sexta-feira, 22 de maio de 2009

Entrevista com Margarida Palma

in "Postal do Algarve"
Novembro de 2008



“A arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou um fantasma: e quem aprecia a arte volta o olhar para o ponto que o artista lhe indicou, observa pela fenda que este lhe abriu e reproduz dentro de si aquela imagem”.

in “Breviário de Estética” de Benedetto Croce





"Vejo a arte como uma coisa do dia a dia."




O encontro com Bartolomeu dos Santos marcou a sua vida




Margarida Palma nasceu em Lisboa mas os três primeiros anos de Pintura em Belas Artes foram feitos no Porto, onde o ensino era “muito clássico, muito formal. Quatro horas de pintura três vezes por semana, várias disciplinas de desenho com objectivos diferentes. Essa ênfase muito grande no desenho está bem vincada no meu trabalho”.
Termina o curso em Lisboa e inicia-se uma nova fase da sua vida.
“Comecei por trabalhar no bar da Casa das Artes em Tavira”. Nesse dia conhece Bartolomeu dos Santos que “ia inaugurar uma exposição com alunos das diversas escolas por onde tinha passado como professor. O projecto chamava-se Caleidoscópio”. Este encontro marca definitivamente a sua vida. “Foi ele quem me incentivou a fazer o mestrado em Londres e também a voltar para cá”.
Bartolomeu dos Santos era cliente assíduo da Casa das Artes. “Fui conhecendo muita gente mas o Bartolomeu era uma figura constante. Um dia ele soube que eu era aluna de pintura e, generoso como de costume, convidou-me para experimentar a fazer gravura, logo ali, ao virar da esquina da Casa das Artes. E foi um momento mágico da minha vida. Quando vi uma primeira prova de uma gravura percebi que tinha que fazer aquilo. Então, primeiro fiz uma, depois outra, e comecei a fazer gravura com alguma regularidade”.
Um dia Bartolomeu dos Santos convida-a para ser sua assistente num registo mais regular. “Ele vinha a Portugal com frequência e eu ia a Tavira trabalhar com ele. O trabalho era muito intenso. Mas apesar da diferença de idades e de percursos, havia uma afinidade e um entendimento muito grandes”.
Bartolomeu continuou a transmitir-lhe conhecimentos e “a certa altura achou que já não fazia sentido eu estar aqui. Começou a incentivar-me para tirar um mestrado em Londres”. Margarida termina o mestrado em gravura na Camberwell College Of Arts em 2004. “Comecei a expor mais regularmente, criei uma rede de conhecimentos e consegui mostrar as minhas coisas noutros países, então o Bartolomeu começou a insistir para eu vir para cá pois era muito importante não perder o contacto com a realidade do meu país”.
No seu trabalho está patente a vivência como mulher portuguesa, “apesar de ter estado fora durante cinco anos, um período considerável numa vida de trinta, sinto-me profundamente portuguesa e sei que há coisas que preciso de explorar nessa identidade”.
Tavira marca-a como pessoa e como artista, “foi ai que se deu uma série de acontecimentos importantes. Foi ai que conheci o Bartolomeu e ai se passa muito da minha história pessoal. Cresci em Lisboa mas as férias eram sempre passadas em Tavira”.

A parte positiva da minha vida passou por Tavira

As vivências que as paisagens solicitam, que os lugares permitem, assim como o modo como usufruímos dos espaços, esculpe forma em nós, cria chão para as nossas aderências e opções no futuro.
“A parte positiva da minha vida passou por Tavira. O tempo para gozar as coisas, para sentir. Passou pela praia quando a ilha era uma coisa fantástica. Havia um microcosmo nas nossas brincadeiras que passava completamente despercebido a qualquer outra pessoa e que numa escala e uma natureza marcou o meu trabalho. Gosto desta dimensão íntima das pequenas coisas que ninguém vê”.
As raízes bem vincadas no solo, plantam gestos no fluir do nosso quotidiano actual. Selecções do real abrigam-se no nosso olhar, através das histórias de outros, onde o mesmo sangue dava outra forma à vida, no momento da habitação do tempo.
"O meu avô era de Santo Estêvão e a minha avó é de Santa Catarina. A família do meu pai tem uma história muito próxima da terra. Ficou-me o cheiro das alfarrobas e dos figos. Ouvir os grilos e as cigarras ao calor… é uma coisa tão intensa! Só conseguiria explicar isto a alguém que passou por lá e sentiu”.
Aqueles ensinamentos que passam de geração em geração e não são imunes à transformação. “Tinha uma bisavó a quem chamávamos a avó velhinha. Ninguém sabia exactamente qual a idade dela. Contava muitas histórias, as suas experiências, que para nós eram realmente do outro mundo. Outra época, outro manifesto. Essas narrativas da minha bisavó, as da minha avó, e as do meu pai, marcaram-me profundamente”.

Não seria quem sou hoje se não tivesse vivido e brincado nestes sítios

O passado só pode estar vivo dentro da transformação e da consciência da alteração que cada decisão individual implica na direcção de um percurso que pode ser de todos. “Acho que as coisas não se devem preservar como um boneco mas há memórias a guardar e tenho pena que se tenha perdido muita coisa genuína no Algarve”.
Sente-se feliz por ter tido acesso ao contacto directo, por ter convivido com os gestos adequados ao que era a vida neste local onde tudo se conjuga: paisagem, arquitectura, hábitos, crenças, sabores, cheiros, objectos e rostos. “Não seria quem sou hoje se não tivesse vivido e brincado nestes sítios. O Mediterrâneo tem esta força para quem o viveu, para quem o sentiu como criança. Marca muito mais do que a vida em Lisboa”.
Nós somos um resultado das nossas vivências, muitas delas prendem-se com os espaços que habitámos, são consequência dos hábitos e práticas daqueles que nos são mais chegados, daqueles com quem, no fundo, aprendemos a ser.
A sua avó era costureira e “os processos manuais de costura são uma coisa fundamental no meu trabalho”.
Passado e presente tocam-se através de instantes vividos que permanecem suspensos e residem em objectos que atravessaram o tempo, gerando hoje outras acções, outros começos.
“Parti para uma série de trabalhos que têm como base uma boneca que fiz, quando tinha onze anos, para oferecer à minha mãe. Uma boneca estranhíssima, totalmente disforme, com um corpo estranho. Mas eu achava a boneca perfeita quando a fiz. Tem um sorriso enorme, os olhos são bordados, o cabelo é linha mas a boca é desenhada. Fiz a boneca e coloquei-a numa caixa que na altura também achava perfeita e que agora acho incrivelmente mal feita. A minha mãe preservou-a mas só depois dela morrer é que voltei a pegar na boneca. Comecei a usá-la como uma espécie de metáfora para o corpo e para a identidade, para a tentativa de os definir. Ser perfeito ou não, depende do ponto de vista, depende da nossa percepção da realidade. E isso é um elemento que tem aparecido muito frequentemente no meu trabalho”.
O mundo estimula-nos, obriga-nos a uma adaptação permanente à sua transformação contínua, mas “nós temos as nossas ferramentas, físicas e emocionais, para nos conseguirmos defender e adaptar. Essa adaptação pode ser microscópica ou macroscópica, pode partir do interior ou do exterior mas temos que encontrar novas fórmulas para nós mesmos. É isso que essa boneca me tem trazido como ponto de partida para o meu trabalho, essa ideia de readaptação à realidade”.




Recolhia sobretudo uma mitologia familiar

A exposição que se encontra neste momento no Palácio da Galeria “começa por ser um desafio do Dr. Jorge Queiroz. Perguntou-me se eu gostaria de fazer uma exposição relacionada com ‘Tavira Patrimónios do Mar’. Explicou-me quais os princípios e no que é que ia constar essa exposição. Deveria haver uma relação entre o meu trabalho como artista e a minha ligação a Tavira. Deveria haver um paralelismo entre um conceito museológico e a Arte Contemporânea”.
O trabalho nasce então da partilha de vivências entre três gerações. “A partir de conversas com o meu pai e a minha avó comecei a fazer, até por curiosidade, uma espécie de árvore genealógica da família, mais no sentido figurado porque aquilo que me interessava não eram as relações e as linhas directas e indirectas, o que me interessava eram as histórias de cada uma das personagens. Para cada pessoa eu criava um balão enorme ao lado com as histórias. Recolhia sobretudo uma mitologia familiar”.
E o caminho surge de uma prática simples entre mãe e filho. “Começo a valorizar uma história que já tinha ouvido: o meu pai a aprender a ler e a minha avó, que não sabe ler, ambos ao serão. Ela a bordar e ele a ler para ela, à luz de um candeeirozinho a óleo, julgo eu. Mas ele lia um livro que não tinha as últimas páginas, que não tinha fim. E eles leram aquele livro uma série de vezes. Acho isto uma coisa extraordinária! Se a história não tem fim, porque a leram tantas vezes?”
A resolução de uma falta conduziu à prática da multiplicidade de possibilidades que o devir contém e “este exercício de projectar um final, interessou-me muito. Porque é realmente aquela ideia do fio quebrado e das múltiplas possibilidades, das reformulações, da história que pode ser aquilo que nós quisermos”.


Pretendi reflectir um pouco sobre o que é que nós guardamos, o que é que nós depois utilizamos no nosso processo, na nossa vida.

A história, que se constrói a partir das pequenas histórias, das histórias vividas por cada personagem que compõe as gentes dum determinado local. No fundo, as histórias individuais que se entrecruzam é que são o miolo da história.
“O que apresento é um paralelo entre o que é o museu e os princípios museológicos que estão por detrás daquilo que está feito na outra exposição, e uma espécie de ‘paramuseu’ que é o que eu fiz, que é o meu museu, a minha memória, a minha visão das coisas”.
A partilha é fundamental. Para que exista partilha, nalgum ponto, tem que existir identificação. “Há um lado da identificação que era muito importante alcançar: conseguir que o trabalho fizesse sentido para outras pessoas dali, de Tavira. As exposições atingem o seu objectivo quando uma pessoa se me dirige e percebo que o trabalho chegou lá, que lhe tocou de algum modo, que a pessoa reflectiu um bocadinho que seja sobre aquilo que viu”. Objectivo que consegue atingir. “Houve uma senhora que me disse: ‘obrigada por me ter deixado percorrer as suas memórias’, e fez mais alguns comentários evidenciando claramente essa identificação com o que viu”.
É importante perceber o que as coisas são porque a nossa acção sobre o mundo é transformadora, seja ela consciente ou não, da transformação que propicia. É importante ter consciência disso para percebermos o que fazemos com os bocados de mundo que nos vêm parar às mãos.
“Pretendi reflectir um pouco sobre o que é que nós guardamos, o que é que nós depois utilizamos no nosso processo, na nossa vida, na nossa personalidade. Como é que recebemos uma coisa e depois a transformamos noutra coisa qualquer”.
E, como quem arranca um fruto de uma das árvores do pomar dos seus avós, saboreia o conteúdo de “uma frase da Tracey Emin que acho muito importante: ‘não interessa o que uma pessoa tem ou recebe dos outros, o que interessa é o que uma pessoa faz com aquilo que recebe dos outros’. Como é que utilizamos aquilo que chega até nós para evoluirmos. A arte passa muito por aí. Conseguirmos compreender aquilo que chega até nós, reformularmos e darmos uma visão do mundo tal como o percebemos”.
De algum modo, ser artista é “continuar a pertencer a essa cadeia de eventos, de receber e dar algo. Não vejo a arte como uma coisa sagrada, vejo-a mais como uma coisa do dia a dia, dos objectos e das experiências”. Todos somos potencialmente artistas, “não acho que a arte seja pertença de alguns iluminados. Todos temos potencial para criar qualquer coisa, a predisposição para criar é que já é diferente. Nem toda a gente está disposta a olhar para ver, a pensar para depois transformar”. A arte “é um processo de transformação que deverá trazer algo de novo ou pelo menos deverá fazer olhar de novo para as coisas”. A arte tem um papel, o “de nos fazer parar e pensar” e deve ter um propósito social, “enriquecer o modo como as pessoas se relacionam com o mundo”.

Paula Ferro





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