in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Outubro 2009
“Figuras de Convite” em Estói
Exposição de Júlio Pomar
“Figuras de Convite” é uma exposição na Casa Rural da Villa Romana de Milreu,
Esta exposição pode ser visitada até Janeiro de 2010. Trata-se de uma iniciativa da Galeria Ratton e da Direcção Regional de Cultura do Algarve e integra-se no âmbito das Jornadas Europeias do Património que, em 2009, têm como tema, “Vi(r)Ver o Património”. Esta iniciativa é um convite ao envolvimento dos cidadãos na participação activa da descoberta da herança cultural, reforçando a memória colectiva e de afirmação de um Património comum cuja riqueza reside na sua diversidade.
“Toda a criação é recriação” - afirma o artista - “nada é feito a partir de zero. O próprio zero é uma criação magnífica do homem” - faz uma pausa e sorri - “gerações e gerações pereceram antes de alguém ter inventado o zero”.
As figuras de convite, pintadas sobre azulejos e aplicadas nas entradas das habitações da nobreza portuguesa do século XVIII, representam, à escala natural, criados de libré, guerreiros e damas que “recebem” os visitantes. No século XX renovou-se o uso do azulejo sem que a tradição das figuras de convite fosse renovada. A galeria Ratton reconhecendo essa ausência, já quase na entrada para o séc. XXI, convidou Júlio Pomar a preencher essa lacuna. O artista fá-lo com a habitual genialidade e sentido de humor, como o provam as seis obras expostas.
Ao longo da História “a arte como ‘fazer’ tende, na maior parte dos casos, a não evitar destruir aquilo que está em desacordo com o que o dito poder propõe” - explica o artista, - “as próprias cidades são destruídas sucessivamente. Penso que esse sentimento de conservação e de respeito, de amor e curiosidade é relativamente recente, mas ainda bem!”
As obras expostas que convidam a visitar vários compartimentos da Casa Rural são retratos, ou melhor caricaturas.
O retrato, em arte, seja qual for o suporte usado, é uma representação. Mas é também “a fixação do instante, mesmo que esse instante seja massivo. É um desejo da paragem do tempo. Uma tentativa de fixação ou de retenção do tempo” - sorri de novo - “as pessoas mudam…” e o retrato é como agarrar um instante e mantê-lo. “A história do instante é fundamental” - explica - “o viver o instante, o enaltecer o instante” - saboreia a ideia - “penso que tem muito a ver com a natureza da obra de arte. Com o gozo do existir e da própria obra de arte” - os seus olhos iluminados e sábios fitam-me - “o sentir o vivo a viver”.
“O mesmo é outro”
Perguntei-lhe sobre a importância da arte. “Se as artes têm alguma vantagem”,- responde - “é porque nos ajudam a olhar para as coisas e a ver que aquilo que parecia simples e limitado, no fundo, dá saída para mundos e mundos e mundos”.
A arte vive paredes-meias com a consciência “mas por vezes ela produz-se até, sem que o produtor tenha uma ideia, mesmo vaga, do que está a fazer. Não me refiro às artes dos loucos que têm o seu mérito, todo um certo alastramento”, alastramento esse que é “um sector importante da produção da coisa mental”.
“O que é a coisa mental?” – pergunto.
Ri-se e responde: “É a capacidade de pensar a existência de modo que esse pensar tenha forma e consistência, embora não tenha forma nem consistência”. - Sorri da minha reacção – “existe na cabeça, mentalmente” – continua – “e é a partir daí que se dá a forma a nível da visibilidade”.
Para se ser artista é necessário ter “muitas coisas juntas”.
A raiz da palavra “arte” define-a como “fazer de”, “a arte de carpinteiro, ou andar nas artes, como dizem os que vivem perto do mar e não trabalham no campo” - explica, calmamente - “andam nas artes. As palavras são potes sem fundo, saem-nos da boca e não reparamos nelas”, e “este andar nas artes, no fundo, é uma lição sobre o entendimento das coisas”.
As artes prendem-se com as suas técnicas e as substâncias, com a matéria, e com “uma provocação que é cada vez menor, não direi do acaso, mas de qualquer coisa desconhecida ou menos conhecida. É claro que o acaso para o comum das pessoas é uma coisa desprezível, sem regras nem leis, mas a gente, à medida que vai vivendo e apreendendo as coisas, vai chegando à conclusão que o acaso é a matemática mais rigorosa, é aquilo que se oferece só a quem pode perceber”.
As artes respondem a necessidades do homem. As artes da pesca e as artes do camponês respondem a necessidades de sobrevivência mas as artes plásticas também existem por uma necessidade humana. Se não existisse “essa necessidade vital”, o artista não era impelido a produzir e a dedicar a sua vida a fazê-lo.
“Como é um fazer, exige técnica, obrigatoriamente. Mas, a arte é técnica?” - Perguntei.
“Não” – respondeu - “da mesma maneira que a poesia não é gramática embora não possa viver sem ela”. No fundo, a gramática é “um conhecimento da maneira como a língua se processa, se articula, de como ela, por um lado serve o pensamento, e por outro o impulsiona. É sempre ambígua essa relação entre sujeito e objecto, entre o objecto, o sujeito e o predicado. A vida é uma troca constante de posições”.
“Pensa que o artista é aquele que apanha as essências?” – Perguntei.
“Se eu o veria assim?” – Responde – “Sim, sim. Há um jogo permanente entre o artista e o que o artista persegue, e aquilo que no fundo ele faz, que muita vez, quase sempre, transcende o seu projecto”, faz uma curta paragem e avança, “veja por exemplo toda a pintura ocidental, que é uma pintura determinada pela religião. Teoricamente devia acabar, uma vez que a religião é posta em questão, mas a verdade é que eu que não sou católico e continuo a emocionar-me com uma Virgem do Giotto”.
A arte está ligada à vida e vive dentro dela.
“O mesmo é outro, o mesmo é um poço aberto. Não há mesmos”. - Explica.
“E a arte?” – Interrogo.
“É parecido. É uma outra forma de se exprimir aquilo que se pode chamar inquietação. Um sexto conhecimento. Capacidade de absorção, amor, o que quiser. É um pote sem fundo. São cadeias de sensações, pensamentos…”
Paula Ferro
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