O ambiente é de todos
A cultura é a história da relação que o homem tem
com a sua sustentabilidade
Entrevista com Ângela Rosa
Ângela Rosa é natural de Tavira. Nasceu em 1985. Completou o 12º ano e
a partir de aí optou por escolher o rumo das suas aprendizagens de acordo com
as necessidades do seu momento. Considera-se uma autodidacta polivalente e sabe
que a aprendizagem não tem fim. O desporto, a música, a expressividade, os
valores humanos, os trabalhos manuais e a agricultura sempre fizeram parte da
sua vida.
Viveu no Porto, onde tirou o Curso Geral de Terapias, no Instituto
Português de Naturologia que lhe despertou uma consciência diferente sobre a
alimentação, a saúde e a importância da preservação da natureza. Leva uma
alimentação vegana e satvica há 12 anos.
Gosta de viajar e fá-lo na perspectiva de perceber a dinâmica natural
e social dos locais que visita e, sempre que pode, faz formação. Há poucos
meses, em França, perto de Toulouse, fez uma formação sobre
“eco-suficiência” numa iniciativa "heterotopies" da associação Via Brachy , em parceria com a
associação In Loco.
Vive, há oito anos, da agricultura biológica certificada, fruticultura
e horticultura, com características locais, ao ritmo sazonal e em sinergia com
a biodiversidade.
Ângela avança, passo a passo
com perseverança, alegria e criatividade, por um caminho que é também
uma filosofia de vida, em direcção a um planeta são, de energias limpas, onde a solidariedade e a
partilha são sentimentos que animam o social como o sangue anima o corpo.
Ângela Rosa é cofundadora do Tavira em Transição e uma activista incansável
nos vários labores deste movimento.
“Eu e o meu marido produzimos 80 a 90% do que consumimos, o que inclui
cereais, leguminosas, vegetais, frutas, frutos secos, azeite, etc.”, comunica
Ângela Rosa, “ e ter a nossa própria reprodução e conservação de sementes
puras, ter o nosso próprio banco de sementes, é deveras essencial para a
sustentabilidade”, e continua, “A minha sustentabilidade individual passa
também pela escolha ou criação ética daquilo que necessito: o vestuário, os instrumentos
que facilitam a vida doméstica, incluindo os produtos de higiene pessoal e do
lar e passa também pelos materiais que uso na construção da minha casa, tal
como pela energia geral que consumo no meu quotidiano”.
“A base da cultura, em todas as culturas, é a história da relação que
o homem tem com a sua sustentabilidade”, explica Ângela Rosa, “as diferenças
culturais devem-se à originalidade de cada lugar e de cada ser humano, o que
enriquece o Mundo”.
“O meu modo de encarar a sustentabilidade é bastante actual mas contém
um grande respeito pela ancestralidade”, esclarece, “os nossos ancestrais
lidaram com os mesmos locais e com problemas muito semelhantes, nestes mesmos
locais, e tiveram uma longa experiencia a esse nível. Decerto que alguns
ensinamentos adquiriram e nos legaram da sua relação com o mesmo meio. Devemos
escutá-los com alguma atenção”.
“Tavira está num momento de confluência. Existem aspirações positivas
e existem perigos eminentes”, explica a activista do Tavira em Transição, “por
um lado temos o projecto da Dieta Mediterrânica que vem salientar a necessidade
de retorno às raízes e aos valores de sustentabilidade da cultura desta região”
e por outro, uma série de ameaças como a “exploração de petróleo e gás natural
que pretendem fazer nesta zona, tanto no mar, como na ria e também na serra” e
“a invasão de estufas que abatem árvores milenares e centenares e destroem a
paisagem, a flora e a fauna local”.
Para Ângela Rosa “é urgente despertar a atenção, informar e motivar as
pessoas para a transição e para estas reivindicarem a sua autonomia e soberania
local e económica, alimentar e energética”.
A entrevista com Ângela Rosa vai acontecer no diariOnline do Região
Sul no dia 15 de Janeiro de 2016, às 15:00 horas.
1 – Como te ligas à
criação do movimento Tavira em Transição?
R: Fui uma espécie de agente iniciador
do movimento Tavira em Transição.
Em Novembro de 2011, organizei um encontro na sala de
meditação da Quinta Shanti, a que dei o nome de “transição e sustentabilidade
não violenta” para abordar temas como energias renováveis, artesanato
funcional, medicinas alternativas, educação, agricultura biológica,
biodinâmica, permacultura, a relação do individuo com a comunidade.
Sentia que estava a trabalhar na direcção certa mas sentia-me
muito sozinha pois para se solucionar certos problemas é necessário o
colectivo, então fui à procura de gente para partilhar preocupações e me ajudar
a encontrar soluções.
Estiveram presentes muitas pessoas já com percursos dentro
destes temas e surgiu um “grupo de luxo” pois reuniu-se gente com a mesma filosofia
de vida, cujas áreas de conhecimentos falam a mesma linguagem e que se
completam. Nessa reunião nasceu o Tavira em Transição.
O movimento tem-se vindo a formar gradualmente. A nossa
mecânica de trabalho é muito orgânica, vamos avançando conforme nos vamos
conhecendo. As coisas vão acontecendo natural e espontaneamente e os nossos
princípios vão-se fortalecendo, a partir daquilo que é genuíno em cada um de
nós, em interacção uns com os outros e com o meio que nos circunda. Isso
permite que tudo aconteça de modo muito natural e com originalidade.
Nós somos parte de um movimento a nível mundial que se chama
Cidades em Transição. Existe uma filosofia e valores comuns mas cada cidade faz
como que “o seu cozinhado” porque as respostas têm que ser dadas mediante as
características únicas de cada local.
Começa-se por observar e perceber o local. Só depois se pode
saber o que existe e o que faz falta. Em função disso é que a nossa acção é
exercida, de acordo com os princípios do Cidades em Transição, que no fundo são
os da permacultura, no local onde se está.
Agora, ao final de quatro anos de existência, fizemos um
balanço do nosso trabalho e concluímos que, embora tenhamos agido sem “cartilhas”,
sempre de forma natural e espontânea, estamos na prática e intrinsecamente, de
acordo com as metas do Cidades em Transição.
Afinal o lema é muito simples: é na simbiose entre o
individuo e aquilo que o circunda e no social e na sua relação com o ambiente,
que reside o segredo da sobrevivência e da prosperidade e, é óbvio que o homem
não sobrevive fora da natureza, logo, precisamos muito de cuidar bem dela.
2 – Quais são as
dinâmicas actuais do Tavira em Transição?
R: Muito recentemente nós iniciámos uma
parceria com a Rádio Gilão que inclui dois programas, um é mensal e em directo,
chama-se “ecomesa” e vai dar continuidade ao trabalho de informação e reflecção
que foi realizado durante algumas semanas no Mercado Municipal de Tavira.
Disponibiliza uma conversa sobre temas actuais. O outro programa é previamente
gravado, é semanal e chama-se “ecoponto da transição”. Faz uma reflecção sobre
um tema e dá dicas práticas para a vida das pessoas a nível da
sustentabilidade.
Temos outras dinâmicas para fazer emergir essa responsabilidade
ecossocial que é urgente. É que isto não se trata de um estilo ou de uma onda e
sim da sobrevivência do ser humano e da vida em geral neste planeta.
Vamos iniciar, muito brevemente, o segundo ciclo de cinema.
Continuamos com a acção pedagógica, que iniciámos em 2014, em
colaboração com a Escola Secundária de Tavira.
O projecto na Mata de Santa Rita, que tem sido um sucesso, no
controlo da acácia naquela área, e vai continuar.
Gostava de referir que as artes estão muito presentes neste
movimento que é muito orgânico, humano e criativo, no modo como manifesta o seu
respeito pela sustentabilidade da vida e as actividades artísticas estão muito
presentes nas nossas dinâmicas, permeiam grande parte delas.
3 – Como é que tu vês a
sustentabilidade?
R: Existem duas vertentes que se interligam,
a sustentabilidade a nível individual e a sustentabilidade a nível social.
A nível individual, a minha sustentabilidade pessoal, vejo-a
no desenvolvimento de habilidades e destrezas que me capacitem para me governar
a mim mesma, ou seja, saber alimentar-me, que inclui o saber cozinhar os
alimentos mas vai muito para além disso, e que me remete imediatamente para a
arte de cultivar o meu alimento. Faço agricultura biológica há oito anos, com
características locais, ao ritmo sazonal e em sinergia com a biodiversidade.
A sustentabilidade individual passa por criar garantias de
sobrevivência para si e para a prole, como toda a gente faz no seu dia-a-dia, a
diferença aqui é que temos que o fazer em harmonia com a biodiversidade, coisa
que é quase rara nas técnicas que se usam actualmente.
A minha sustentabilidade individual passa também pela criação
daquilo que necessito: o vestuário, os instrumentos que facilitam a vida
doméstica, incluindo os produtos de higiene pessoal e do lar e passa também
pelos materiais que uso na construção da minha casa, tal como pela energia que
consumo no meu quotidiano. O alvo a atingir é não usar materiais sintéticos em
todas as áreas do labor da vida até chegar aos resíduos zero, energia limpa.
Parece utópico? O ser humano se afastou-se de valores
essenciais atrás do seu egoísmo e das ganâncias que se tornaram crescentes mas,
é muito necessário re-olhar para as coisas, respeitar e re-ligar. Este é o
caminho que se tem que ir progressivamente abraçando.
A base da cultura, em todas as culturas é a história da
relação que o homem tem com a sua sustentabilidade. As diferenças culturais
devem-se, no fundo, à originalidade de cada lugar e de cada ser humano.
A cultura engloba os hábitos de um povo que incidem, na sua
maioria, nos modos como esse povo se relaciona com a sua sobrevivência e com a
sua sustentabilidade e com a natureza pois só de lá é que a sobrevivência do
homem pode vir.
O meu modo de encarar a sustentabilidade é bastante actual
mas contém um grande respeito pela ancestralidade. Os nossos ancestrais lidaram
com os mesmos locais e com problemas muito semelhantes, nestes mesmos locais, e
tiveram uma longa experiencia a esse nível. Decerto que alguns ensinamentos
adquiriram e nos legaram da sua relação com o mesmo meio. Devemos escutá-los
com alguma atenção.
A cultura nasceu lá atrás mas recrudesce sempre que
conseguimos percepcionar, em comunhão com os nossos ancestrais, uma verdade que
é imutável: não se consegue sobreviver fora da natureza, e com eles,
reaprendemos a nos relacionarmos com ela.
A sustentabilidade a nível social será a relação destas
sustentabilidades individuais no mesmo local, com as mesmas directrizes e a
mesma filosofia, embebida pelo respeito pela vida, pela pluralidade de formas
de esta se manifestar e pela relação que existe entre todos os seres vivos e
inanimados que compõem o local que habitamos e que partilhamos com todos e com tudo
o resto.
Mas o que é importante salientar é a responsabilidade social
que cada individuo tem pois o social é esse conjunto de indivíduos que partilha
o mesmo local de vida e interage dentro dele e por isso tem que zelar por ele
em conjunto.
A nível do colectivo, há algo que também me parece muito
importante para a sustentabilidade que é o desenvolvimento do pacifismo pois
com guerras não há sustentabilidade possível, e por isso, é que o modo de
chamar a atenção das pessoas para a nossa causa, que é a causa de todos, que o
Tavira em Transição usa, é a partir da criatividade, da arte, da informação e
da responsabilização.
Cada ser humano é único, por isso a competição negativa não
faz sentido, ninguém pode ser melhor ou pior que ninguém e por isso, na sua
evolução como individuo, só se pode comparar a si próprio. É por isso que cada
cultura é tão importante e cada local também, porque todos são únicos e
irrepetíveis.
4 – Como vai a cidade
de Tavira?
R: Tavira está num momento de
confluência. Existem aspirações positivas e existem perigos eminentes.
Por um lado temos o projecto da Dieta Mediterrânica que vem
salientar a necessidade de retorno às raízes e aos valores de sustentabilidade
da cultura desta região e isso envolve muita coisa: a paisagem mediterrânica, a
agricultura familiar e de pequena e média escala, que respeita a biodiversidade
e os ritmos da natureza deste local, e isso envolve oficinas, transformação e
comércio justo, estilo de vida e “slow food”, entre muitas outras coisas.
Mas nada disto faz sentido se não protegermos este local do
que estão “congeminando” contra ele. Refiro-me à exploração de petróleo e gás
natural que pretendem fazer nesta zona, tanto no mar, como na ria e também na
serra, e refiro-me também à invasão de estufas que abatem árvores milenares e
centenares e destroem a paisagem, a flora e a fauna local.
Este é um momento muito decisivo para o futuro desta zona.
Tudo o que caracteriza este local está em perigo caso os contratos que foram
assinados entre o governo e as petrolíferas forem adiante.
Não só Tavira mas todo o Algarve está em perigo se os seus
habitantes não travarem este processo originado pelas corporações de petróleo e
lobbys do petróleo e da agro-industria.
Tavira tem um território de vida, uma biodiversidade que já
está a ser destruída, e se esses processos não são travados, ficará
irremediavelmente perdida, não só para nós mas para toda a humanidade porque
estas coisas não se reinventam nem se substituem.
Isto não acontece só aqui. O mundo é composto por pequenos
sítios únicos. É aí que reside o funcionamento do planeta, nesta biodiversidade
que, neste momento, está a ser completamente desprezada e destruída pelos
malefícios da globalização mas sobretudo pela ganância e tiranias de pequenas
elites que dominam as corporificações e criam redes, cadeias, conhecidas de
todos, para as quais as populações trabalham e das quais se tornam reféns, sem
se preocuparem com isso nem se interrogarem sobre isso. É aí que está o grande
perigo e por isso é que é tão urgente despertar a atenção, informar e motivar
as pessoas para a transição e para reivindicarem a sua soberania alimentar e
energética.