quinta-feira, 18 de março de 2010

Jornalismo - Marco Martins

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Setembro 2009
Marco Martins
Cinema português além-fronteiras

Marco Martins nasceu em Lisboa em 1972 mas as suas raízes encontram-se no Algarve, na região de Tavira. Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema (1994) estagia na área de produção com os realizadores Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier e, durante dois anos, é assistente de realização de João Canijo.
Entre 1994 e 1998 escreve e realiza três curtas-metragens: “Mergulho no Ano Novo” que recebeu o prémio de Melhor Curta-metragem Nacional no Festival Internacional de Curtas-metragens de Vila do Conde; “Não Basta ser Cruel”, prémio Melhor Curta-Metragem e Melhor Realizador no VII Festival Ibérico de Cinema de Badajoz; e “No Caminho para a Escola”, prémio Eixo Atlântico no Festival de Ourém. Realiza também filmes publicitários e, em 2002 funda a sua própria produtora de publicidade, “Ministério dos Filmes”, que foi distinguida com vários prémios internacionais.
Marco Martins nasceu em Lisboa em 1972 mas as suas raízes encontram-se no Algarve, na região de Tavira. Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema (1994) estagia na área de produção com os realizadores Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier e, durante dois anos, é assistente de realização de João Canijo.
Entre 1994 e 1998 escreve e realiza três curtas-metragens: “Mergulho no Ano Novo” que recebeu o prémio de Melhor Curta-metragem Nacional no Festival Internacional de Curtas-metragens de Vila do Conde; “Não Basta ser Cruel”, prémio Melhor Curta-Metragem e Melhor Realizador no VII Festival Ibérico de Cinema de Badajoz; e “No Caminho para a Escola”, prémio Eixo Atlântico no Festival de Ourém. Realiza também filmes publicitários e, em 2002 funda a sua
própria produtora de publicidade, “Ministério dos Filmes”, que foi distinguida com vários prémios internacionais.

“Escrever ou fazer filmes é sempre um trabalho sobre a memória”
“How to Draw a Perfect Circle” (Como Desenhar um Círculo Perfeito) é a nova longa-metragem de Marco Martins e vai ser estreada em Outubro. Uma história de incesto. Mais do que outra história, outro tema. “Gosto mais de temas do que de histórias”. As histórias aparecem com os temas e “gosto de temas pesados e controversos. Não pretendo chocar. São temas que me fascinam e fascinam-me ao ponto de me fazerem trabalhar sobre eles ao longo de dois anos”. Temas fortes, relacionados com ambientes familiares pesados. Em “Alice”, há um corte involuntário entre os pais e a filha, em “Como Desenhar um Círculo Perfeito”, temos dois irmãos isolados, entregues a si próprios, e o corte dá-se com o resto do mundo.
“A escolha de uma estrutura familiar tem a ver sobretudo com o trabalho. Escrever ou fazer filmes é sempre um trabalho sobre a memória. Estamos sempre a trabalhar sobre memórias. Há um interesse em explorar laços afectivos familiares na medida em que a família é uma estrutura onde existe muita coisa escondida, ocultada. Nunca se diz tudo sobre a família, e é isso que é interessante”.
Aqui é abordado o tema do incesto, um incesto “particular, entre irmãos e gémeos. Um dos grandes tabus, um dos poucos que continua a existir”.
Incesto como tema e abandono como sub-tema. “É um bocadinho como acontecia em “Alice” que era a história de um desaparecimento mas na verdade era um filme sobre uma visão de uma cidade. Este filme também aborda a temática do abandono, o abandono daquelas duas crianças por parte da família. O isolamento em que elas vivem, também provocado por elas próprias a partir de certa altura, porque acabam por criar um mundo que é só deles, demarcado pelo espaço da casa”.
“Alice”, um filme de exteriores e agora, “Como Desenhar um Círculo Perfeito” um filme onde a câmara explora sobretudo uma geografia de interiores.
Em “Como Desenhar um Círculo Perfeito” há uma parceria com Gonçalo M. Tavares. “Quando acabei o guião fiz-lhe um desafio: fazer uma segunda versão. E ele fez”. Marco escreve os seus próprios guiões mas está ligado sobretudo à imagem. Existem momentos em que sente necessidade de recorrer a quem domine verdadeiramente a linguagem literária. “O personagem do pai é escritor e escreve textos para o filho. Essa parte, evidentemente, é toda do Gonçalo”.



“A música é um género de subtexto da acção principal”
Estreia a sua primeira longa-metragem em 2005, um drama intitulado “Alice”. O actor Nuno Lopes encarna o papel de Mário, um pai obcecado pelo desaparecimento da sua filha de quatro anos e que, todos os dias, refaz o mesmo itinerário, repete os mesmos gestos, construindo e sustentando a esperança de encontrar alguma pista de Alice. Este filme explora a obsessão, materializando um estado de desespero resignado diante de uma realidade contra a qual muito pouco pode ser feito, e ao mesmo tempo retrata a cidade de Lisboa mostrando-a pelo seu lado de cidade fria e anónima.
“Alice” recebe diversos prémios internacionais: Festival de Cannes, Festival de Cinema Luso-Brasileiro (Melhor Filme e Prémio Revelação Melhor Actor - Nuno Lopes), Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata na Argentina (Melhor Realização), Raindance Film Festival, (Melhor Filme, Melhor Fotografia e Prémio FIPRESCI), Festival Las Palmas (Melhor Primeira Obra), Coimbra Caminhos do Cinema Português (Prémio de Realizador Revelação), Globo de Ouro (Melhor Filme), Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (Melhor Actor - Nuno Lopes, e Melhor Filme), Festival dos Cinemas do Mediterrâneo (Melhor Realizador, Melhor Montagem, Melhor Fotografia e Melhor Música).
Bernardo Sassetti foi o compositor escolhido para participar na banda sonora. Embora não abunde, a música tem um papel muito importante. Invade-nos os sentidos e transporta-nos para dentro da angústia de Mário. O piano a solo conduz-nos, lentamente, para sensações cada vez mais fundas, mais escuras e densas. “Na história da Alice interessava-me tudo o que era música repetitiva mas não minimal”, explica o cineasta, “com essa ideia de repetição, para o cada dia da personagem do Nuno ser absolutamente igual ao outro, ser uma constante repetição do outro, mas sempre com uma pequena evolução. Daí partimos para a composição da música”.
A música é de extrema importância nos filmes de Marco Martins pois não é vista “como um sublinhar da acção dramática e sim como outra linha textual, um género de subtexto da acção principal. Como se fosse a linha de pensamento da personagem principal”.
No próximo filme, Marco usa-a do mesmo modo, e oferece-nos outro desafio feito a Sassetti que desta vez não usará o piano. Aqui, a música funciona “às vezes até em contra-ciclo com o que estamos a ver, é quase um descodificador emocional da imagem”.



O trabalho do actor é visto como uma obra de arte
Faz um trabalho intenso com cada actor e descobrir o indicado para cada personagem é um trabalho exaustivo. Para “Como Desenhar um Circulo Perfeito” demorou muito tempo até encontrar as pessoas certas, sobretudo devido à idade dos personagens. “Qualquer actor como estes miúdos de dezasseis anos, é um não actor. Embora possam ter tido algumas experiências, não são actores. Não podemos olhar para o corpo de trabalho de cada um deles e perceber realmente o que é capaz de fazer. Há uma parte em que temos que adivinhar e outra parte em que temos que acreditar que ele vai lá chegar”. Um trabalho árduo que exige paciência e persistência. “No início eram 600 miúdos” e foi seleccionando até escolher três que trabalhou exaustivamente até definir os protagonistas.
“Tenho a noção que a partir do momento em que escolho o actor, ele vai condicionar uma reescrita do meu guião, por isso começo logo a reescrever mal escolho o actor”. Não lhe agrada a representação clássica, “dizer um texto ou representar uma acção. Obviamente todas as representações são representações, mais naturalistas ou menos naturalistas, mas gosto de levar ao extremo o trabalho com o actor. Trabalho muito tempo com eles. Com estes dois miúdos trabalhámos quase quatro meses à volta daquela personagem e com questões ligadas à representação. Como jovens actores que são, deixaram-se completamente submergir por aquelas personagens e depois já era difícil distinguir onde estava o actor e começava a personagem. Esse trabalho faz com que se chegue sempre a um sítio que já não é o sítio de partida. Não estou a tentar moldá-los a uma ideia que eu tinha da personagem, estou apenas a tentar chegar a uma ideia. Há uma confrontação com a realidade do material que nós temos”.
O trabalho do actor é exibido de um modo distinto em “Night Walks”, a vídeo instalação que esteve patente ao público na Casa das Artes de Tavira, “um projecto que nasceu durante a rodagem deste filme. Havia planos muito, muito longos que não tinham o ritmo do filme. Só duas personagens, a andar, que intimamente não faziam parte da montagem final. Eles, só por si, eram interessantes e colocavam uma série de questões quase como se fossem, eles próprios, uma narrativa fechada num só plano, sem qualquer tipo de contextualização”.
“Night Walk” apresenta-nos o trabalho do actor de cinema colocado no universo da vídeo arte, no espaço expositivo de uma galeria de arte, atribuindo-lhe assim o valor de obra de arte.
Aguarda-se com alguma expectativa a estreia de “How to Draw a Perfect Circle”, nos cinemas, já em Outubro.
Paula Ferro

jornalismo - Teresa Ramos e Teresa Calém

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"

Outubro 2009

Vai atrás do teu desejo, ou mata-o…”

Manuel Rodrigues

Trajectórias

Teresa Ramos e Teresa Calém, duas mulheres com o mesmo nome, nascidas no mesmo ano em locais quase opostos do país. Ambas fazem um percurso profissional sólido, mas num dado momento da sua vida, atingida já a maturidade e o sucesso, resolvem seguir um apelo interior e recomeçam o seu caminho ingressando numa escola de arte.

A audácia, a força provinda do seu desejo interior e uma entrega efectiva ao trabalho conduzem-nas a novos êxitos, agora nas artes plásticas.

Teresa Ramos

Sensibilidade e rigor

Teresa Ramos nasceu em Tavira (1953) mas divide a sua vida entre Faro, onde tem o seu atelier, e Lisboa, onde é professora e directora do Departamento de Cerâmica no Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co).

No início dos anos 80 fez formação em olaria na “Culturona”, em Lisboa, mas, durante doze anos trabalhou na produção de filmes de publicidade.

Apesar de muito bem paga, “os níveis de agressividade, a falta de respeito, os relacionamentos injustos e a desonestidade dentro do triângulo cliente, agência e produtor de filmes, tornou-se cada vez mais inaceitável para mim”. Abandonou a publicidade quase “em legítima defesa”.

A sua leitura do mundo conduziu-a “a seguir em frente, procurando algo mais, e outros mais que suspeito existirem além daquilo que é apresentado como a verdade, a realidade, e a vida”.

Decidiu andar pelas suas próprias pernas e construir o seu próprio chão, enquanto caminhasse. Aprender fascina-a e, aos 42 anos, decidiu fazer um curso de artes e mudar de vida. Foi para o Ar.Co. Fez o plano de estudos completo de cerâmica e o plano de estudos básico em desenho, e depois o curso avançado de artes plásticas.

Em actualizações permanentes

Quando frequentava o segundo ano do curso avançado de artes plásticas, “o Manuel Castro Caldas propôs-me ficar à frente do Departamento de Cerâmica. Pensei que seria uma coisa transitória, rápida. Eu queria mesmo era vir para o meu atelier, fazer as minhas coisas, sozinha…”, mas aceitou e gostou mais do que esperava. Foi reestruturando o curso durante cinco anos seguidos e foi incorporando “todas essas mudanças no meu próprio crescente, mesmo de pensamento e de reflexão sobre qual é o papel da escola, qual a sua função”.

O Ar.Co é uma escola independente com um cariz de experimentação muito forte. É no trabalho que as coisas se realizam, se descobrem, se questionam”.

Mas não é só o Departamento de Cerâmica que está em permanente mudança, “todos os anos há mudanças. As coisas estão em reajuste permanente”. Sente-se “em actualizações permanentes. Estou sempre a reajustar a minha posição, é quase diário, e agrada-me sentir que na escola onde trabalho isso também acontece”.

Se uma escola como esta seria importante no Algarve? Soltar um sorriso límpido e brilhante: “Uma escola assim é importante em qualquer parte”.

Já como Directora de Departamento começou a leccionar. Como professora, trabalha ao lado “das pessoas” e descobre com elas. “Não dou directrizes, mas faço propostas, senão a pessoa dispersa-se e não há o envolvimento necessário”. O envolvimento, a entrega, a reflexão e a dedicação ao trabalho são fundamentais, “é preciso começar a aprender que gostar é pouco, não chega!”

A preguiça é imaturidade

Paralelamente, há um contínuo trabalho de atelier, de pesquisa, de experimentação e reflexão com um sólido percurso próprio.

Expõe regularmente desde 1998. Está representada nas Colecções do Museu de Olaria de Barcelos e na do Ar.Co, assim como em diversas colecções particulares. Foi bolseira do Montepio Geral em 2001/2002.

A cerâmica como arte ou como artesanato? “Isso depende da atitude que se toma”. A arte é uma atitude, não reside no domínio de técnicas. “Não pode! O domínio de técnicas é outro assunto. Isso é outro departamento”. A arte é outra coisa, “podemos encontrar um quadro muito bem pintado, tudo muito certinho, mas sem interesse, sem assunto inclusivamente. Há um alto domínio técnico mas… é só isso!” Faz uma pequena pausa, e continua, tranquilamente, “há pessoas e há publico para tudo, portanto há a mesma legitimidade, não há é o mesmo interesse. Para mim não tem interesse nenhum, mas é legítimo!”

Usamos técnicas para exprimir o pensamento, quer as dominemos ou não. O domínio da técnica ”depende da utilização que se faz dela. Só na utilização há aperfeiçoamento”. As técnicas podem ser utilizadas de muitas maneiras, “no sentido da perfeição ou explorando os limites dos materiais; onde é que as coisas passam para o efeito ou para o defeito? Procura-se aquilo que se considerou defeito, ou não? Vai-se utilizar, ou não? Aí é que está a consciência na utilização dos materiais. Mas para haver consciência na utilização, tem que haver utilização”.

O acento está na produção “porque só com muito trabalho à frente é que temos assunto para conversar sobre as coisas e as coisas só acontecem se nós tivermos uma atitude de trabalho sistemático”. Há que respeitar os ritmos, “cada um tem o seu grau de necessidade de pôr cá para fora” mas a preguiça é “imaturidade”.

O seu principal meio de expressão tem sido através de materiais cerâmicos. Durante o curso começou a trabalhar a porcelana líquida e a modelá-la com tecido. Desenha, modela, e depois levanta e “é como se estivesse a fazer um vestido”. Há uma feminilidade velada que espreita em cada gesto e palavra, “aquilo é tudo em plano, é tudo pincelado, colado, levanta-se…”, faz o gesto com o olhar assentado em brilho, “a passagem do plano para o volumétrico, esta transição… dá-me prazer fazer assim. Gosto de passar, progressivamente, a ideia para o plano e de partir dele para a construção volumétrica”.

O seu raciocínio é claro e a imparcialidade abunda nas suas análises. Teresa é uma perfeccionista incansável. Trabalhando com a porcelana líquida, “o corpo do objecto é a pele de porcelana, criada na superfície de outro que foi seu hospedeiro. Na superfície do objecto produzido fica registada a presença morfológica dos materiais incorporados, apesar ausência da matriz que tornou possível a sua conformação. Escavando a superfície, revela-se com detalhe o registo e isto torna possível atingir uma comunicação simples, clara e directa com os diferentes níveis de informação alcançados em simultâneo”.

Relação entre desenho e cerâmica

O seu universo é quase microscópico, cada pormenor tratado com minúcia e paciência, a entrega ao gesto sobre gesto, criando mundos onde impera o aquático com sabor a vegetal.

O seu objectivo é continuar o seu caminho, mas, foi “prestando atenção ao que ia acontecendo”, foi fazendo “o balanço entre intuição e intenção” e deste modo começou “a reconhecer que estava a desenhar um trilho através do olhar dos outros”.

Existe uma relação velada entre o desenho e a cerâmica. No início do curso descobriu que “o desenho é importante para tudo, até para resolver problemas do meu dia a dia”. Mantém guardada uma produção de desenhos muito grande que agora lhe apetece mostrar. ”Só emoldurei três, estou ainda a seleccionar”.

Para além de desenhos, também outro tipo de imagens que tem vindo a recolher e a criar. Abre-se novo momento no seu processo em que Teresa sente vontade de repousar da cerâmica, “estou mais virada para o estirador, para a máquina fotográfica e para o registo de imagens… “

Aí vem nova etapa no seu trabalho e desatam-se novos entusiasmos. Mas Teresa não premedita, abre-se à vida e observa com tranquilidade e segurança. “Não corro atrás das coisas, elas vêm ter comigo, e depois embarco nelas, ou não”.

Teresa Calém

Desafio e transformação

Teresa Calém nasceu no Porto (1953) mas habita no Algarve desde os anos 80. Sempre se sentiu atraída pelo desenho e com 18 anos, naturalmente, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto, mas desistiu e ingressou na Fundação Espírito Santo onde tirou Arquitectura de Interiores.

Já no Algarve, cria a “Al Quatro”, uma empresa especializada em design de interiores que obteve franco sucesso. Mas, a pintora reclamava atenção dentro de si e em 2000, com 46 anos, decidiu mudar de vida e inscreveu-se no Ar.Co. Durante seis anos conciliou empresa, família e viagens para Lisboa, três vezes por semana, para ter aulas de Arte e História de Arte.

Em 2004 expõe na “Produzentengalerie”, em Hamburgo, e na “Artadentro”, em Faro. Em 2004, participa no “TRACTOR”, em Faro Capital Nacional da Cultura e numa exposição colectiva no “Palácio da Galeria”, em Tavira.

Em 2006, começa a dedicar-se à pintura a tempo inteiro e em 2007 expõe no Centro Cultural de S. Lourenço. Agora foi convidada para expor em 2010 na “Galeria de Arte do Nederlandsche Bank”, em Amesterdão.

Cabeças despidas em silêncios

As obras que tem vindo a apresentar são cabeças, de um por dois metros, em aguarela. Uma mistura de mítico, místico e fantástico, materializados pela exploração de técnicas de aguarela no sentido do retrato mas que não geram retratos e sim fisionomias anónimas, de tez outonal em cabeças despidas que nos transportam para silêncios. São brilhos exaltados de espanto em expressões suspensas, agarradas no início de uma metamorfose. E soltam-se frescos, com odor a relva molhada, que nos conduzem a fantásticas possibilidades de vida encerradas num olhar.

Cada cabeça acontece a partir de pequenos pormenores que retira de fotografias encontradas em revistas, jornais ou de desenhos e esboços feitos anteriormente. Não nasceram nesta dimensão, foram crescendo, e o atelier de Teresa está repleto de cabeças de várias dimensões que pertencem “a uma espécie de tribo”. Mas “no formato grande as cabeças ganham outra densidade”.

Porquê cabeças? “Não sei! Gosto imenso de gente e de cabeças, apetece-me muito mais pintar cabeças do que paisagens e vou para aquilo que me apetece”.

O seu atelier é um mundo à parte, povoado de fantástico. Misturados com cabeças, abundam desenhos, esboços, ilustrações de contos infantis, peças tridimensionais, umas feitas de papel de seda e cola branca, outras de pastas, outras ainda feitas de ramos secos e galhos que Teresa apanha nos seus passeios pelo campo e depois constrói, unindo bocadinhos com fio de cobre. Modelos que depois pinta com aguarela em busca de novos caminhos, de novas aventuras.

Atenção total é oração

“A arte é a possibilidade de nos surpreendermos connosco próprios e com o que fazemos.” É continuamente surpreendida pela sua criação e “a partir do momento em que começo a deixar de me surpreender, tenho de passar para outra coisa porque aquela já está inserida, já está a ficar fácil e já estou quase a repetir-me a mim própria”.

A escolha da aguarela encerra o desafio de não se poder emendar. Enquanto que nas técnicas a óleo se pode pintar uma camada sobre um erro e ocultá-lo, na aguarela, cada camada deixa ver o que está por baixo e todas as pinceladas ficam expressas no trabalho.

Descreve o processo de aparição de uma obra com o enlevo da entrega a cada gesto, que tem que ser “o gesto mais perfeito que se pode fazer naquele momento”, por isso é que requer a “atenção total”, e a “atenção total é a mesma coisa que uma oração”.

E mostra, numa dança iluminada pela melodia da sua voz, como estende o papel no chão, como o molha, depois “o pincel na vertical” e olha para mim cheia de um verde translúcido que vem lá do fundo, “a tinta escorre e cresce no papel molhado de um modo muito orgânico, enquanto se espalha no desenho” e depois vem o sol que seca, e já pronto, aí vem nova camada de molhado e tinta e sol e outra camada, e mais outra… com paciência e entrega, Teresa vai saboreando cada “visitação”.

Fascinada pela mitologia grega, explora temas como Dafne, deusa das ninfas que foge de Apolo e se transforma em árvore. O tema da transformação está sempre presente no seu trabalho. No seu trabalho, na sua vida e no modo como se posiciona. Continua em permanente busca, experimentação e formação. “O ano passado, em Julho, fui para Florença, para uma academia onde ensinavam técnicas antigas a óleo”, no Inverno passado frequentou aulas de História de Arte com Nuno Faria e este Verão participou no “Mobilehome”. A sua sede de novos desafios é evidente. Olha-me sorrindo e cita Picasso: “A inspiração é muito boa, sobretudo quando me apanha a trabalhar” e volta a sorrir, cheia de entusiasmo e algum mistério.

Paula Ferro

jornalismo - Júlio Pomar

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"

Outubro 2009

“Figuras de Convite” em Estói

Exposição de Júlio Pomar

“Figuras de Convite” é uma exposição na Casa Rural da Villa Romana de Milreu, em Estói. Um diálogo histórico entre o mosaico romano, as figuras de convite que marcam o séc. XVIII e a contemporaneidade, através do olhar de Júlio Pomar.

Esta exposição pode ser visitada até Janeiro de 2010. Trata-se de uma iniciativa da Galeria Ratton e da Direcção Regional de Cultura do Algarve e integra-se no âmbito das Jornadas Europeias do Património que, em 2009, têm como tema, “Vi(r)Ver o Património”. Esta iniciativa é um convite ao envolvimento dos cidadãos na participação activa da descoberta da herança cultural, reforçando a memória colectiva e de afirmação de um Património comum cuja riqueza reside na sua diversidade.

“Toda a criação é recriação” - afirma o artista - “nada é feito a partir de zero. O próprio zero é uma criação magnífica do homem” - faz uma pausa e sorri - “gerações e gerações pereceram antes de alguém ter inventado o zero”.

As figuras de convite, pintadas sobre azulejos e aplicadas nas entradas das habitações da nobreza portuguesa do século XVIII, representam, à escala natural, criados de libré, guerreiros e damas que “recebem” os visitantes. No século XX renovou-se o uso do azulejo sem que a tradição das figuras de convite fosse renovada. A galeria Ratton reconhecendo essa ausência, já quase na entrada para o séc. XXI, convidou Júlio Pomar a preencher essa lacuna. O artista fá-lo com a habitual genialidade e sentido de humor, como o provam as seis obras expostas.

Ao longo da História “a arte como ‘fazer’ tende, na maior parte dos casos, a não evitar destruir aquilo que está em desacordo com o que o dito poder propõe” - explica o artista, - “as próprias cidades são destruídas sucessivamente. Penso que esse sentimento de conservação e de respeito, de amor e curiosidade é relativamente recente, mas ainda bem!”

As obras expostas que convidam a visitar vários compartimentos da Casa Rural são retratos, ou melhor caricaturas.

O retrato, em arte, seja qual for o suporte usado, é uma representação. Mas é também “a fixação do instante, mesmo que esse instante seja massivo. É um desejo da paragem do tempo. Uma tentativa de fixação ou de retenção do tempo” - sorri de novo - “as pessoas mudam…” e o retrato é como agarrar um instante e mantê-lo. “A história do instante é fundamental” - explica - “o viver o instante, o enaltecer o instante” - saboreia a ideia - “penso que tem muito a ver com a natureza da obra de arte. Com o gozo do existir e da própria obra de arte” - os seus olhos iluminados e sábios fitam-me - “o sentir o vivo a viver”.

“O mesmo é outro”

Perguntei-lhe sobre a importância da arte. “Se as artes têm alguma vantagem”,- responde - “é porque nos ajudam a olhar para as coisas e a ver que aquilo que parecia simples e limitado, no fundo, dá saída para mundos e mundos e mundos”.

A arte vive paredes-meias com a consciência “mas por vezes ela produz-se até, sem que o produtor tenha uma ideia, mesmo vaga, do que está a fazer. Não me refiro às artes dos loucos que têm o seu mérito, todo um certo alastramento”, alastramento esse que é “um sector importante da produção da coisa mental”.

“O que é a coisa mental?” – pergunto.

Ri-se e responde: “É a capacidade de pensar a existência de modo que esse pensar tenha forma e consistência, embora não tenha forma nem consistência”. - Sorri da minha reacção – “existe na cabeça, mentalmente” – continua – “e é a partir daí que se dá a forma a nível da visibilidade”.

Para se ser artista é necessário ter muitas coisas juntas”.

A raiz da palavra “arte” define-a como “fazer de”, “a arte de carpinteiro, ou andar nas artes, como dizem os que vivem perto do mar e não trabalham no campo” - explica, calmamente - “andam nas artes. As palavras são potes sem fundo, saem-nos da boca e não reparamos nelas”, e “este andar nas artes, no fundo, é uma lição sobre o entendimento das coisas”.

As artes prendem-se com as suas técnicas e as substâncias, com a matéria, e com “uma provocação que é cada vez menor, não direi do acaso, mas de qualquer coisa desconhecida ou menos conhecida. É claro que o acaso para o comum das pessoas é uma coisa desprezível, sem regras nem leis, mas a gente, à medida que vai vivendo e apreendendo as coisas, vai chegando à conclusão que o acaso é a matemática mais rigorosa, é aquilo que se oferece só a quem pode perceber”.

As artes respondem a necessidades do homem. As artes da pesca e as artes do camponês respondem a necessidades de sobrevivência mas as artes plásticas também existem por uma necessidade humana. Se não existisse “essa necessidade vital”, o artista não era impelido a produzir e a dedicar a sua vida a fazê-lo.

“Como é um fazer, exige técnica, obrigatoriamente. Mas, a arte é técnica?” - Perguntei.

“Não” – respondeu - “da mesma maneira que a poesia não é gramática embora não possa viver sem ela”. No fundo, a gramática é “um conhecimento da maneira como a língua se processa, se articula, de como ela, por um lado serve o pensamento, e por outro o impulsiona. É sempre ambígua essa relação entre sujeito e objecto, entre o objecto, o sujeito e o predicado. A vida é uma troca constante de posições”.

“Pensa que o artista é aquele que apanha as essências?” – Perguntei.

“Se eu o veria assim?” – Responde – “Sim, sim. Há um jogo permanente entre o artista e o que o artista persegue, e aquilo que no fundo ele faz, que muita vez, quase sempre, transcende o seu projecto”, faz uma curta paragem e avança, “veja por exemplo toda a pintura ocidental, que é uma pintura determinada pela religião. Teoricamente devia acabar, uma vez que a religião é posta em questão, mas a verdade é que eu que não sou católico e continuo a emocionar-me com uma Virgem do Giotto”.

A arte está ligada à vida e vive dentro dela.

“O mesmo é outro, o mesmo é um poço aberto. Não há mesmos”. - Explica.

“E a arte?” – Interrogo.

“É parecido. É uma outra forma de se exprimir aquilo que se pode chamar inquietação. Um sexto conhecimento. Capacidade de absorção, amor, o que quiser. É um pote sem fundo. São cadeias de sensações, pensamentos…”

Paula Ferro

jornalismo - Francis Tondeur

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Novembro 2009

“Aurora da minha humanidade”

Uma exposição de Francis Tondeur, num clima de instalação, faz um chamamento ao visitante para inter-agir, brincar e descobrir, no Palácio da Galeria, em Tavira, até ao final do ano.

Escultura, desenho e vídeo coabitam um espaço organizado encorpando o mesmo desafio. Volumes em algodão puro tornado pano, com bordados, desenhos e janelinhas, escondem peças de madeira e bronze fundido que nos espicaçam a curiosidade.





“Não há criação sem audácia”

Francis Tondeur nasceu em Uccle, na Bélgica, em 1939. Começa por se formar em Arquitectura e Artes Visuais, depois licencia-se em Biologia Molecular e faz o doutoramento em Bioquímica. Desde 1963 realiza exposições individuais e colectivas em Galerias e Museus de vários países da Europa e no Brasil.

A sua obra materializa-se de modo variado: desenho, pintura, azulejos, arte pública, cenários para peças de teatro… Mas o que mais o atrai é a escultura.

Foi docente de disciplinas artísticas em Universidades portuguesas, nomeadamente em Évora e no Algarve.

“Há muita coisa em comum no artista e no cientista”, afirma. Ambos devem sentir desejo criativo, devem ter audácia, imaginação e senso da observação do acaso. “Quantas vezes um cientista busca uma coisa e encontra outras? Por causa de um acaso. A mesma coisa acontece em arte. O acaso é uma coisa fabulosa. Uma mancha inicialmente indesejada pode-se transformar num milagre e um erro pode ser utilizado para enriquecer uma peça”.

A audácia é muito importante, sem ela caímos na repetição ou nas modas. “Não há criação sem audácia”.

O que distingue o cientista do artista é o jogo e o material com que se joga. Por um lado é a molécula e todas as ferramentas das físicas e das químicas, por outro é a cor, o pincel, a forma e as ferramentas adequadas aos materiais que se usam. A base é a mesma. “Também é necessário, em ambas, a persistência, a teimosia, e a paixão. A paixão faz parte”.

Há uma ligação muito forte entre o agora e o passado. A sua infância está viva nesta exposição que nasce nas brincadeiras que o artista tinha em criança quando manuseava blocos de madeira. Francis redescobre os seus próprios gestos nos gestos do filho mais novo enquanto ele brinca e espontaneamente repete os movimentos cometidos pelo pai há muitos anos atrás. Ao observá-lo Francis revive-se e sente, com alguma surpresa, que nada mudou no seu gesto. Existe uma outra consciência, um outro conhecimento de gramáticas e uso de materiais, mas o gesto mantém-se intacto.

As forras em algodão reportam para a casa da sua avó e o modo como protegia os móveis, envolvendo-os com panos brancos que causaram em Francis um forte impacto estético. A sua imaginação era instigada pelas inúmeras possibilidades de objectos velados. Desiludia-se depois, quando as forras eram retiradas e os móveis se deixavam ver, mas este desafio de descobrir o que se esconde, ficou até aos dias de hoje.

Em “Aurora da minha humanidade”, as forras fazem parte das peças e são também a ponte para o espectador, encarnam o lado lúdico da exposição e o convite ao visitante para participar do jogo iniciado pelo artista. As forras podem ser tiradas, deixando ver a escultura que está por baixo. Tirá-las, quer dizer entrar no jogo.

As matrizes das peças são feitas de madeira maciça e forte. Reciclagem de vigas, pranchas de cofragem, materiais de construção. Reciclagem que se transporta para a própria criação das peças. As matrizes originais são reutilizadas. Nelas, Francis desenha, pinta e acrescenta bocados de tela, tecidos, torneiras, válvulas e outros objectos. Mistura a madeira com bronze fundido. As peças são cobertas por panos já costurados com janelas, brechas para o olhar, sugestões de possíveis “espreitadelas” para o “mundo” que está lá dentro.

Com espírito lúdico e sentido de humor, aborda temas sociais, culturais e raciais que examina com seriedade e um sentido crítico que pretende que se amplie. Incomodam-no os contra-sensos das religiões e fica entristecido com as consequências da cegueira dos dogmatismos e da ambição económica. Não cruza os braços. O ser humano é-o na posição vertical, mantém-se de pé e em eterno combate. O fluir da vida implica amor pela própria vida e pela sua evolução.






Arte pública em Tavira

As duas esculturas em bronze e os oito cata-ventos que se encontram na rotunda da estação de caminhos-de-ferro, em Tavira, são de sua autoria.

Em 2000, foi convidado para fazer um monumento à guerra colonial. Francis não gostou do tema mas investigou e descobriu uma ligação humana que lhe interessou: o amor entre os soldados provindos de todas as partes do país e as mulheres da terra. O rapaz faz um sinal e a rapariga também. Não se sabe se é a felicidade do regresso ou a aflição do adeus para a guerra. O mesmo gesto simboliza emoções ambíguas que foram vividas neste local, representativo das entradas e saídas da terra onde o soldado vivia dentro e fora do quartel, referenciado na farda típica da época. A rapariga, Francis encontrou na sua fantasia.

Os cata-ventos aludem à história da cidade, antigo centro de comércio que entrava pelo porto fluvial. Evoca a importância do conhecimento dos ventos para o marinheiro. “Daí o cata-vento”.

As suas cores fortes e formas arredondadas prendem-se com outra interpretação. Ali, naqueles balões de banda desenhada com volume e ao vivo, cuja página que é aquela rotunda, estão inscritas as emoções fogosas, saudosas, calorosas, entristecidas, dos amantes que se encontram e/ou se despedem, com a guerra como pano de fundo do pensamento.

Paula Ferro

jornalismo - Isabel Baraona


in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"


Janeiro 2010




“folhas, páginas e outros desenhos” de Isabel Baraona

Isabel Baraona nasceu em 1974 em Cascais. Em 1996 conclui o curso de Introdução à Escultura, Pintura, Vidro e Desenho pelo Centro de Arte e Comunicação Visual (AR.CO), em Lisboa, e em 1997 o bacharelato em Artes Decorativas pela Escola Superior de Artes Decorativas na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, em Lisboa. Em 2002 licencia-se em Pintura e Pesquisa Tridimensional na Ecole Nationale Supérieur dês Artes de La Cambre, em Bruxelas, Bélgica, e em 2006 faz uma pós-graduação em Pintura pela faculdade de Belas Artes de Lisboa. Desde 2003, é docente na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha. Começa a expor em 2001.

Uma narrativa mental construída através de imagens

“folhas, páginas e outros desenhos” tem estado patente ao público, e regressa, de 19 de Janeiro a 6 de Fevereiro de 2010, à Artadentro, em Faro. Trata-se de uma exposição de livros, feitos em desenho, e do processo de construção desses mesmos livros, da autoria de Isabel Baraona.

Isabel Baraona é uma artista cuja matéria de expressão é o desenho estruturado em forma de objecto-livro. Não se trata de catálogos ou compilações aleatórias de desenhos, são desenhos feitos com o objectivo de serem livros. A sua organização é ponderada, propositada, significativa, com uma sequência que conduz a uma leitura típica da narrativa. Existem estórias que se cruzam, e personagens que aparecem em várias estórias. “Estamos a falar de uma narrativa mental que é construída através de imagens”, elucida Isabel Baraona, “tenho personagens em mente e a intuição do que eles vão fazer, mas não sou escritora, não construo estes livros com base numa narrativa com princípio, meio e fim. Vou elaborando. Há livros que foram feitos em simultâneo, o que provavelmente dá azo a que personagens se repitam”.

Contar estórias sempre esteve presente no seu trabalho, “tenho séries de desenhos anteriores sobre os contos infantis, sobre os contos de fados e as mitologias”, mas agora, os desenhos são “feitos para serem impressos e apresentados em livro”.

A palavra também existe, mas aqui “é uma pontuação, é uma imagem. É uma palavra que é desenhada”, explica a artista, “as palavras acontecem enquanto desenho, enquanto caligrafia, enquanto pequenas pistas para as cenas de inter-acção entre os personagens, mas, evidentemente que não estamos a falar de prosa, nem de poesia, nem da leitura de um texto enquanto texto”.

Um livro para o qual eu espreito

Ao todo são cinco livros. O processo durou dois anos. “Agora que concluí este projecto dos livros, achei que seria interessante confrontar a colecção de livros com os desenhos originais”.

Um dos aspectos atraentes desta exposição é o facto de se poder comparar “a escala em que o desenho está reproduzido com a escala em que o desenho inicialmente foi feito” e o modo como a artista foi pensando, adaptando, e elaborando. “No processo criativo há sempre surpresas e também coisas que nós podemos planear muito, mas não há um domínio total”.

Outro aspecto a relevar é a aproximação do desenho, o carácter intimista como este nos é oferecido, “pelo facto de ser livro, uma forma que nos obriga a um contacto directo, poder-se-ia dizer ‘de mão em mão’ ou até ‘mãos nas mãos’, que nos obriga a observá-lo de um modo diferente do que seria” apresentado em exposição. Mesmo com os desenhos ordenados do mesmo modo, o facto de estarem expostos cria uma relação muito diferente do manusear um livro “que nos obriga a lê-lo. Aí reside toda a diferença, força, presença”. Por ser em livro e por ser “deste tamanho, intimista, um objecto que cabe nas mãos, quase de bolso. Pode-se esconder, guardar e é fácil manipular”. A escala do livro casa-se com o intimismo da acção dos personagens. “Não fazia muito sentido ser um livro grande, do qual tenho que me distanciar para ver. Faz sentido ser um livro para o qual eu espreito”.

Paula Ferro

jornalismo - Rico Sequeira









in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"




Janeiro 2010





Rico Sequeira expõe no Palácio da Galeria













Referências que se misturam criando um universo de universos




Rico Sequeira nasceu em Portugal, em 1954. Estudou no Luxemburgo, nos EUA. O convívio com outros artistas foi sempre uma constante. Nomes como António Inverno, João Vieira, João Botelho, Malagatana… povoam as suas histórias de vida e de aprendizagem fluida.




Foi músico profissional mas vendeu toda a aparelhagem para se dedicar à pintura. “Retirou-se” para o Museu do Prado, em Madrid, onde passava os dias a desenhar as obras de Goya. Isso marcou-o para sempre no modo de olhar.




O seu percurso expositivo inicia-se em 1982 e regista-se em vários países, entre os quais se destaca Portugal, Espanha, França, Alemanha, Luxemburgo, Brasil e Argentina. Entre exposições individuais e colectivas em galerias, foi convidado a expor em vários museus, como o Museu de Payerne (Suiça) e o Museu Meistermann (Alemanha) e também em Feiras e Salões Internacionais de Arte, como sejam a ARCO, a FAC e no Salão Grands et Jeunes.




Ser coleccionador é para Rico Sequeira uma forma de estar na sua arte. Colecciona, entre outras coisas, originais de banda desenhada que integram vários dos seus projectos como o de Tavira.




Serve-se de originais de outros artistas. “A obra nasce do encontro de objectos. Qualquer coisa que vejo: papéis bonitos, folhas de provas mal impressas… interessam-me. É um trabalho que não foi feito por mim, mas que tem, graficamente, uma estrutura muito importante e que eu introduzo no meu trabalho”.




É também escultor. “Gosto de escultura mas não sou escultor de partir pedra”. Busca o caminho mais eficaz. “Recorto o tecido, mando cozer, encho de algodão e faço o molde. As coisas têm que ser muito práticas e muito simples”.




O seu trabalho incide essencialmente sobre a pintura e o desenho, duas técnicas que frequentemente se confrontam embora algumas vezes se consigam conciliar, quando realmente se conseguem esbater e misturar, uma na outra, dentro da mesma obra.




“Sempre gostei muito de desenhar”. Diz não dar qualquer importância à cor. “Essa parte da pintura pinta, pinta, é um bocado animalesco”. Rico é mais suave, mais concebível, no seu trabalho, e o verdadeiramente importante é o desenho. “As cores são bonitas mas se estiver uma paleta ali, o que me vier à mão é que eu ponho. O Matisse já dizia que quando o desenho está bem construído, está tudo bem!”




No entanto, Rico Sequeira pinta, e não só pinta, como só usa as tintas que faz. “Compro o pigmento e faço as minhas cores. Assim dou-lhes a dimensão que quero”.




O seu traço é gestualista e cria um efeito plástico de aleatoriedade, no entanto, é o resultado de uma súmula de gestos que já contém em si o pensado. “Gostava de ser um pintor abstracto mas não consigo”, confessa. E enceta uma conversa sobre o poder do escondido, do que está por baixo da tela que se pinta e de como esse escondido faz parte da própria obra.




Usa frequentemente técnicas mistas com colagens. Estas são a ponte entre a pintura e a originalidade da banda desenhada.


“Hops! Tom & Rico”: BD de Rico Sequeira

“’Hops! Tom & Rico’: BD de Rico Sequeira” é a exposição que se encontra patente ao público no Palácio da Galeria, em Tavira, até ao dia 30 de Janeiro de 2010.

Trata-se de um projecto antigo de Rico Sequeira que aqui se materializou. Uma espécie de “bomba-informação” provinda de milhentos lugares. Referências que se misturam criando um universo de universos que se aglutinam através do génio criador do artista, unidade da multiplicidade que é o mundo, destacando um lado onírico quase vivo, acrescentado pelo apelo à participação na criação conjunta.

Esta exposição oferece inúmeros encontros de opostos: o desenho e a pintura; a BD e a arte; a palavra que se exprime através da escrita e da escultura, nas onomatopeias, onde o som se congela em forma, apelando a outro modo de olhar esteticamente; a mostra do que existe, do que é, como que “sagrado”, os valiosos originais que o artista se esforça por encontrar por esse mundo fora, “profanados” por uma nova criação que não anula a primeira, antes lhe acrescenta o fluir da vida e do mundo inesgotado e interminado. E no valor estético tudo se equipara, os originais de BD e as provas de impressão mal feita. O que interessa é a estrutura gráfica que estimula o artista a ir mais além na expressão de si próprio como elo harmonizador da multiplicidade.

Para além da vertente informativa (exposição de partes da sua colecção, e das obras de sua autoria apresentadas em diversos formatos), há um lufar de cor em gritaria, um ar de festa e infância à solta e uma proposta num painel: “Estes quadros são para ser pintados pelas pessoas que visitam a exposição. Podem desenhar, escrever”… explica Rico, “depois faço uma intervenção, passo verniz e estes quadros vão constar, no próximo ano, na exposição de Schengen”, no Luxemburgo. E, os traços de quem por aqui passa, misturam-se com o traço do fluir da história, para além-fronteiras, compondo já, as próximas obras de Rico Sequeira.

Paula Ferro



jornalismo - Álvaro de Mendonça

in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"
25 de Fevereiro de 2010

O poema urgente
Arte como modo permanência



Álvaro de Mendonça (1959), nasceu em Faro. Viveu sempre entregue a vários ramos das artes navegando abaixo da superfície. A arte é um modo de ser, não obstante isso, gosta de frequentar os lugares comuns e os subterrâneos da humanidade onde encontra as suas essências.
Qual é a sua formação?
Escola Superior de Belas Artes (ESBAL) de Lisboa, Pintura. Depois fui dar aulas. A partir de 85.
Gostou?
A princípio gostei apesar de ter sido iniciado sem qualquer preparação. Foi muito bom trabalhar com crianças e adolescentes. Tive a oportunidade de reaprender muitas coisas. A partir de 2005 deixou de fazer sentido pois os professores foram desprezados de forma indigente.
Tem tido um percurso artístico…
Claro! Desenho, pintura, poesia… Desde sempre. E também design gráfico, pois comecei por desenhar embalagens de plástico para produtos congelados.
O seu percurso individual como artista?
Nunca aderi a esquemas comerciais em nada.
Exposições…
Participei em muitas: Colectivas na Escola de Belas Artes, na Sociedade Nacional de Belas Artes, no Casino Estoril… Fiz a primeira individual em 83 no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) a convite da Associação de Alunos. Fiz outras… A última foi na Galeria Trem em Faro e a próxima vai ser no Convento dos Capuchos em Almada.
Quando é que começou a gostar de desenho?
Desde muito cedo. Vivia numa casa à beira de uma floresta. Nasci em Faro mas o meu pai era militar e fomos viver para a zona de Sintra. Aí, passava os dias a desenhar, e tive acesso a um imaginário fabuloso.
Antes da escola?
Sim.
Também escreve…
Sim. Comecei a escrever poesia em Luanda, em 1972. Tinha comprado uma antologia luso-americana onde encontrei, pela primeira vez, o texto “arte poética” de Jorge Luís Borges. Fiquei de tal forma impressionado que me impus começar a escrever e então comecei.
Costuma ler outros poetas?
Leio todos.
Tem preferências?
Sim. Borges e Pessoa, sobre todos. De resto, Coleridge, Eliot, Whitman, Poe, Baudelaire, etc.
E de romance, gosta?
Não é uma questão de gosto. O primeiro livro que comprei na minha vida foi “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski. Tinha treze anos.
Marcou-o?
Sim. Da forma mais impressionante. Não era propriamente um livro para ler naquela idade. O que aconteceu foi uma espécie de impressão profunda.
Impressão como?
Foi algo que me afectou para o resto da vida. Não me apercebi disso quando o li. Mas de facto, estava já perante aquilo que viria a ser o meu processo de destruição da personalidade.
“Tenho o direito de destruir tudo aquilo que construo”
Como assim?
Trata-se da construção de um personagem que passa a habitar o nosso tempo comum. Depois, podemos destruí-lo…
Até que ponto isso se insere na sua obra?
Trata-se de todo o processo de criação. Criação/destruição. Só quem consegue construir o personagem é que pode destruí-lo. Mais ninguém tem esse direito nem essa possibilidade.
Como é que isso interfere no seu processo criativo?
É simples. Eu tenho o direito de destruir tudo aquilo que construo. Tal como o genérico da humanidade. Todos nós imaginamos coisas e, de repente, por um acidente qualquer as esquecemos. É só!
É urgente para si a poesia?
Sempre.
Como é que a vive?
De uma forma natural. Não é a poesia que me interessa, é o modo como se pensa, como se sente o poema.
Trabalha a poesia?
Raramente. Normalmente é a “la prima”. O que sai é o que fica, em termos de escrita. O processo de sentir até chegar à escrita é que é muito mais moroso.
Como é esse processo?
Tem-se modificado muito ao longo do tempo. Quando era adolescente escrevia poesia porque gostava, sentia-me bem e afastava-me das coisas, pegava na máquina de escrever e ia escrever. Depois foi-se modificando. Cada vez mais, começou a virar as coisas ao contrário. Comecei a viver para a poesia.
Como é que se escreve?
Escrever é um momento raro. Acima de tudo tem que se viver o instante. Sem o instante nada existe. A poesia é, de facto, um momento de emoção. Não interessa a escrita. A escrita é um acidente previsto. O poema não se pode escrever… tem que se sentir.
Tem obras publicadas?
Publiquei um livro em 2005. Na altura, uma colectânea de textos recentes.
Mas tem poesia para publicar?
Tenho!
Escritas recentes?
Sim. Todos os dias escrevo um poema. Há mais de mil anos que escrevo um poema todos os dias, agora está a ver, um poema por dia, dá trezentos e sessenta e cinco poemas por ano, ou seja, mais de três mil e seiscentos e cinquenta poemas ao fim de dez anos…Eu ando aqui há séculos, e já escrevi largos milhares de poemas.
E os antigos já estão gastos?
De forma nenhuma. Nós somos sobreviventes da civilização ocidental. Não nos podemos esquecer dos gregos nem dos romanos, nem dos reinos que nos atravessaram. Ulisses é uma referência universal e intemporal, tal como Shakespear, Camões, Dante e Giordano Bruno.
“Desenhar ou escrever é a mesma coisa”
Poesia e desenho?
Para mim desenhar ou escrever é a mesma coisa. Tanto me faz desenhar um poema como escrever um desenho.
Nunca pensou em fazer um livro de artista com poesia e desenho?
Pensei. Tenho isso previsto. Os materiais estão quase prontos.
O que o move?
É a sensibilidade extrema. É a mesma coisa que dizer “não há pão para malucos”!
Desenha sempre a figura humana?
Sempre desenhei a figura humana. Quando comecei a desenhar, rapidamente passei dos bonequinhos para o desenho à vista. Com cinco, seis anos de idade desenhava figuras. Pessoas que via, pessoas que encontrava. Não passei propriamente por aquela fase dos bonecos com as mãos no ar e nuvens na cabeça, passei logo a uma forma figurativa, observada, sem partir do imaginário.
Não passou pelos objectos?
Também. Aliás, o meu pai tinha trazido da Índia uma mala de cânfora com arabescos e rendilhados enormes, esculpidos na madeira… Passava dias e dias a desenhar aquelas coisas. Era o meu grande modelo. No meio daquilo havia muitas figuras humanas que ia criando, que ia mexendo, quando mudava de posição…
Na pintura a figura humana também é central…
Sim. A figura humana é central. É o grande sujeito.
Porquê?
Porque nós somos só reflexo de nós próprios.
Não tem influências de mais ninguém?
Eu sofro de todo o tipo de influências. Todos os autores me afectam. Desde Fídias até Francis Bacon (séc. XX).
E na poesia?
Eu li gregos, romanos e troianos. Li Vergílio. Li na rocha profunda os anónimos que atravessaram a Antiguidade e toda a Idade Média. Recentemente, os textos de Fulcanelli. De resto, agora, Pablo Neruda, Allan Ginsberg…
“Aprendi a ser universal com Borges”
Portugueses?
Aprendi a ser universal com Borges. Não posso limitar-me à nacionalidade, apesar de pensar que, de facto, Pessoa é um ser infinito.
Quem é Pessoa para si?
Nos nossos dias, Pessoa é um escroque. Foi utilizado da forma mais repugnante pelo Estado.
Como assim?
Toda a gente sabe que o único livro que publicou em vida foi uma coisa com noventa e tal páginas. Mas isso serviu para espelhar o Império. O nosso Império.
E o baú?
O baú era dele. Ninguém tinha que ir lá vasculhar. A partir de certa altura, tornou-se moda e símbolo das mais diversas conjecturas intelectuais… vasculhar no baú do Fernando. E toda a gente foi lá buscar coisas, até as mais insignificantes, como rabiscos inúteis em pedaços de papel rasgado. Há dias fui ao Martinho da Arcada beber um copo e já lá não podia entrar. Tive que ficar na esplanada, cá fora, a pensar que podia ir lá dentro sentar-me à mesa com ele. Mas afinal, só lá estava um copo vazio quando todos sabemos que o que ele gostava era de copos cheios. Outra vez, andava eu a passear pela “Feira da Ladra às sete da manhã”, quando olho de soslaio para uma bancada estendida no chão e vejo um título que dizia: “ A Centenary Pessoa”.
Já foi à Casa Pessoa?
Sim. Fui lá passear há tempos com as minhas filhas. Pensava que lhes ia mostrar onde habitava o “Mestre”. Acabei por ter problemas para estacionar o carro e depois lá conseguimos entrar. Estava fechada. Só lá estavam os seguranças que não me souberam dizer nada mas, que nos deixaram entrar. Depois lá vimos a máquina de escrever, restos de textos espalhados e repetidos pelas paredes… e o quartinho onde, de facto, ele terá habitado, sem casa de banho.
O Futurismo diz-lhe alguma coisa?
Pelo que sei, o Futurismo em Portugal era ali no Chiado e às portas da Brasileira. O Santa Rita Pintor dava “estrilho” quando lhe apetecia, uns foram para Paris, uns outros estavam internados em hospícios, outros foram para Londres e alguns outros para Nova Iorque. Quem ficou cá? Foi o Álvaro de Campos que, tinha uma vantagem perante todos os outros, era o facto de não existir.
Quer dizer que o Futurismo não existiu?
Existiu, existiu… mas não serviu para nada. Quem se aproveitou bem foi o Almada.
“Temos que lutar contra a iniquidade”
Porquê?
O Almada sempre foi um poeta medíocre, tal como medíocre foi na expressão plástica… apesar de sustentado pelo marketing intelectual da época. Basta ir à Gulbenkian e olhar para aquele painel que nos obstrui a entrada, ou então, ir ao Cais e olhar para aquelas coisas. O “Quadrado Azul” é para esquecer.
E o Manifesto Anti-Dantas?
O Dantas era um parvalhão, e toda a gente se aproveitava dele, obviamente que o Almada teve que lá dar o seu “peido”. Até os retratos que ele fez do Pessoa são coisas delambidas.
Como se define como pintor?
Sou uma espécie de “neo-neo-expressionista” como diz a Brooke McGowen que agora vive em Nova Iorque.
O que é isso?
É elevar o gesto até à expressão. O “neo-neo-expressionismo” é uma corrente abstracta que resulta de um processo criativo complexo. Tem a ver com uma espécie de “abstracto-convencionismo”, ou seja, se nós conseguimos produzir uma imagem abstracta, também, ao mesmo tempo, conseguimos utilizar uma representação pictórica daquilo que não queremos representar. Pode parecer complicado, mas as coisas são mesmo assim. Uma vez pensámos que seria possível criar uma corrente chamada “abstract-realism”, ou seja, realismo abstracto, mas isso não deu nada, nem nunca há-de dar nada.
Onde encontra a sua inspiração?
Eu não tenho inspirações. Tudo aquilo que faço obedece a uma fórmula concisa.
Pode explicar melhor?
A inspiração é uma imagem metafórica que utilizamos desde que concebemos uma linguagem que tem a possibilidade de expressar a emoção. A emoção é a inspiração.
E a transpiração?
Isso deve ser uma coisa abjecta a que não temos acesso.
E essa história dos 5% de inspiração e 95 de transpiração?
Isso faz-me lembrar a nossa questão animal. Transpiramos pelo que pensamos mas nunca transpiramos por pensar.
Tem algum projecto entre mãos?
Tenho. Aniquilar a personalidade.
Isso é possível?
Sim. Com muito esforço. Temos que lutar contra a iniquidade.
Qual o seu próximo passo?
Destruir-me enquanto autor. E esta é a última entrevista que dou.
Porquê?
É uma questão de coerência.

Paula Ferro

quinta-feira, 11 de março de 2010

Jornalismo - Nuno Faria

in ".S" - Caderno de Artes do Postal do Algarve
28 de Janeiro de 2010


Uma ética que é uma estética

Nuno Faria nasceu em 1971 em Lisboa, formou-se em História da Arte pela Université Libre de Bruxelles, é professor do Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co – Centro de Artes e Comunicação Visual e do Curso de Artes Visuais da Universidade de Faro. Escreveu na Revista História – Jornal de Letras, foi subdirector do Instituto de Arte Contemporânea, actual Instituto das Artes. Foi consultor e curador residente do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian.
Veio residir para o Algarve no início do séc. XXI onde fez vários projectos: “Os dias de Tavira”, no ano de criação do Palácio da Galeria “em armazéns de sal, numa vertente sobretudo de arte contemporânea, com pessoas como o Francisco Tropa, Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft, Augusto Alves da Silva, entre outros”. No âmbito de “Faro, Capital da Cultura”, fez um projecto na Quinta de Marim, entre outros.
Foi convidado pela Fundação de Serralves para ser coordenador local da segunda edição do Allgarve.
Vive actualmente perto de Loulé e pretende “fazer um trabalho estruturante que crie um contexto e instancias críticas que contribuam para que o Algarve cumpra o seu destino que não é ser um mero local de férias, é sim, reencontrar a sua natureza de ponto de encontro, de troca civilizacional e cultural”.
Sente que no seu trabalho há “uma espécie de missão que o investe de uma responsabilidade muito para além do próprio prazer ou da realização profissional”, é absolutamente uma “uma ética e uma estética em simultâneo”.


Mobilehome
“Mobilehome – Curso Experimental de Arte Contemporânea” foi organizado pelo Atelier Educativo e a Câmara Municipal de Loulé, coordenado por Nuno Faria, decorreu no passado Verão e terminou com uma exposição no Lagar das Portas do Céu em Loulé. Este curso, integrado na programação do Allgarve dirigiu-se a artistas com percurso e a participação esteve sujeita a selecção.
“O projecto Mobilehome tem que ver com a leitura que fiz sobre as lacunas mais gritantes no panorama da arte contemporânea no Algarve”, explica Nuno, “não existem instâncias críticas no Algarve ou existem de forma muito isolada. Contam-se pelos dedos os espaços galerísticos com consistência e, mesmo assim, uma só mão chega e sobra. Uma das lacunas mais gritantes e aflitivas é o facto de haver uma panóplia muito interessante de artistas com trabalhos sólidos, a trabalhar cá, sem um enquadramento crítico. Os artistas precisam de diálogo, de trocar ideias, de ter pessoas em quem confiem e que saibam entabular uma crítica. Os artistas com trabalho consolidado são seres muito complexos e com uma estrutura crítica muito forte mas carecem muito do seu contexto para desenvolver trabalho e discutir sobre ele no sentido de enriquecer e ganhar novas perspectivas a partir dele”.
Faltava um bom projecto educativo que juntasse os artistas criando uma ponte de diálogo e acompanhamento de trabalho. “Faltava sobretudo um projecto equiparado ao que poderia ser uma pós-graduação, independente e experimental, para artistas com percurso e que convocasse outros artistas. A perspectiva tem que ser sempre a de tentar perceber o que é que faz falta e de abrir o lugar também a outras pessoas. Essa é a melhor maneira de se ultrapassar, de uma vez por todas, esta relação viciada e completamente assimétrica que é o mundo contemporâneo do Algarve e o seu modo de se posicionar como região periférica que é. A periferia geográfica não tem que corresponder uma periferia de pensamento. Quem acompanha o que se passa a nível internacional nas grandes dinâmicas de programação percebe que os ditos centros estão muito interessados nas periferias e estão a redescobri-las porque elas têm um potencial enorme”.
Trata-se de uma espécie de curso ou escola de Verão e “baseou-se num formato muito simples de seminário/workshop e numa relação de tutores com os participantes, de artista para artista, de curador ou de crítico para artista, e acredito que só é possível fazer isto com pessoas que tenham acção no meio, uma acção verdadeira, com pessoas que façam”.
Foram convocados artistas, “portugueses ou não, a viverem cá ou não, para fazerem parte deste corpo. Houve uma série de conferências, de masterclass e de artistas a falarem sobre o seu trabalho. Houve sobretudo cinco semanas de curso muito intensas que tiveram uma belíssima participação reunindo um conjunto de artistas muito qualificados, muito interessantes, que vivem aqui e trabalham aqui. Penso que a experiência foi muito forte para eles”. Participaram também artistas de outros pontos do país e do estrangeiro.
“Estamos a preparar a segunda edição que já está praticamente formatada”, informa, “em Novembro houve um encontro de preparação com vários tutores. É um projecto com um orçamento bastante vago. Não se acredite que só se fazem coisas com orçamentos altos”.
Este ano o formato vai ser sobretudo de investigação sobre o território. “A arte contemporânea tem uma dimensão política interventiva no sentido nobre do termo e, ao grupo de tutores, parecia impossível não se fazer um trabalho sobre o território, sobre as instituições, sobre esta bipolaridade algarvia. A bipolaridade litoral/ interior, Verão/ resto do ano, a produção própria, agrícola ou piscatória e o fornecimento de serviços, a relação entre a paisagem e os campos de golfe”.
O próximo Mobilehome vai ter também uma forte componente de residência para as pessoas se concentrarem totalmente no seu trabalho e vai haver um naipe de tutores absolutamente invejável.
“O encontro de preparação foi muito importante. Convidámos o Francisco Palma Dias para fazer uma leitura sobre o território. Ele é uma das pessoas mais decisivas, uma das muitas pessoas que aqui, no Algarve, se mantêm recatadas mas têm uma produção de pensamento absolutamente central. Convidei um arquitecto relativamente jovem, o João Soares que nasceu em Loulé, estudou em Veneza, é professor na Universidade de Évora e escreveu uma tese sobre o território algarvio, sobre as mudanças do território, muito pressionado pelo turismo. Tudo isto numa perspectiva de criar conhecimento e de multiplicar esse conhecimento. As coisas têm dado frutos. Alguns artistas estrangeiros que cá vieram querem estabelecer-se aqui, alguns até já o fizeram. Isto é uma lógica sempre multiplicadora. E é preciso entender uma coisa: estes projectos não se fazem com dinheiro, fazem-se com conhecimentos, com contactos, com o trabalho que vai sendo cozido. O meio da arte contemporânea é um meio que se move muito pela generosidade das pessoas. Estes projectos são muito acarinhados pelos agentes do meio, têm uma enorme visibilidade pública e percebe-se que têm em si uma semente que pode crescer de um modo muito forte”.
O projecto Mobilehome é uma parceria do Atelier Educativo com a Câmara Municipal de Loulé, “que continua e estamos a preparar um forte programa educativo que cobre vários escalões etários, várias áreas e pretende reunir um conjunto de pessoas em torno da energia que a arte contemporâneas evoca”.

Algarve Visionário, Excêntrico e Utópico
A Rede de Museus do Algarve criou um projecto expositivo que se chama “Algarve, do Reino à Região” que vai ter lugar em Maio do corrente ano onde participam catorze museus, tendo cada museu uma exposição dedicada a um tema e a uma época. O Museu Municipal de Faro escolheu o séc. XX e convidou Nuno Faria para conceber e comissariar um projecto relativo à arte contemporânea. O projecto apresentado intitula-se “Algarve Visionário, Excêntrico e Utópico” e faz uma leitura a partir de uma tese e de uma figura tutelar.
“A figura tutelar é o poeta João Lúcio que foi muito mais do que um poeta simbolista”, explica o curador, “tinha um trabalho e toda uma existência muito utópica e visionária com o chalé que construiu para criar, para escrever e que infelizmente não chegou a usar com a intensidade com que queria. João Lúcio tem todo um contexto e um conjunto de figuras anunciadoras como o João de Deus que ia e vinha para Coimbra, escrevinhando os seus poemas e dedilhando a sua guitarra numa espécie de prenúncio de uma beat generation. Teixeira Gomes, um vulto absolutamente incrível, foi a visão que o levou mais longe e à abdicação do poder para o exercício da viagem”.
Esta exposição, a partir de um conjunto de figuras, tenta estabelecer uma leitura do território e do modo como este influencia as pessoas “e tenta marcar um conjunto de projectos mais ou menos utópicos, mais ou menos excêntricos, mais ou menos conhecidos. Dá-nos a realidade deste território que é completamente estilhaçada, muito polimórfica, em que as pessoas raramente falam umas com as outras, em que vêm para estar isoladas, para realizar a sua mitologia e a sua utopia individual.”
A exposição estabelece uma ligação entre o Norte e o Sul. “O Algarve é uma espécie de Norte do Sul e de Sul do Norte. Desde sempre há uma relação simbolista com o mundo própria do Norte, essa relação intensa com a natureza, essa infalibilidade com os fenómenos. Isso confirma-se com a presença de um conjunto de figuras do grande Norte, os nórdicos, os austríacos, os alemães, os franceses, numa relação de grande fascínio. Isso tem que ver com o magnetismo deste lugar e o que a exposição faz, num certo sentido, é tentar mapear várias tipologias de relações com o lugar”. A construção da casa “que é a máxima utopia de valorização pessoal. Grande parte de projectos excêntricos e completamente deslocados do lugar são exemplo disso”.
A exposição é composta por vários núcleos. “Um núcleo que se chama ‘Gastronomia enquanto obra de arte total’ apresenta várias figuras e a importância da alimentação e da cozinha neste lugar e contém figuras que basearam todo o seu trabalho criativo aí, pessoas de cá e outras que vieram para cá, mas que levaram estes projectos para o Norte”.
Outro núcleo que tem que ver com o experimentalismo e como figura central René Bertholo apresenta “um disco maravilhoso que se chama ‘Um Argentino no Deserto’, um disco de música electrónica e experimental a que Bertholo dedicou grande parte da sua vida”.
Outro núcleo elege “a plêiade de personagens ligadas à poesia, à palavra, ou à tertúlia no final dos anos 50, princípio dos 60 que aconteceu em Faro gerando esse movimento absolutamente essencial para a mudança radical da literatura portuguesa a que se chama ‘Poesia 61’ e reuniu pessoas como Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge, Gastão Cruz, Manuel Baptista, António Barahona e até Zeca Afonso. Aqui vai-se tentar ver, de uma forma mais ou menos livre, como o território influenciou a escrita”.
Outro núcleo diz respeito à relação entre a pintura e a escrita. A palavra e imagem, a poesia e a pintura. “Chama-se ‘Lagos são os Lagos’ e está entre o Joaquim Bravo e a Sofia de Melo Breyner”.
A exposição vai ocupar quatro lugares em Faro: as galerias municipais Trem e Arco, o Museu Municipal e no Museu Regional. “É uma exposição muito forte que vai durar sete meses. É uma espécie de laboratório e também uma homenagem ao Manuel Baptista. Vai ser um trabalho crítico mais decantado”. Os seus grandes “cúmplices” são Vasco Célio e com o Jorge Graça. “É um bocadinho agitar as águas, criar um chão para se debater”, explica, “e é uma exposição com um orçamento relativamente baixo”.
Sobre as críticas à falta de artistas da região no Allgarve,
Nuno Faria afirma: “O debate sobre o Allgarve é um desencontro de ideias e uma perda de energias. Assisti às mais patéticas manifestações de ignorância provindas quer de pessoas do Algarve e que aqui trabalham, quer de pessoas de Lisboa e do Porto e que têm responsabilidades críticas. O projecto Mobilehome esteve incluído na programação oficial do Allgarve e é um projecto que está a ser feito aqui, por uma associação sedeada no Algarve, em parceria com uma câmara algarvia e reuniu mais de vinte artistas que trabalham cá, vivem cá e são de cá.
É preciso ter conhecimento de causa para se falar sobre as coisas. Ninguém tem legitimidade crítica se não sabe distinguir o trigo do joio. Agora quando se quer ter plataforma, ter tribuna para se mostrar e se recorre a um tema como estes, é evidente que não se pode estar à espera que se fale de modo responsável”.

Paula Ferro