quinta-feira, 18 de março de 2010

jornalismo - Francis Tondeur

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Novembro 2009

“Aurora da minha humanidade”

Uma exposição de Francis Tondeur, num clima de instalação, faz um chamamento ao visitante para inter-agir, brincar e descobrir, no Palácio da Galeria, em Tavira, até ao final do ano.

Escultura, desenho e vídeo coabitam um espaço organizado encorpando o mesmo desafio. Volumes em algodão puro tornado pano, com bordados, desenhos e janelinhas, escondem peças de madeira e bronze fundido que nos espicaçam a curiosidade.





“Não há criação sem audácia”

Francis Tondeur nasceu em Uccle, na Bélgica, em 1939. Começa por se formar em Arquitectura e Artes Visuais, depois licencia-se em Biologia Molecular e faz o doutoramento em Bioquímica. Desde 1963 realiza exposições individuais e colectivas em Galerias e Museus de vários países da Europa e no Brasil.

A sua obra materializa-se de modo variado: desenho, pintura, azulejos, arte pública, cenários para peças de teatro… Mas o que mais o atrai é a escultura.

Foi docente de disciplinas artísticas em Universidades portuguesas, nomeadamente em Évora e no Algarve.

“Há muita coisa em comum no artista e no cientista”, afirma. Ambos devem sentir desejo criativo, devem ter audácia, imaginação e senso da observação do acaso. “Quantas vezes um cientista busca uma coisa e encontra outras? Por causa de um acaso. A mesma coisa acontece em arte. O acaso é uma coisa fabulosa. Uma mancha inicialmente indesejada pode-se transformar num milagre e um erro pode ser utilizado para enriquecer uma peça”.

A audácia é muito importante, sem ela caímos na repetição ou nas modas. “Não há criação sem audácia”.

O que distingue o cientista do artista é o jogo e o material com que se joga. Por um lado é a molécula e todas as ferramentas das físicas e das químicas, por outro é a cor, o pincel, a forma e as ferramentas adequadas aos materiais que se usam. A base é a mesma. “Também é necessário, em ambas, a persistência, a teimosia, e a paixão. A paixão faz parte”.

Há uma ligação muito forte entre o agora e o passado. A sua infância está viva nesta exposição que nasce nas brincadeiras que o artista tinha em criança quando manuseava blocos de madeira. Francis redescobre os seus próprios gestos nos gestos do filho mais novo enquanto ele brinca e espontaneamente repete os movimentos cometidos pelo pai há muitos anos atrás. Ao observá-lo Francis revive-se e sente, com alguma surpresa, que nada mudou no seu gesto. Existe uma outra consciência, um outro conhecimento de gramáticas e uso de materiais, mas o gesto mantém-se intacto.

As forras em algodão reportam para a casa da sua avó e o modo como protegia os móveis, envolvendo-os com panos brancos que causaram em Francis um forte impacto estético. A sua imaginação era instigada pelas inúmeras possibilidades de objectos velados. Desiludia-se depois, quando as forras eram retiradas e os móveis se deixavam ver, mas este desafio de descobrir o que se esconde, ficou até aos dias de hoje.

Em “Aurora da minha humanidade”, as forras fazem parte das peças e são também a ponte para o espectador, encarnam o lado lúdico da exposição e o convite ao visitante para participar do jogo iniciado pelo artista. As forras podem ser tiradas, deixando ver a escultura que está por baixo. Tirá-las, quer dizer entrar no jogo.

As matrizes das peças são feitas de madeira maciça e forte. Reciclagem de vigas, pranchas de cofragem, materiais de construção. Reciclagem que se transporta para a própria criação das peças. As matrizes originais são reutilizadas. Nelas, Francis desenha, pinta e acrescenta bocados de tela, tecidos, torneiras, válvulas e outros objectos. Mistura a madeira com bronze fundido. As peças são cobertas por panos já costurados com janelas, brechas para o olhar, sugestões de possíveis “espreitadelas” para o “mundo” que está lá dentro.

Com espírito lúdico e sentido de humor, aborda temas sociais, culturais e raciais que examina com seriedade e um sentido crítico que pretende que se amplie. Incomodam-no os contra-sensos das religiões e fica entristecido com as consequências da cegueira dos dogmatismos e da ambição económica. Não cruza os braços. O ser humano é-o na posição vertical, mantém-se de pé e em eterno combate. O fluir da vida implica amor pela própria vida e pela sua evolução.






Arte pública em Tavira

As duas esculturas em bronze e os oito cata-ventos que se encontram na rotunda da estação de caminhos-de-ferro, em Tavira, são de sua autoria.

Em 2000, foi convidado para fazer um monumento à guerra colonial. Francis não gostou do tema mas investigou e descobriu uma ligação humana que lhe interessou: o amor entre os soldados provindos de todas as partes do país e as mulheres da terra. O rapaz faz um sinal e a rapariga também. Não se sabe se é a felicidade do regresso ou a aflição do adeus para a guerra. O mesmo gesto simboliza emoções ambíguas que foram vividas neste local, representativo das entradas e saídas da terra onde o soldado vivia dentro e fora do quartel, referenciado na farda típica da época. A rapariga, Francis encontrou na sua fantasia.

Os cata-ventos aludem à história da cidade, antigo centro de comércio que entrava pelo porto fluvial. Evoca a importância do conhecimento dos ventos para o marinheiro. “Daí o cata-vento”.

As suas cores fortes e formas arredondadas prendem-se com outra interpretação. Ali, naqueles balões de banda desenhada com volume e ao vivo, cuja página que é aquela rotunda, estão inscritas as emoções fogosas, saudosas, calorosas, entristecidas, dos amantes que se encontram e/ou se despedem, com a guerra como pano de fundo do pensamento.

Paula Ferro

Sem comentários: