui um pintor da velha escola dos impressionistas, o senhor Jorge Falcão Trigoso. O meu pai levou-o para casa. Eu gostava das coisas que ele fazia.” Não achava graça à escola. “ Fui estudar para Faro. Mau estudante! Não estudei nada! Eu gostava era de rua! Voltei para Alte e comecei a pintar com o meu pai. Tinha pr’ aí 12 anos.” Hipnotizado pela vida, não parou de aprender coisas. “A gente aprende em qualquer lado, não é? A minha verdadeira universidade foi nos cafés e por aí. O meu tio Caixeiro, um dia deixou cair uma bilha no poço. O poço tinha o gargalo de pedra. Ele disse-me: Estás a ver? O baraço é mole, não é? Mas tantas vezes foi buscar coisas lá em baixo que furou a pedra! Assim podes ser tu!” Nessa altura já Daniel queria ser pintor e “um senhor, parente do Cândido Guerreiro, disse-me que um pintor tem que saber de tudo. Essa também me ficou na cabeça. Entusiasmei-me e comecei a estudar em Loulé, na explicação do sr. Porfírio Lopes. Um personagem engraçado! (parou a olhar para o ar como quem regressa por instantes a um lugar já inabitável mas que se mantém aceso na sua memória. “Fiz o 2º ano, fui para Lisboa. Fiz a António Arroio à noite. Fui trabalhar na Caixa Geral de Depósitos e matriculei-me na Escola das Belas Artes” que concluiu em 1974.

Quem nos tira a aguarrás tira-nos tudo.

Daniel Vieira fez cursos nocturnos de Pintura, Gravura, Música, (um deles com o professor João de Freitas Branco, “grande maestro, gostava muito de ver as mãos dele!”), Teatro, Expressão Dramática… Em Belas Artes especializou-se em Gravura, “quem nos tira o cheiro da aguarrás tira-nos tudo!” Não pára de estudar. No ano passado voltou para as Belas Artes para um curso de Ilustração porque sentia “necessidade de falar com pessoas novas!” Um eterno jovem. “ Nasci no ano da graça de 1937. No ano em que Picasso pintou a Guerenica”, a última invenção feita em Arte. Agora é muito difícil criar algo verdadeiramente novo. Pinta por necessidade, porque sente coisas e tem que as pôr cá fora. Não trabalha todos os dias a horas certas, funciona por impulso quase visceral. “Bem, estou trabalhando sempre, mas às vezes é só de cabeça!” Tem imensos quadros inacabados e trabalhos terminados que são compostos por várias telas que se completam, como se de um puzzle se tratasse. As exposições que apresenta na Horta das Artes, muitas vão-se renovando e continuando, porque o tema lhe agrada e encontra sempre forma de melhorar aquilo que exprimiu. Isso acontece com a actual, intitulada “Herotices”, “sim, sempre fui virado para o herótico mas agora estou mais descarado!!!” (risos), e se mistura com uma série de outros trabalhos que enchem as paredes da “oficina”, trabalhos seus e trabalhos de outros que por ali passaram. Em simultâneo existe outra exposição, permanente, de gravura (sempre a renovar-se, claro!), esta sobre a música popular, tema que trabalha neste instante também em desenho, aguadas e técnicas mistas e sobre a qual tem umas “esculturazitas” de barro.

Aprende a tocar viola campaniça… pelo telefone!?


Detentor de aguçado espírito crítico e social preocupa-se com as raízes dos hábitos e costumes das gentes que estão na vida. Participou em inúmeros Congressos e Colóquios ligados à cultura e música popular. Investiga nessa área. Tem vários trabalhos publicados como “ Simbologia do Povo Português”, “Música, dança e gastronomia medievais” entre outros publicados e inéditos. Teve diversos cargos públicos. Fez várias recolhas de música popular e desde 1976 tem pertencido a diversos grupos de música popular portuguesa, nalguns como coordenador. Ainda hoje pertence ao Grupo de Música Popular Erva Doce da Casa do Povo de Alte (voz, bandolim, cavaquinho e percussão). “Agora deu-me para aprender a tocar viola campaniça.” Como aprende? “Pelo telefone!” Olha para mim, divertido, “com um amigo meu de Évora, o Virgílio Neve, vou-lhe perguntando coisas e ele vai-me explicando.”
Para o Teatro, Daniel Vieira elaborou cenários, foi actor, encenador, agente cultural, e fundador do Teatro da Estrada, um projecto que já vinha de Messines, criado por Pedro Ramos e outros. Continuou-o e adaptou-o juntamente com a Célia Martins “uma força da natureza. Ela é assim como eu, dá tudo pela Arte, até recusou pertencer a um grupo de teatro onde poderia ganhar dinheiro para se dedicar a isto onde o que ganha é trabalho.”
O projecto Teatro de Estrada funciona dentro da Horta das Artes que “começou de uma maneira muito simples. Quando acabei o curso de Belas Artes fiquei por lá a trabalhar em gravura com o Mestre Teixeira Lopes e com a professora Matilde Marçal. De vez em quando lembrava-me de Alte e tinha as minhas confissões. O Teixeira Lopes perguntou-me se eu não tinha cá uma casa velha onde pudesse fazer uma oficina de gravura. Inicialmente isto era só um armazém onde o meu pai tinha as alfarrobas e as amêndoas. Ele deixou de apanhar alfarroba e amêndoa e eu roubei-lhe a casa. (Risos) Fiz a minha primeira oficina! Depois houve aqui um curso intitulado ‘Pensar Alte’ com sociólogos e arquitectos de vários países. A Isabel Raposo era a comandante da malta. Fez-se um estudo bastante completo e interessante sobre como reconstruir a aldeia. A Isabel Raposo escreveu dois livros, ‘Alte e a roda do tempo’, que conta a história de Alte e da sua arquitectura e outro sobre a maneira de reconstruir a aldeia. O livro foi para a Câmara Municipal de Loulé e durante três ou quatro anos esteve guardado em caixotes. Depois de terem feito estes mamarrachos todos é que fizeram o lançamento do livro!?” Nessa altura constatou-se que era necessário criar uma escola. Havia falta de terreno. “Se fizerem uma escola dedicada às artes gráficas, eu dou o terreno. A Câmara não quis! Então eu pedi dinheiro emprestado, a Isabel Raposo fez o projecto, ainda me vi à rasca com isso, cheguei a dever dinheiro a dois bancos ao mesmo tempo. Mas cá está a Horta das Artes” com exposições e outras actividades culturais que abre diariamente das 11 às 19 horas, não apenas aos visitantes mas também a quem queira ir para lá aprender e trabalhar.
E… fica afinal quase tudo por dizer sobre este homem onde a vida pulsa, lançada em diversas direcções que se completam, em permanente renovação.


Paula Ferro

Entrevista/reportagem com Susana Nunes






in "Postal do Algarve"





Novembro de 2007






"Não há nada mais fútil, mais falso, mais vão, nada mais necessário que o teatro."
Louis Jouvet






Já fiz praticamente de tudo que se possa fazer em teatro.











O seu percurso como actriz foi muito autodidacta.



Susana Nunes sempre gostou muito de cinema e de música mas o teatro passava-lhe ao lado até que veio estudar engenharia biotecnológica para a Universidade do Algarve. No primeiro ano inscreveu-se num “curso de iniciação teatral do SIN-CERA. Tinha 19 anos”, era um curso “de três meses, expressão dramática, o geral, o básico para pessoas que quisessem ter o primeiro contacto com o teatro” orientado por “Vítor Zambujo que é actor e professor. Trabalha com o CENDREV em Évora, é um dos manipuladores dos bonecos de Santo Aleixo. No final fizemos uma pequena apresentação pública a partir de uns textos de Karl Valentim, e adorei aquilo, foi a primeira vez que tomei contacto com aquele tipo de exercícios e foi toda uma nova série de possibilidades que se abriram ali. Foi uma sensação muito clara porque foi muito orgânica, uma coisa desproporcionada em relação àquilo que via que os meus colegas estavam a sentir. Não tinha memória de ter feito alguma outra coisa na minha vida que me tivesse dado tanto gozo, que me tivesse dado tanta alegria fazer e percebi que independentemente do curso que a minha vida viesse a tomar, ia ter de arranjar maneira de continuar ligada ao teatro porque simplesmente não havia outra hipótese. Continuei a colaborar com o SINC-ERA e fiz de tudo: sonoplastia, operação técnica de luz, de som… fui fazendo workshops de teatro, de movimento, de dança… coisas promovidas pelo SIN-CERA e por outras entidades em Faro, em Lisboa… Fui complementando a minha formação, comecei a ver espectáculos, tudo o que tinha possibilidade de ver, aqui, fora, onde quer que fosse. Fui-me envolvendo de uma forma cada vez mais intensa com o SIN-CERA, estive na direcção durante quatro anos e a trabalhar como intérprete, sonoplasta, produtora… durante seis anos. Já fiz praticamente de tudo aquilo que consigo lembrar-me que se possa fazer em teatro. Não fiz direcção, nunca parti para um projecto de raiz para encenar e assumir inteiramente a responsabilidade artistica de um trabalho. Para já não é o que me interessa, também porque não me sinto preparada para o fazer. Acho que convém ir acumulando experiências, ver o trabalho dos outros, observar, conversar, ler, e perceber se tenho alguma coisa para dizer e de que forma é que o posso fazer…”


O teatro não pode apartar-se de uma certa responsabilidade.


Quando está a representar “a sensação que considero mais interessante experimentar é a dualidade. Conseguir estar em dois espaços, em dois estados de consciência em simultâneo…é uma viagem que permite abstrairmo-nos completamente de tudo. Um estado de concentração… essa possibilidade de me conseguir fechar sobre uma coisa, sobre um objecto, sobre algo que estou a fazer, mas em que há um publico, um receptor muito concreto”.
O seu percurso como actriz “passou muito pela auto descoberta, desenvolver o auto conhecimento, foi de uma forma muito autodidacta”.
Para Susana Nunes “o teatro não pode apartar-se de uma certa responsabilidade. Considero que a experiência é intensa para o público, sempre. O teatro é eficaz, de uma forma sub-reptícia para que as pessoas se encontrem e se confrontem com as suas próprias emoções. Essa eficácia e esse poder não podem ser usados de uma forma inocente e quem o faz, tem que saber que tem essa responsabilidade. O teatro pode ser um veículo transformador, de desbloqueio, mas não tem que ser nada massivo. Aqueles pequenos dados que se vão introduzindo, deixando sementes... trabalhar com essa subtileza pode ser mais eficaz do que estar a ‘bandeirar’ explicitamente determinadas ideias”. Creio que o essencial é gerar diferenciação, confrontar o público com novos dados, novas perspectivas e deixá-lo ir para casa germinar”.






Representar em interacção com o público é um bocadinho como estar em queda livre.


É muito diferente representar uma peça onde o público não intervém directamente e representar quando existe contracena com o público, como acontece muitas vezes com o grupo Al-MasRAH, do qual Susana Nunes também é fundadora. Representar em interacção com o público é “um bocadinho como estar em queda livre. Ainda que não tenhamos que esperar uma resposta do público, olha-se para as pessoas e percebe-se exactamente o que elas estão a sentir, percebem-se as emoções, os pensamentos, as reacções, em esgares muito pequeninos, em momentos muito pequeninos de expressão. Se calhar as pessoas pensam que estamos alheios ao que elas estão a sentir, que criamos uma esfera para nos protegermos e não deixarmos que isso nos perturbe ou distraia, mas não, nós estamos atentos, presentes e altamente sensíveis a esse estímulo. Esse jogo é muito interessante, a possibilidade de o espectador, de um momento para o outro, tomar a coisa nas suas mãos, alterar o curso, introduzir um dado novo, agora mando-te esta, o que é que fazes com isto? Não posso ignorar isto senão estrago o jogo. Só que nunca acontece, e é essa linha ténue que o actor vai percorrendo porque sabe que o espectador a maior parte das vezes não tem coragem para o fazer, há uma espécie de intimidação, se bem que a possibilidade está sempre presente. Enquanto espectadora sinto muito isso. Quando estou numa plateia e sinto que de repente os actores vão arrancar para o público, vão agarrar alguém pela mão, ou que me vão perguntar alguma coisa, eu fujo! Não sei bem porquê. Se calhar, há uma certa perda da inocência quando se conhece o processo de dentro, e depois se parte para o lugar de espectador. Parte-se do princípio que o actor precisa dessa inocência para fazer o jogo funcionar, e se calhar eu não lhe vou dar isso, só vou tornar a coisa mais complicada”. Quando trabalha directamente com o público, “há essencialmente essa troca e uma sensação muito clara que as pessoas são altamente generosas, receptivas e estão cheias de vontade de participar. Isso é muito evidente e muito estimulante”.




Teatro e expressão dramática não são a mesma coisa.


Susana Nunes também é formadora, “a experiência que tenho é só ao nível da expressão dramática e com um público muito jovem, entre os seis e os doze anos, essencialmente. Teatro e expressão dramática não são a mesma coisa. Expressão dramática, não tem por propósito a criação de um objecto teatral formal para mostrar a um público. É uma disciplina com exercícios próprios, uma ferramenta de trabalho para o teatro mas existe fora do teatro. Existe agora no currículo de escolas secundárias, por exemplo, e independentemente de os alunos virem a ser actores ou não, expressão dramática é útil para a vida”. Para as crianças, “basicamente é o exercício da imaginação, estimular a imaginação. E, é auto conhecimento, o contacto com o outro, o conhecimento dos outros, o conhecimento do seu corpo e da sua expressão particular, dos seus potenciais e limites. Ajuda a inter agir e é partir daí que se cresce. Qualquer pequena brincadeira de crianças tem todo esse processo, eles fazem expressão dramática naturalmente, criam personagens instintivamente, imitam o que vêem os adultos fazer, em casa, na televisão, os professores… O que nós também podemos fazer é trazer questões da vida deles, conflitos, problemas, evidenciar isso de alguma forma no trabalho de grupo e ajudá-los a reflectir para encontrarem soluções”.
A expressão dramática, seja para crianças ou para adultos, ajuda o individuo a tornar-se mais assertivo na medida em que “desenvolver a empatia pelo outro, conhecer o outro, desenvolver o auto conhecimento… predispõe a entender o meio em que se encontra. Se a pessoa se conhecer bem, sabe lidar melhor com os seus próprios ‘reveses’, aceita melhor o que a vida lhe traz, torna-se mais responsável pelos seus gestos e pelas circunstâncias em que se encontra. Fica mais perto de si própria e por isso também mais perto dos outros e do mundo”.

Paula Ferro