quinta-feira, 23 de julho de 2009

Entrevista reportagem com Rafa Sendin

in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"


Abril de 2009





“Eu jamais iria para a fogueira por uma opinião minha, afinal, não tenho certeza alguma. Porém, eu iria para a fogueira pelo direito de ter e de mudar de opinião, quantas vezes eu quisesse.”

Friedrich Nietzsche


Rafa Sendín
Arte com(o) atitude




Rafa Sendín nasceu em Salamanca em 1971. Frequenta ateliês dinamizados por Christian Boltanski, Gabriel Orozco e Nacho Criado e estuda com Rogelio López Cuenca. Desde 2000 participa em mostras individuais e colectivas, em Espanha, França e Portugal. Em 2005 beneficia da Bolsa Francisco Zurbarán da Junta da Extremadura. A sua obra é objecto de várias publicações e integra as colecções do Banco Santander, da Junta da Extremadura, a Colecção MEIAC, da Institución Cultural El Brocense e do Domus Artium.

A arte detém o conhecimento da história de arte, e há certas normas não escritas, uma delas é a liberdade.

Em “Fossa Comum”, exposição de fotografia e vídeo que se encontra patente ao público até dia 16 de Maio na Artadentro em Faro, Rafa Sendín reflete a partir de registos que retratam o brilho do progresso, ou a informação como sedução. “Este trabalho surge das fotografias publicitárias que podemos ver pelas ruas”, explica, “quando passeio com a minha câmara vou recolhendo muitas coisas, entre elas, fotos aos cartazes publicitários”.
Neste conjunto de obras primeiro vem a ideia, como um desenho mental, depois vêm as fotos, e a seguir, o trabalhá-las em computador. “O estúdio leva-me a elaborar o trabalho de outra maneira. Comecei a reflectir sobre o retrato. Construo um retrato a partir de dois retratos, feitos por outro fotógrafo. Estou a apropriar-me do trabalho de outro artista, ou de outro profissional, neste caso da fotografia publicitária. Utilizo uma parte feminina e outra masculina, e assim introduzo a noção de género: Feminino, masculino. Introduzo o tema da tendência sexual: homem/mulher, mulher/mulher, homem/homem”.
As coisas acontecem. A realidade motiva o olhar de diferentes pontos de vista. “São trabalhos que se desenvolvem muito lentamente. Então, vou introduzindo uma temática múltipla. Não há apenas uma, mas muitas leituras. Por exemplo, os cadáveres esquisitos dos surrealistas. Fazer retratos com duas partes de rostos diferentes que fazem um só retrato. E é curioso ver como duas expressões, de duas secções dos rostos, fazem uma expressão natural”.
Pára diante de uma das suas obras, olha um pouco em silêncio, aponta a fotografia, vira-se e afirma:
“O género não está no rosto nem está no corpo, está na cultura, na educação”.
Somente?
“Principalmente, não somente. É lógico que fisicamente o homem e a mulher são diferentes. Não no rosto, no rosto não são diferentes”.
E no comportamento?
“No comportamento? Sim, mas o comportamento geral é dado pela cultura”.
Nada pelos genes?
“Logicamente algo influirá, mas não tanto como agora sucede”, e lembra, “as nossas mães trabalhavam em casa, cuidando de nós e da casa, enquanto os nossos pais trabalhavam fora. Agora vêem-se, as mulheres e os homens, não de uma maneira igualitária ainda, a aproximar-se muito no desempenho dos mesmos trabalhos”.
Pensa que entre os homens e as mulheres não existem diferenças?
“Muito poucas. As mesmas diferenças que existem entre uma pessoa e outra”.

A arte é uma ferramenta de pensamento e por isso de construção individual

A arte é assumida como gesto, o gesto de um observador intenso em estratégia reflexiva sobre o mundo, essa globalidade variável em permanente transformação.
Também fala de homossexualidade e heterossexualidade…
“Não falo, penso, reflicto. Não trato de resolver. Não me interessa resolver estas questões. Interessa-me assinalar que é negativo que suceda que nos vão guiando. Não quero guias, não quero guias nem na arte, nem na vida. Mas quero informação, quero que me digam as coisas. Com isso me basta, eu decidirei”, pausa., “por exemplo, não tenho formação artística, não estudei arte”, encolhe os ombros num gesto desprendido, “bem, não estudei de forma académica. Evidentemente que me tenho informado e me mantenho informado”, olha com clareza e simplicidade, “não quero tutores. Há uma canção em Espanha que diz ‘eu não quero um bom tutor, prefiro enganar-me eu’”.
“Fossa comum”. Porque razão este título?
“A fossa comum é o local onde se enterravam os fuzilados, na guerra civil, sem identificar os corpos. E como isto sai da publicidade”… sorri, “para mim a publicidade é como uma fossa comum do pensamento dos indivíduos”, olha-me sério, “não?” Pausa, “a publicidade trata de guiar o pensamento, e eu trato aqui de libertar as ideias, de abrir o pensamento”.
Rafa Sendín está atento ao que o rodeia, e para além da dimensão estética, o seu trabalho encerra uma dimensão ética, na medida em que se debruça sobre os fenómenos da alienação colectiva em que vivemos.
“Creio que em arte há um único ponto a atingir, infelizmente muito distante, que é a liberdade. A liberdade de pensamento e a liberdade de acção. A liberdade na hora de trabalhar a obra, na hora de pensar, e na hora de viver”.
Gosta que o espectador da sua obra vá desprevenido de informação, “quero que se possa apreciá-la sem todas as minhas reflexões. Não me importa que não se veja. Quero que o espectador, quando se confronta com uma obra minha, esteja limpo de informação. Primeiro que a veja, que a perceba, e se lhe interessa, que aprofunde a causa. Para isso existe o livro, o texto crítico, as minhas ideias, as minhas intenções… mas primeiro, a obra tem que funcionar visualmente sem informação. Tem que ser vista.”
A arte como generosidade individual, como comportamento, ou melhor, como atitude. “Para mim a arte é uma ferramenta de pensamento e por isso de construção individual”.
Constrói-se através da arte. Essa é uma das funções da arte? Qual a função da arte?
“Bem, função!?” e joga a mão ao queixo para agarrar o pensamento, “bem, não acredito que a arte seja uma coisa inútil. Logicamente não é uma forma de ganhar a vida, não é um trabalho remunerado. A arte é uma atitude, uma maneira de fazer, de pensar e de viver. Não é um trabalho ao uso, que chega ao fim do mês e alguém paga. E não tem horários, pode-se estar trabalhando toda a vida, incluindo quando se dorme. Um artista, tudo o que faz é arte”.
E o que é um artista?
“Aquele que faz arte”.
E o que é a arte?
“A arte detém o conhecimento da história de arte, e há certas normas não escritas, uma delas é a liberdade”.
A liberdade é o caminho da arte?
“Claro, pelo menos como a vejo. Com Goya, nas pinturas da Quinta del Sordo, ou com a pintura política, de livre pensamento, não arte de encargo”.
Pensa que a sua arte é política?
“Existem aí conceitos políticos mas não são reconhecidos na obra. Podem sê-lo, porque falo da liberdade”.
Pensa que a política e a liberdade estão ligadas?
“Sim, claro, a política implica a liberdade e a condenação”.

Nunca me interessou desenhar a realidade. Para isso temos olhos, para vê-la.

Esta exposição é de fotografia, mas Rafa Sendín usa outros suportes para se exprimir. “A ideia vem primeiro, e a ideia é, principalmente, essa meta distante da liberdade. Esteticamente vou procurando a liberdade criativa. Em desenho trabalho com círculos porque me parece ser a forma mais básica. O quadrado é muito artificial. Não faço círculos perfeitos. Se usasse compasso cortaria a minha liberdade”. Em fotografia? “Não sou fotógrafo, utilizo a câmara”.
Gosta especialmente de retrato. “Quando comecei a desenhar fazia sempre retratos. Retratos imaginários, nunca retratavam ninguém. O retrato podia ser desta ou daquela pessoa, mas a única coisa que se assemelhava fisicamente à pessoa que queria retratar era o nome, não o desenho” e sorri, simplesmente, “nunca me interessou desenhar a realidade. Para isso temos olhos, para vê-la”.
Mas o retrato, “é quase o mais importante em arte. O retrato representa-nos, não?”, o olhar abre-se com ar de óbvio, “e através dele quero introduzir muito mais temas. A vida interior do adormecido e a casca da morte”, faz um gesto com a mão, “o corpo que sai…”, olha-me num sorriso, “e estou falando de religião também. Ao fotografar um morto, estou fotografando a alma, ou simplesmente algo que não tem vida? São muitas coisas…” e entrega-se a um sorriso pensativo.
Corto o silencio:
A religião e a morte estão relacionadas.
“Claro, mas eu sou agnóstico. Não creio absolutamente em nada que não seja a vida, o amor, e a liberdade”.
É a concepção da morte, a descoberta da existência da morte, que faz nascer a religião.
“Claro. As perguntas inexplicáveis deram origem à religião. Claro. Inventar histórias para que possamos viver mais a gosto com essas perguntas que não têm respostas”, repousa o olhar no infinito aberto em sorriso, “quando é muito melhor ter perguntas que não têm respostas”.

Paula Ferro

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