quinta-feira, 18 de março de 2010

jornalismo - Álvaro de Mendonça

in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"
25 de Fevereiro de 2010

O poema urgente
Arte como modo permanência



Álvaro de Mendonça (1959), nasceu em Faro. Viveu sempre entregue a vários ramos das artes navegando abaixo da superfície. A arte é um modo de ser, não obstante isso, gosta de frequentar os lugares comuns e os subterrâneos da humanidade onde encontra as suas essências.
Qual é a sua formação?
Escola Superior de Belas Artes (ESBAL) de Lisboa, Pintura. Depois fui dar aulas. A partir de 85.
Gostou?
A princípio gostei apesar de ter sido iniciado sem qualquer preparação. Foi muito bom trabalhar com crianças e adolescentes. Tive a oportunidade de reaprender muitas coisas. A partir de 2005 deixou de fazer sentido pois os professores foram desprezados de forma indigente.
Tem tido um percurso artístico…
Claro! Desenho, pintura, poesia… Desde sempre. E também design gráfico, pois comecei por desenhar embalagens de plástico para produtos congelados.
O seu percurso individual como artista?
Nunca aderi a esquemas comerciais em nada.
Exposições…
Participei em muitas: Colectivas na Escola de Belas Artes, na Sociedade Nacional de Belas Artes, no Casino Estoril… Fiz a primeira individual em 83 no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) a convite da Associação de Alunos. Fiz outras… A última foi na Galeria Trem em Faro e a próxima vai ser no Convento dos Capuchos em Almada.
Quando é que começou a gostar de desenho?
Desde muito cedo. Vivia numa casa à beira de uma floresta. Nasci em Faro mas o meu pai era militar e fomos viver para a zona de Sintra. Aí, passava os dias a desenhar, e tive acesso a um imaginário fabuloso.
Antes da escola?
Sim.
Também escreve…
Sim. Comecei a escrever poesia em Luanda, em 1972. Tinha comprado uma antologia luso-americana onde encontrei, pela primeira vez, o texto “arte poética” de Jorge Luís Borges. Fiquei de tal forma impressionado que me impus começar a escrever e então comecei.
Costuma ler outros poetas?
Leio todos.
Tem preferências?
Sim. Borges e Pessoa, sobre todos. De resto, Coleridge, Eliot, Whitman, Poe, Baudelaire, etc.
E de romance, gosta?
Não é uma questão de gosto. O primeiro livro que comprei na minha vida foi “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski. Tinha treze anos.
Marcou-o?
Sim. Da forma mais impressionante. Não era propriamente um livro para ler naquela idade. O que aconteceu foi uma espécie de impressão profunda.
Impressão como?
Foi algo que me afectou para o resto da vida. Não me apercebi disso quando o li. Mas de facto, estava já perante aquilo que viria a ser o meu processo de destruição da personalidade.
“Tenho o direito de destruir tudo aquilo que construo”
Como assim?
Trata-se da construção de um personagem que passa a habitar o nosso tempo comum. Depois, podemos destruí-lo…
Até que ponto isso se insere na sua obra?
Trata-se de todo o processo de criação. Criação/destruição. Só quem consegue construir o personagem é que pode destruí-lo. Mais ninguém tem esse direito nem essa possibilidade.
Como é que isso interfere no seu processo criativo?
É simples. Eu tenho o direito de destruir tudo aquilo que construo. Tal como o genérico da humanidade. Todos nós imaginamos coisas e, de repente, por um acidente qualquer as esquecemos. É só!
É urgente para si a poesia?
Sempre.
Como é que a vive?
De uma forma natural. Não é a poesia que me interessa, é o modo como se pensa, como se sente o poema.
Trabalha a poesia?
Raramente. Normalmente é a “la prima”. O que sai é o que fica, em termos de escrita. O processo de sentir até chegar à escrita é que é muito mais moroso.
Como é esse processo?
Tem-se modificado muito ao longo do tempo. Quando era adolescente escrevia poesia porque gostava, sentia-me bem e afastava-me das coisas, pegava na máquina de escrever e ia escrever. Depois foi-se modificando. Cada vez mais, começou a virar as coisas ao contrário. Comecei a viver para a poesia.
Como é que se escreve?
Escrever é um momento raro. Acima de tudo tem que se viver o instante. Sem o instante nada existe. A poesia é, de facto, um momento de emoção. Não interessa a escrita. A escrita é um acidente previsto. O poema não se pode escrever… tem que se sentir.
Tem obras publicadas?
Publiquei um livro em 2005. Na altura, uma colectânea de textos recentes.
Mas tem poesia para publicar?
Tenho!
Escritas recentes?
Sim. Todos os dias escrevo um poema. Há mais de mil anos que escrevo um poema todos os dias, agora está a ver, um poema por dia, dá trezentos e sessenta e cinco poemas por ano, ou seja, mais de três mil e seiscentos e cinquenta poemas ao fim de dez anos…Eu ando aqui há séculos, e já escrevi largos milhares de poemas.
E os antigos já estão gastos?
De forma nenhuma. Nós somos sobreviventes da civilização ocidental. Não nos podemos esquecer dos gregos nem dos romanos, nem dos reinos que nos atravessaram. Ulisses é uma referência universal e intemporal, tal como Shakespear, Camões, Dante e Giordano Bruno.
“Desenhar ou escrever é a mesma coisa”
Poesia e desenho?
Para mim desenhar ou escrever é a mesma coisa. Tanto me faz desenhar um poema como escrever um desenho.
Nunca pensou em fazer um livro de artista com poesia e desenho?
Pensei. Tenho isso previsto. Os materiais estão quase prontos.
O que o move?
É a sensibilidade extrema. É a mesma coisa que dizer “não há pão para malucos”!
Desenha sempre a figura humana?
Sempre desenhei a figura humana. Quando comecei a desenhar, rapidamente passei dos bonequinhos para o desenho à vista. Com cinco, seis anos de idade desenhava figuras. Pessoas que via, pessoas que encontrava. Não passei propriamente por aquela fase dos bonecos com as mãos no ar e nuvens na cabeça, passei logo a uma forma figurativa, observada, sem partir do imaginário.
Não passou pelos objectos?
Também. Aliás, o meu pai tinha trazido da Índia uma mala de cânfora com arabescos e rendilhados enormes, esculpidos na madeira… Passava dias e dias a desenhar aquelas coisas. Era o meu grande modelo. No meio daquilo havia muitas figuras humanas que ia criando, que ia mexendo, quando mudava de posição…
Na pintura a figura humana também é central…
Sim. A figura humana é central. É o grande sujeito.
Porquê?
Porque nós somos só reflexo de nós próprios.
Não tem influências de mais ninguém?
Eu sofro de todo o tipo de influências. Todos os autores me afectam. Desde Fídias até Francis Bacon (séc. XX).
E na poesia?
Eu li gregos, romanos e troianos. Li Vergílio. Li na rocha profunda os anónimos que atravessaram a Antiguidade e toda a Idade Média. Recentemente, os textos de Fulcanelli. De resto, agora, Pablo Neruda, Allan Ginsberg…
“Aprendi a ser universal com Borges”
Portugueses?
Aprendi a ser universal com Borges. Não posso limitar-me à nacionalidade, apesar de pensar que, de facto, Pessoa é um ser infinito.
Quem é Pessoa para si?
Nos nossos dias, Pessoa é um escroque. Foi utilizado da forma mais repugnante pelo Estado.
Como assim?
Toda a gente sabe que o único livro que publicou em vida foi uma coisa com noventa e tal páginas. Mas isso serviu para espelhar o Império. O nosso Império.
E o baú?
O baú era dele. Ninguém tinha que ir lá vasculhar. A partir de certa altura, tornou-se moda e símbolo das mais diversas conjecturas intelectuais… vasculhar no baú do Fernando. E toda a gente foi lá buscar coisas, até as mais insignificantes, como rabiscos inúteis em pedaços de papel rasgado. Há dias fui ao Martinho da Arcada beber um copo e já lá não podia entrar. Tive que ficar na esplanada, cá fora, a pensar que podia ir lá dentro sentar-me à mesa com ele. Mas afinal, só lá estava um copo vazio quando todos sabemos que o que ele gostava era de copos cheios. Outra vez, andava eu a passear pela “Feira da Ladra às sete da manhã”, quando olho de soslaio para uma bancada estendida no chão e vejo um título que dizia: “ A Centenary Pessoa”.
Já foi à Casa Pessoa?
Sim. Fui lá passear há tempos com as minhas filhas. Pensava que lhes ia mostrar onde habitava o “Mestre”. Acabei por ter problemas para estacionar o carro e depois lá conseguimos entrar. Estava fechada. Só lá estavam os seguranças que não me souberam dizer nada mas, que nos deixaram entrar. Depois lá vimos a máquina de escrever, restos de textos espalhados e repetidos pelas paredes… e o quartinho onde, de facto, ele terá habitado, sem casa de banho.
O Futurismo diz-lhe alguma coisa?
Pelo que sei, o Futurismo em Portugal era ali no Chiado e às portas da Brasileira. O Santa Rita Pintor dava “estrilho” quando lhe apetecia, uns foram para Paris, uns outros estavam internados em hospícios, outros foram para Londres e alguns outros para Nova Iorque. Quem ficou cá? Foi o Álvaro de Campos que, tinha uma vantagem perante todos os outros, era o facto de não existir.
Quer dizer que o Futurismo não existiu?
Existiu, existiu… mas não serviu para nada. Quem se aproveitou bem foi o Almada.
“Temos que lutar contra a iniquidade”
Porquê?
O Almada sempre foi um poeta medíocre, tal como medíocre foi na expressão plástica… apesar de sustentado pelo marketing intelectual da época. Basta ir à Gulbenkian e olhar para aquele painel que nos obstrui a entrada, ou então, ir ao Cais e olhar para aquelas coisas. O “Quadrado Azul” é para esquecer.
E o Manifesto Anti-Dantas?
O Dantas era um parvalhão, e toda a gente se aproveitava dele, obviamente que o Almada teve que lá dar o seu “peido”. Até os retratos que ele fez do Pessoa são coisas delambidas.
Como se define como pintor?
Sou uma espécie de “neo-neo-expressionista” como diz a Brooke McGowen que agora vive em Nova Iorque.
O que é isso?
É elevar o gesto até à expressão. O “neo-neo-expressionismo” é uma corrente abstracta que resulta de um processo criativo complexo. Tem a ver com uma espécie de “abstracto-convencionismo”, ou seja, se nós conseguimos produzir uma imagem abstracta, também, ao mesmo tempo, conseguimos utilizar uma representação pictórica daquilo que não queremos representar. Pode parecer complicado, mas as coisas são mesmo assim. Uma vez pensámos que seria possível criar uma corrente chamada “abstract-realism”, ou seja, realismo abstracto, mas isso não deu nada, nem nunca há-de dar nada.
Onde encontra a sua inspiração?
Eu não tenho inspirações. Tudo aquilo que faço obedece a uma fórmula concisa.
Pode explicar melhor?
A inspiração é uma imagem metafórica que utilizamos desde que concebemos uma linguagem que tem a possibilidade de expressar a emoção. A emoção é a inspiração.
E a transpiração?
Isso deve ser uma coisa abjecta a que não temos acesso.
E essa história dos 5% de inspiração e 95 de transpiração?
Isso faz-me lembrar a nossa questão animal. Transpiramos pelo que pensamos mas nunca transpiramos por pensar.
Tem algum projecto entre mãos?
Tenho. Aniquilar a personalidade.
Isso é possível?
Sim. Com muito esforço. Temos que lutar contra a iniquidade.
Qual o seu próximo passo?
Destruir-me enquanto autor. E esta é a última entrevista que dou.
Porquê?
É uma questão de coerência.

Paula Ferro

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