quinta-feira, 28 de maio de 2009

Entrevista/reportagem com Marta Caldas







in ".S" - Caderno de Artes

do Postal do Algarve

Janeiro de 2009








“Temos a arte para não morrer da verdade.”in “Vontade de Poder” de Friedrich Nietzsche







Uma coisa com que não me preocupo nada é com a função da arte, espero que ela não funcione

Marta Caldas nasceu em Lisboa em 1982. Estudou música e teatro. Frequentou o curso de História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e completou o Plano de Estudos Completo do Ar. – Co. Participou de exposições colectivas e colaborou em projectos de artistas como Thierry Simões e Armanda Duarte.
A sua primeira exposição individual está patente ao público na Artadentro em Faro até dia 31 de Janeiro.
Presentemente trabalha na tese de mestrado em Artes Visuais na Universidade de Évora.


A forma como construo os desenhos faz com que cada um deles não tenha um parceiro obrigatório.
Onde se inicia a sua relação com as artes?
Em termos de prática das artes plásticas começou no Ar-Co mas a atenção para certas coisas já tinha começado antes, na música e no teatro. Comecei aos treze anos a fazer teatro. Entretanto entrei no Conservatório de Música, fiz um ano de violoncelo que interrompi porque entrei na Escola Superior de Teatro para fazer formação de actor. Posteriormente abandonei o Conservatório e fui para o Ar-Co. Fiz um ano de pintura e percebi que não era de todo a pintura. Não tenho sensibilidade à cor e comecei a aperceber-me que aquilo que fazia na pintura era desenho. Foi um erro de inscrição, no fundo devia ter-me inscrito em desenho e inscrevi-me em pintura por não saber os espaços de cada coisa e que o meu espaço era o desenho e não a pintura.


São dois espaços assim tão diferentes que não se podem misturar?Para mim não. É uma questão de superfície e matéria. A tinta não me serve, nunca me serviu. Com o desenho é completamente diferente. Mudei a tempo. No segundo ano de Ar-Co ainda fiz um semestre de pintura mas percebi que não era aquilo e passei para o desenho que era de facto o sítio onde estava bem. Aí parei. Entrei para o Ar-Co com dezoito anos e mudei muito. Houve uma mudança muito grande principalmente na forma como eu me coloco e como uso as coisas.

Desenho sempre na horizontal e isso implica na visão que tenho dos desenhos e até na forma como eles são desenhados.
Participou de que exposições?
As exposições que fiz foram sobretudo no Ar-Co. A primeira foi no terceiro ano de desenho na Quinta de S. Miguel em Almada na exposição de Verão. Até terminar o Ar-Co, expus outra vez na Quinta de S. Miguel e na exposição de finalistas no Júlio de Matos.
Na Páscoa integrei uma exposição colectiva organizada pela Andreia Brandão. Ela resolveu juntar um grupo de pessoas que por algum motivo achou que tinham alguma afinidade, muitas delas nem se conheciam mas havia algo que permitia construir uma exposição sem que à partida houvesse um enunciado que nos ligasse, ou que servisse de ponto de partida para os nossos trabalhos. Eu não conhecia muitos dos trabalhos até os ver no espaço. Não houve nunca uma conversa, não havia um tema, não havia nada por trás que unisse os trabalhos de toda a gente. Essa foi a primeira exposição autónoma, sem estar ligada a uma escola. Foi no Espaço Avenida. Tínhamos o espaço mas tudo o resto foi preparado por nós. Sorri com um brilho fresco e contagiante. Correu bem! Em Faro é a segunda. Mas o ritmo não pode ser muito mais acelerado do que este. Não faria sentido para mim fazer mais exposições do que as que fiz, acho que foram as justas.
Em relação a esta, na Artadentro, combinou-se a exposição e só depois é que vi o espaço. Tive algum tempo para pensar nela. Muitas possibilidades foram acontecendo na minha cabeça. Fui fazendo o meu trabalho normalmente e depois cheguei ao momento em que percebi que os trabalhos iam ser expostos juntos e tive de perceber se eles podiam ou não estar juntos.
Aquele espaço de galeria é rectangular, tem uma escada e a sala de cima. Sempre percebi que não queria dois níveis de exposição. A forma como construo os desenhos faz com que cada um deles não tenha um parceiro obrigatório. Não faço séries, isso implica que no momento em que os trabalhos são expostos seja um bocadinho complicado encontrar o parceiro. A forma como são vistos implica em cada um deles e pode transformar muito. Quando cheguei ao ponto em que percebi que tinha que começar a juntar os trabalhos que tinha feito, de escolher aquilo que ia ser mostrado, como é que ia ser mostrado, com qual é que ia ser mostrado, é que surgiu a disposição que está lá, um desenho numa mesa e dois desenhos nas paredes.

A mesa faz parte do trabalho, também foi feita por si.Sim, mas não dou a importância de objecto à mesa. A mesa é como a moldura, é um auxiliar de exposição.
O ser mostrado na horizontal é que tem importância para mim porque tem a ver com a maneira como os desenhos são feitos. Desenho sempre na horizontal e isso implica na visão que tenho dos desenhos e até na forma como eles são desenhados. Ao levantá-los, eles ganham outro ponto de vista. Há uns que se permitem a ser levantados, os que estão nas molduras permitem-se a isso, outros não se permitem.
Não é uma regra, não é qualquer coisa que eu imponho à partida mas normalmente coloco-os na horizontal. Há uma relação completamente diferente quando o desenho está levantado na parede ou quando está na horizontal, há uma proximidade completamente diferente com o corpo do desenho. Quando se entra numa galeria e o desenho está exposto na parede não precisamos de chegar ao pé dele para o ver. O facto de estar numa mesa implica um aproximar da mesa e o dobrar para ver o desenho. Isso é completamente diferente.
Quando percebi que aquele era o grupo de coisas que fazia sentido expor porque havia uma união entre elas, tive de jogar com o que vai ser visto ao pé do quê e como é que pode ser visto. O facto de haver dois planos, o da mesa e das molduras, é importante. Não é possível ver o que está na mesa e o que está na parede ao mesmo tempo, implicam tempos de visão diferentes. Quando se entra na sala só se vê os desenhos da parede. O desenho da mesa só é visto quando se chega ao pé dele. Isso foi um elemento que apareceu em relação àquele espaço onde as coisas tinham que olhar obrigatoriamente umas para as outras porque são só paredes, não há recantos nem divisões, é uma sala ampla. Houve alturas em que pensei que só podia expor um desenho. Isso aconteceu no Espaço Avenida, numa das salas só expus um desenho porque tinha de estar sozinho.
Porquê a “queda” como título da exposição?Olha-me a rir, com ar divertido.
O título não é a “queda” (de cair).
Não?Não! Continua a rir da minha confusão. A queda (de cair) ou a queda (de quieta). O título da exposição é a queda (de quieta). A queda (de cair) não me interessa para nada. Interessou-me a palavra por ter esse duplo sentido mas o título só passa a existir a partir do momento em que é lido porque se torna uma opção em relação a ele, até lá, é uma palavra que tem os dois significados. No fundo quem escolhe o título da exposição é quem lê, não sou eu.


Depender do desenho para sobreviver é muito triste.
Também existe texto.
Sim. Descobri que havia uma série de coisas escritas que no início me chegava como uma confusão que me fazia trabalhar. Depois percebi que a confusão não era propriamente uma confusão, era qualquer coisa que existia naquelas frases que escapava à própria frase mas à qual eu conseguia aceder num plano qualquer da frase que não existia na própria frase e que era isso que me interessava, era isso que me fazia desenhar.
Faz uma pausa, baixa a cabeça como quem olha para dentro, abre-se em sorriso que rebenta num gargalhar quase infantil e olha-me, com ar traquina. Depois deixei de roubar frases e passei a ser eu a escrevê-las.

Roubava frases?Sim, roubava de livros, normalmente rearranjava-as, tirava aquilo que as contextualizava, tentava pô-las como frases auto-suficientes que não tinham necessariamente que vir na sequência de outras.

Trabalha independentemente da arte?Sim, sim.

A arte é paralela.O trabalho é que é paralelo. Sorri, mas há segurança e serenidade no seu olhar frontal e cheio de brilho. Dar umas aulas é uma necessidade, preciso disso para comer. Depender do desenho para sobreviver é muito triste. Acho que não há grande hipótese ou se calhar não quero construir essa hipótese. Como é que isso se faz? Não faço a menor ideia. Isso deve implicar fazer mais do que “x” desenhos por mês e não tenho muita vontade de pensar que desenhar tem a ver com a minha sobrevivência.

No fundo onde é que nasce a arte, o que é que é isso da arte?Ai não, não, não! Olha-me com um ar divertido, acenando com as mãos como quem afasta o assunto. Isso não me interessa nada. Sem deixar de rir olha-me de frente com ar seguro embora solto. Não preciso de ter essa resposta para fazer o que quer que seja. É-me indiferente ter ou não ter a resposta, até porque só ter uma resposta é coisa pouca, prefiro ter mais do que uma e ir variando. Um dia posso acordar com uma e outro dia acordar com outra. Prefiro isso do que ter uma espécie de revelação de revista.

Acha que a arte tem uma função social?Espero bem que não. Faz uma pausa. Está nitidamente divertida com as minhas questões. Ter função social? Não sei. Para uns tem uma grande função, ganham imenso dinheiro com isso. Ri, solta. Uma coisa com que também não me preocupo nada é com a função da arte, espero que ela não funcione.

Num momento destes em que se fala tanto em crise, há desemprego, há pessoas que não têm como alimentar os filhos, acha que há o direito de se fazer, comprar e vender arte?Que eu tenha dado por isso não tenho nada a ver com esta crise, não a provoquei, não a pedi. De repente olha-me com um ar sério embora não deixe de sorrir. Agora, se me sinto uma sortuda por poder estar a desenhar enquanto há gente a morrer de fome? Sim, sinto! Mas também acho que essas pessoas vão continuar a morrer de fome mesmo que eu pare de desenhar e esse é que é o problema.


Paula Ferro


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