sábado, 22 de fevereiro de 2020

Entrevista com Ângela Rosa


O ambiente é de todos


A cultura é a história da relação que o homem tem com a sua sustentabilidade

Entrevista com Ângela Rosa

Ângela Rosa é natural de Tavira. Nasceu em 1985. Completou o 12º ano e a partir de aí optou por escolher o rumo das suas aprendizagens de acordo com as necessidades do seu momento. Considera-se uma autodidacta polivalente e sabe que a aprendizagem não tem fim. O desporto, a música, a expressividade, os valores humanos, os trabalhos manuais e a agricultura sempre fizeram parte da sua vida.
Viveu no Porto, onde tirou o Curso Geral de Terapias, no Instituto Português de Naturologia que lhe despertou uma consciência diferente sobre a alimentação, a saúde e a importância da preservação da natureza. Leva uma alimentação vegana e satvica há 12 anos.
Gosta de viajar e fá-lo na perspectiva de perceber a dinâmica natural e social dos locais que visita e, sempre que pode, faz formação. Há poucos meses, em França, perto de Toulouse, fez uma formação sobre “eco-suficiência” numa iniciativa "heterotopies" da associação Via Brachy , em parceria com a associação In Loco.
Vive, há oito anos, da agricultura biológica certificada, fruticultura e horticultura, com características locais, ao ritmo sazonal e em sinergia com a biodiversidade.
 Ângela avança, passo a passo com perseverança, alegria e criatividade,            por um caminho que é também uma filosofia de vida, em direcção a um planeta são, de  energias limpas, onde a solidariedade e a partilha são sentimentos que animam o social como o sangue anima o corpo.
Ângela Rosa é cofundadora do Tavira em Transição e uma activista incansável nos vários labores deste movimento.
“Eu e o meu marido produzimos 80 a 90% do que consumimos, o que inclui cereais, leguminosas, vegetais, frutas, frutos secos, azeite, etc.”, comunica Ângela Rosa, “ e ter a nossa própria reprodução e conservação de sementes puras, ter o nosso próprio banco de sementes, é deveras essencial para a sustentabilidade”, e continua, “A minha sustentabilidade individual passa também pela escolha ou criação ética daquilo que necessito: o vestuário, os instrumentos que facilitam a vida doméstica, incluindo os produtos de higiene pessoal e do lar e passa também pelos materiais que uso na construção da minha casa, tal como pela energia geral que consumo no meu quotidiano”.
“A base da cultura, em todas as culturas, é a história da relação que o homem tem com a sua sustentabilidade”, explica Ângela Rosa, “as diferenças culturais devem-se à originalidade de cada lugar e de cada ser humano, o que enriquece o Mundo”.
“O meu modo de encarar a sustentabilidade é bastante actual mas contém um grande respeito pela ancestralidade”, esclarece, “os nossos ancestrais lidaram com os mesmos locais e com problemas muito semelhantes, nestes mesmos locais, e tiveram uma longa experiencia a esse nível. Decerto que alguns ensinamentos adquiriram e nos legaram da sua relação com o mesmo meio. Devemos escutá-los com alguma atenção”.
“Tavira está num momento de confluência. Existem aspirações positivas e existem perigos eminentes”, explica a activista do Tavira em Transição, “por um lado temos o projecto da Dieta Mediterrânica que vem salientar a necessidade de retorno às raízes e aos valores de sustentabilidade da cultura desta região” e por outro, uma série de ameaças como a “exploração de petróleo e gás natural que pretendem fazer nesta zona, tanto no mar, como na ria e também na serra” e “a invasão de estufas que abatem árvores milenares e centenares e destroem a paisagem, a flora e a fauna local”.
Para Ângela Rosa “é urgente despertar a atenção, informar e motivar as pessoas para a transição e para estas reivindicarem a sua autonomia e soberania local e económica, alimentar e energética”.
A entrevista com Ângela Rosa vai acontecer no diariOnline do Região Sul no dia 15 de Janeiro de 2016, às 15:00 horas.





1 – Como te ligas à criação do movimento Tavira em Transição?
R: Fui uma espécie de agente iniciador do movimento Tavira em Transição.
Em Novembro de 2011, organizei um encontro na sala de meditação da Quinta Shanti, a que dei o nome de “transição e sustentabilidade não violenta” para abordar temas como energias renováveis, artesanato funcional, medicinas alternativas, educação, agricultura biológica, biodinâmica, permacultura, a relação do individuo com a comunidade.
Sentia que estava a trabalhar na direcção certa mas sentia-me muito sozinha pois para se solucionar certos problemas é necessário o colectivo, então fui à procura de gente para partilhar preocupações e me ajudar a encontrar soluções.
Estiveram presentes muitas pessoas já com percursos dentro destes temas e surgiu um “grupo de luxo” pois reuniu-se gente com a mesma filosofia de vida, cujas áreas de conhecimentos falam a mesma linguagem e que se completam. Nessa reunião nasceu o Tavira em Transição.
O movimento tem-se vindo a formar gradualmente. A nossa mecânica de trabalho é muito orgânica, vamos avançando conforme nos vamos conhecendo. As coisas vão acontecendo natural e espontaneamente e os nossos princípios vão-se fortalecendo, a partir daquilo que é genuíno em cada um de nós, em interacção uns com os outros e com o meio que nos circunda. Isso permite que tudo aconteça de modo muito natural e com originalidade.
Nós somos parte de um movimento a nível mundial que se chama Cidades em Transição. Existe uma filosofia e valores comuns mas cada cidade faz como que “o seu cozinhado” porque as respostas têm que ser dadas mediante as características únicas de cada local.
Começa-se por observar e perceber o local. Só depois se pode saber o que existe e o que faz falta. Em função disso é que a nossa acção é exercida, de acordo com os princípios do Cidades em Transição, que no fundo são os da permacultura, no local onde se está.
Agora, ao final de quatro anos de existência, fizemos um balanço do nosso trabalho e concluímos que, embora tenhamos agido sem “cartilhas”, sempre de forma natural e espontânea, estamos na prática e intrinsecamente, de acordo com as metas do Cidades em Transição.
Afinal o lema é muito simples: é na simbiose entre o individuo e aquilo que o circunda e no social e na sua relação com o ambiente, que reside o segredo da sobrevivência e da prosperidade e, é óbvio que o homem não sobrevive fora da natureza, logo, precisamos muito de cuidar bem dela.
2 – Quais são as dinâmicas actuais do Tavira em Transição?
R: Muito recentemente nós iniciámos uma parceria com a Rádio Gilão que inclui dois programas, um é mensal e em directo, chama-se “ecomesa” e vai dar continuidade ao trabalho de informação e reflecção que foi realizado durante algumas semanas no Mercado Municipal de Tavira. Disponibiliza uma conversa sobre temas actuais. O outro programa é previamente gravado, é semanal e chama-se “ecoponto da transição”. Faz uma reflecção sobre um tema e dá dicas práticas para a vida das pessoas a nível da sustentabilidade.
Temos outras dinâmicas para fazer emergir essa responsabilidade ecossocial que é urgente. É que isto não se trata de um estilo ou de uma onda e sim da sobrevivência do ser humano e da vida em geral neste planeta.
Vamos iniciar, muito brevemente, o segundo ciclo de cinema.
Continuamos com a acção pedagógica, que iniciámos em 2014, em colaboração com a Escola Secundária de Tavira.
O projecto na Mata de Santa Rita, que tem sido um sucesso, no controlo da acácia naquela área, e vai continuar.
Gostava de referir que as artes estão muito presentes neste movimento que é muito orgânico, humano e criativo, no modo como manifesta o seu respeito pela sustentabilidade da vida e as actividades artísticas estão muito presentes nas nossas dinâmicas, permeiam grande parte delas.

3 – Como é que tu vês a sustentabilidade?
R: Existem duas vertentes que se interligam, a sustentabilidade a nível individual e a sustentabilidade a nível social.
A nível individual, a minha sustentabilidade pessoal, vejo-a no desenvolvimento de habilidades e destrezas que me capacitem para me governar a mim mesma, ou seja, saber alimentar-me, que inclui o saber cozinhar os alimentos mas vai muito para além disso, e que me remete imediatamente para a arte de cultivar o meu alimento. Faço agricultura biológica há oito anos, com características locais, ao ritmo sazonal e em sinergia com a biodiversidade.
A sustentabilidade individual passa por criar garantias de sobrevivência para si e para a prole, como toda a gente faz no seu dia-a-dia, a diferença aqui é que temos que o fazer em harmonia com a biodiversidade, coisa que é quase rara nas técnicas que se usam actualmente.
A minha sustentabilidade individual passa também pela criação daquilo que necessito: o vestuário, os instrumentos que facilitam a vida doméstica, incluindo os produtos de higiene pessoal e do lar e passa também pelos materiais que uso na construção da minha casa, tal como pela energia que consumo no meu quotidiano. O alvo a atingir é não usar materiais sintéticos em todas as áreas do labor da vida até chegar aos resíduos zero, energia limpa.

Parece utópico? O ser humano se afastou-se de valores essenciais atrás do seu egoísmo e das ganâncias que se tornaram crescentes mas, é muito necessário re-olhar para as coisas, respeitar e re-ligar. Este é o caminho que se tem que ir progressivamente abraçando.
A base da cultura, em todas as culturas é a história da relação que o homem tem com a sua sustentabilidade. As diferenças culturais devem-se, no fundo, à originalidade de cada lugar e de cada ser humano.
A cultura engloba os hábitos de um povo que incidem, na sua maioria, nos modos como esse povo se relaciona com a sua sobrevivência e com a sua sustentabilidade e com a natureza pois só de lá é que a sobrevivência do homem pode vir.
O meu modo de encarar a sustentabilidade é bastante actual mas contém um grande respeito pela ancestralidade. Os nossos ancestrais lidaram com os mesmos locais e com problemas muito semelhantes, nestes mesmos locais, e tiveram uma longa experiencia a esse nível. Decerto que alguns ensinamentos adquiriram e nos legaram da sua relação com o mesmo meio. Devemos escutá-los com alguma atenção.
A cultura nasceu lá atrás mas recrudesce sempre que conseguimos percepcionar, em comunhão com os nossos ancestrais, uma verdade que é imutável: não se consegue sobreviver fora da natureza, e com eles, reaprendemos a nos relacionarmos com ela.
A sustentabilidade a nível social será a relação destas sustentabilidades individuais no mesmo local, com as mesmas directrizes e a mesma filosofia, embebida pelo respeito pela vida, pela pluralidade de formas de esta se manifestar e pela relação que existe entre todos os seres vivos e inanimados que compõem o local que habitamos e que partilhamos com todos e com tudo o resto.
Mas o que é importante salientar é a responsabilidade social que cada individuo tem pois o social é esse conjunto de indivíduos que partilha o mesmo local de vida e interage dentro dele e por isso tem que zelar por ele em conjunto.
A nível do colectivo, há algo que também me parece muito importante para a sustentabilidade que é o desenvolvimento do pacifismo pois com guerras não há sustentabilidade possível, e por isso, é que o modo de chamar a atenção das pessoas para a nossa causa, que é a causa de todos, que o Tavira em Transição usa, é a partir da criatividade, da arte, da informação e da responsabilização.
Cada ser humano é único, por isso a competição negativa não faz sentido, ninguém pode ser melhor ou pior que ninguém e por isso, na sua evolução como individuo, só se pode comparar a si próprio. É por isso que cada cultura é tão importante e cada local também, porque todos são únicos e irrepetíveis.

4 – Como vai a cidade de Tavira?
R: Tavira está num momento de confluência. Existem aspirações positivas e existem perigos eminentes.
Por um lado temos o projecto da Dieta Mediterrânica que vem salientar a necessidade de retorno às raízes e aos valores de sustentabilidade da cultura desta região e isso envolve muita coisa: a paisagem mediterrânica, a agricultura familiar e de pequena e média escala, que respeita a biodiversidade e os ritmos da natureza deste local, e isso envolve oficinas, transformação e comércio justo, estilo de vida e “slow food”, entre muitas outras coisas.
Mas nada disto faz sentido se não protegermos este local do que estão “congeminando” contra ele. Refiro-me à exploração de petróleo e gás natural que pretendem fazer nesta zona, tanto no mar, como na ria e também na serra, e refiro-me também à invasão de estufas que abatem árvores milenares e centenares e destroem a paisagem, a flora e a fauna local.
Este é um momento muito decisivo para o futuro desta zona. Tudo o que caracteriza este local está em perigo caso os contratos que foram assinados entre o governo e as petrolíferas forem adiante.
Não só Tavira mas todo o Algarve está em perigo se os seus habitantes não travarem este processo originado pelas corporações de petróleo e lobbys do petróleo e da agro-industria.
Tavira tem um território de vida, uma biodiversidade que já está a ser destruída, e se esses processos não são travados, ficará irremediavelmente perdida, não só para nós mas para toda a humanidade porque estas coisas não se reinventam nem se substituem.
Isto não acontece só aqui. O mundo é composto por pequenos sítios únicos. É aí que reside o funcionamento do planeta, nesta biodiversidade que, neste momento, está a ser completamente desprezada e destruída pelos malefícios da globalização mas sobretudo pela ganância e tiranias de pequenas elites que dominam as corporificações e criam redes, cadeias, conhecidas de todos, para as quais as populações trabalham e das quais se tornam reféns, sem se preocuparem com isso nem se interrogarem sobre isso. É aí que está o grande perigo e por isso é que é tão urgente despertar a atenção, informar e motivar as pessoas para a transição e para reivindicarem a sua soberania alimentar e energética.