quinta-feira, 23 de julho de 2009

Entrevista com Miguel Lobo Antunes


in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"

Abril de 2009



“Quem tem imaginação mas não tem cultura, possui asas, mas não tem pés”.
Joseph Joubert


Miguel Lobo Antunes
Clareza, eficiência e flexibilidade


Miguel Lobo Antunes foi vice-presidente do ex-Instituto Português de Cinema (1983-85), director para o Cinema e Animação na Europália (1989-92), assessor jurídico de Lisboa Capital da Cultura (1994), geriu o Centro Cultural de Belém (1996-2001), foi programador do Festival Internacional de Música de Mafra, jurista do Tribunal Constitucional e actualmente é gestor da Culturgest.

Nunca houve tanta produção artística como actualmente

Gostaria que me falasse sobre a relação entre educação e cidadania e do papel da arte em ambas.
A arte é qualquer coisa de intrínseco à natureza humana. Desde sempre o homem teve uma necessidade ou um impulso para a criação artística. E continua a tê-la. Faz parte da condição humana. O homem sempre teve a procura do belo, ou o uso da imaginação, ou da construção, seja na arte popular, seja na erudita. Isso é um impulso, faz parte da natureza humana. Ninguém pode apagar isso, nunca se apagará. Haverá sempre artistas, sempre, enquanto existirem homens e mulheres.
Põem-se outras questões: haver um ambiente mais ou menos propício para que essas vocações, para que essa necessidade interior que as pessoas têm, se possa de exprimir e chegar aos outros. E isso tem variado segundo épocas históricas embora se tenha mantido sempre.
Existem épocas menos florescentes e épocas mais florescentes na história da humanidade. Houve alturas em que, por circunstâncias variadíssimas, se deu um crescimento singular, excepcional, na produção artística. Acho que actualmente vivemos um desses momentos, no sentido em que a produção artística se generalizou pelo mundo todo. Há imensas relações de comunicação, logo temos o acesso facilitado às produções artísticas mais díspares e das origens mais diferentes. De algum modo a criação artística globalizou-se.
Nunca houve, provavelmente, tanta produção artística como actualmente. Um dos problemas da gestão cultural que se começa a assinalar é que há mais oferta que procura. Há mais gente a produzir e os públicos não aumentam significativamente. Esse é um problema actual que não é de Portugal, é de todos os países mais desenvolvidos.
A arte relaciona-se com a cidadania, no sentido em que, para se exercer bem a cidadania, o conhecimento é importantíssimo, e o conhecimento da inovação e da criação são fundamentais para a formação das pessoas, para o esclarecimento das pessoas, para que tenham uma visão do mundo mais compreensiva, mais tolerante.
O conhecimento da actividade artística, do produto do que os artistas fazem, ajuda-nos a reflectir sobre o mundo, a reflectir sobre nós próprios, portanto, por consequência, a sermos melhores cidadãos, no sentido em que, o conhecimento é fundamental para exercermos bem a nossa vida com os outros.
A educação também se relaciona com isto porque é outra forma de contribuir para a formação do homem, para nos salvar da selvajaria, para nos dar outra dimensão.

Não há razão nenhuma para que se aplique o raciocínio económico à criação artística

Como educar para a cidadania com arte, ou como educar para a cidadania através da arte? É possível? Deve ser assim?
A educação, por natureza, contribui sempre para a cidadania. O simples aprender a ler, a escrever e a contar, mesmo que o ensino seja muito mau, mesmo que haja muitas críticas sobre o ensino, não tenho dúvidas que o adquirir conhecimentos, mesmo que a importância desses conhecimentos não seja a maior, esses não sejam os conhecimentos mais importantes para adquirir, é sempre positivo. E, as opiniões sobre a educação têm variado muito ao longo dos anos, os homens têm-se enganado tanto sobre o que é a educação…. De qualquer maneira, esta é sempre positiva para a cidadania porque forma as pessoas, porque dá conhecimento, e está provado que as pessoas mais educadas são aquelas que têm mais propensão para apreciar, gozar e compreender as práticas artísticas, sobretudo as práticas artísticas não populares, que exigem alguma reflexão, que interpelam as pessoas, que as põem em causa, que interrogam a sociedade. As pessoas que têm educação estão mais habilitadas a perceber, a compreender e a apreciar esse tipo de objecto artístico de construção dos homens.
Como deveremos agir nas nossas cidades relativamente à arte? Devemos dar-lhe valor? Incentivar?
Hoje em dia não há dúvidas. Toda a gente está de acordo que as artes devem ser incentivadas. A parte artística, a construção de objectos artísticos deve ser incentivada. Onde as pessoas se podem dividir é relativamente aos modelos para o fazer. Basicamente existem dois modelos: onde a intervenção do estado é fundamental, e o modelo anglo-saxónico, em que a participação dos particulares, dos privados, é mais predominante, ainda que nesses modelos particulares existam benefícios fiscais, e aí, o estado, indirectamente também apoia. Hoje em dia isso é indiscutível, ninguém põe em causa que sempre foi assim na história da humanidade.
Há certo tipo de realização artística que o mercado não justifica, não sustenta, e sempre foi assim a partir de certa altura na história do homem. Suponho que isso é pacífico. Há um acordo unânime que a prática artística, aquela que não consegue resolver-se no mercado, só sobrevive graças à generosidade dos particulares ou à generosidade do estado.
A arte não poderá nunca ser rentável?
Não. Eu acho que não.
Porque não serve para nada, é isso?
Não, não. Serve! O problema está em que, a certa altura, nos anos oitenta, o poder económico começou a predominar em todos os campos da sociedade. O único padrão de valores, a única maneira de dizer aquilo é bom e aquilo é mau era um discurso económico. No Renascimento, na Grécia, quando se faziam catedrais ou quando se faziam pirâmides, ninguém pensava nisso assim. Era a coisa mais abstrusa do ponto de vista económico e também social, morria imensa gente, os custos eram elevadíssimos.
A certa altura da nossa evolução, só se justificava aquilo que o mercado justificava, aquilo que economicamente se auto sustentava. Acho que não há razão nenhuma para que se aplique o raciocínio económico à criação artística, sem que isso signifique um completo desprezo pelo público.
O artista romântico e muitos artistas contemporâneos achavam que aquilo que tem muito êxito, não presta. Sobretudo a partir do romantismo há muito essa ideia, que muitos artistas geniais, aquilo que faziam, só teria valor se fosse apreciado por muito poucos. De facto, quando as coisas são muito inovadoras, não são compreensíveis pela generalidade das pessoas, são compreendidas por uma fracção. Daí a 50 ou 100 anos já não é assim, mas no momento em que surgem, são de tal modo inovadoras que o número de pessoas para quem aquela obra de arte fala, é um número muito restrito. Mas se não houver inovação também não há evolução na criação artística, por isso é essencial que isso exista assim. O artista, de alguma maneira, está à frente na compreensão. É muito mais inventivo, está muito mais à frente do que a generalidade das pessoas, por isso é que é artista.

Não é por se ouvir muito Marco Paulo que se chega ao Bach.

Para que a arte erudita seja mais amplamente compreendida, deveríamos tentar motivar as pessoas para se interessarem pelas artes. Isso implica uma aprendizagem. É útil e válido intensificar a cultura popular? Há um grau aqui?
Uma coisa não tem a ver com a outra. Não é por se ouvir muito Marco Paulo que se chega ao Bach. Não é por aí! O que não quer dizer que não se dê grande valor à cultura popular. Acho óptimo que as pessoas se emocionem com essas coisas. Muitas vezes não têm outras maneiras de se exprimir, de vibrar.
Agora em relação à arte mais inovadora, acho que deve haver um esforço de explicação. Há artistas que acham que não, que a obra vale por si, quem compreende, compreende, quem não compreende, não compreende. Não concordo, acho que, sobretudo nas formas de maior ruptura, se deve dar a maior informação possível, com a maior qualidade possível, para que maior número de pessoas possa entrar nesse mundo. Daí os serviços educativos e outras medidas que se criam hoje em dia.
Por exemplo nas artes visuais a ruptura é muito complexa. Na música contemporânea a ruptura foi muito grande. Ganha-se em dar às pessoas informação que lhes permita apreciar essa criação. Quanto mais pessoas apreciarem melhor.
Para alguns criadores isso é indiferente, suponho que grande parte deles cria para um grupo restrito de pessoas. Há outros que não, que precisam do sucesso, o sucesso é-lhes fundamental porque chegam a mais gente. Para outros o sucesso é visto noutra dimensão, não é o sucesso em números, é outra coisa.
Mas acho que deve haver a preocupação de tentar, não é explicar, é dar informação, ao maior número de pessoas possível, que há-de ser sempre um número relativamente restrito. Não é possível que todos os homens e todas as mulheres apreciem a Guernica, ou um quarteto de Bartók. Não creio que seja possível. As Quatro Estações de Vivaldi ainda acredito que sim, mas a maior parte das criações não. Depois, há pessoas que gostam de música e não gostam de pintura, depende de cada um. Os homens são muito variáveis.

Paula Ferro

Entrevista reportagem com Rafa Sendin

in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"


Abril de 2009





“Eu jamais iria para a fogueira por uma opinião minha, afinal, não tenho certeza alguma. Porém, eu iria para a fogueira pelo direito de ter e de mudar de opinião, quantas vezes eu quisesse.”

Friedrich Nietzsche


Rafa Sendín
Arte com(o) atitude




Rafa Sendín nasceu em Salamanca em 1971. Frequenta ateliês dinamizados por Christian Boltanski, Gabriel Orozco e Nacho Criado e estuda com Rogelio López Cuenca. Desde 2000 participa em mostras individuais e colectivas, em Espanha, França e Portugal. Em 2005 beneficia da Bolsa Francisco Zurbarán da Junta da Extremadura. A sua obra é objecto de várias publicações e integra as colecções do Banco Santander, da Junta da Extremadura, a Colecção MEIAC, da Institución Cultural El Brocense e do Domus Artium.

A arte detém o conhecimento da história de arte, e há certas normas não escritas, uma delas é a liberdade.

Em “Fossa Comum”, exposição de fotografia e vídeo que se encontra patente ao público até dia 16 de Maio na Artadentro em Faro, Rafa Sendín reflete a partir de registos que retratam o brilho do progresso, ou a informação como sedução. “Este trabalho surge das fotografias publicitárias que podemos ver pelas ruas”, explica, “quando passeio com a minha câmara vou recolhendo muitas coisas, entre elas, fotos aos cartazes publicitários”.
Neste conjunto de obras primeiro vem a ideia, como um desenho mental, depois vêm as fotos, e a seguir, o trabalhá-las em computador. “O estúdio leva-me a elaborar o trabalho de outra maneira. Comecei a reflectir sobre o retrato. Construo um retrato a partir de dois retratos, feitos por outro fotógrafo. Estou a apropriar-me do trabalho de outro artista, ou de outro profissional, neste caso da fotografia publicitária. Utilizo uma parte feminina e outra masculina, e assim introduzo a noção de género: Feminino, masculino. Introduzo o tema da tendência sexual: homem/mulher, mulher/mulher, homem/homem”.
As coisas acontecem. A realidade motiva o olhar de diferentes pontos de vista. “São trabalhos que se desenvolvem muito lentamente. Então, vou introduzindo uma temática múltipla. Não há apenas uma, mas muitas leituras. Por exemplo, os cadáveres esquisitos dos surrealistas. Fazer retratos com duas partes de rostos diferentes que fazem um só retrato. E é curioso ver como duas expressões, de duas secções dos rostos, fazem uma expressão natural”.
Pára diante de uma das suas obras, olha um pouco em silêncio, aponta a fotografia, vira-se e afirma:
“O género não está no rosto nem está no corpo, está na cultura, na educação”.
Somente?
“Principalmente, não somente. É lógico que fisicamente o homem e a mulher são diferentes. Não no rosto, no rosto não são diferentes”.
E no comportamento?
“No comportamento? Sim, mas o comportamento geral é dado pela cultura”.
Nada pelos genes?
“Logicamente algo influirá, mas não tanto como agora sucede”, e lembra, “as nossas mães trabalhavam em casa, cuidando de nós e da casa, enquanto os nossos pais trabalhavam fora. Agora vêem-se, as mulheres e os homens, não de uma maneira igualitária ainda, a aproximar-se muito no desempenho dos mesmos trabalhos”.
Pensa que entre os homens e as mulheres não existem diferenças?
“Muito poucas. As mesmas diferenças que existem entre uma pessoa e outra”.

A arte é uma ferramenta de pensamento e por isso de construção individual

A arte é assumida como gesto, o gesto de um observador intenso em estratégia reflexiva sobre o mundo, essa globalidade variável em permanente transformação.
Também fala de homossexualidade e heterossexualidade…
“Não falo, penso, reflicto. Não trato de resolver. Não me interessa resolver estas questões. Interessa-me assinalar que é negativo que suceda que nos vão guiando. Não quero guias, não quero guias nem na arte, nem na vida. Mas quero informação, quero que me digam as coisas. Com isso me basta, eu decidirei”, pausa., “por exemplo, não tenho formação artística, não estudei arte”, encolhe os ombros num gesto desprendido, “bem, não estudei de forma académica. Evidentemente que me tenho informado e me mantenho informado”, olha com clareza e simplicidade, “não quero tutores. Há uma canção em Espanha que diz ‘eu não quero um bom tutor, prefiro enganar-me eu’”.
“Fossa comum”. Porque razão este título?
“A fossa comum é o local onde se enterravam os fuzilados, na guerra civil, sem identificar os corpos. E como isto sai da publicidade”… sorri, “para mim a publicidade é como uma fossa comum do pensamento dos indivíduos”, olha-me sério, “não?” Pausa, “a publicidade trata de guiar o pensamento, e eu trato aqui de libertar as ideias, de abrir o pensamento”.
Rafa Sendín está atento ao que o rodeia, e para além da dimensão estética, o seu trabalho encerra uma dimensão ética, na medida em que se debruça sobre os fenómenos da alienação colectiva em que vivemos.
“Creio que em arte há um único ponto a atingir, infelizmente muito distante, que é a liberdade. A liberdade de pensamento e a liberdade de acção. A liberdade na hora de trabalhar a obra, na hora de pensar, e na hora de viver”.
Gosta que o espectador da sua obra vá desprevenido de informação, “quero que se possa apreciá-la sem todas as minhas reflexões. Não me importa que não se veja. Quero que o espectador, quando se confronta com uma obra minha, esteja limpo de informação. Primeiro que a veja, que a perceba, e se lhe interessa, que aprofunde a causa. Para isso existe o livro, o texto crítico, as minhas ideias, as minhas intenções… mas primeiro, a obra tem que funcionar visualmente sem informação. Tem que ser vista.”
A arte como generosidade individual, como comportamento, ou melhor, como atitude. “Para mim a arte é uma ferramenta de pensamento e por isso de construção individual”.
Constrói-se através da arte. Essa é uma das funções da arte? Qual a função da arte?
“Bem, função!?” e joga a mão ao queixo para agarrar o pensamento, “bem, não acredito que a arte seja uma coisa inútil. Logicamente não é uma forma de ganhar a vida, não é um trabalho remunerado. A arte é uma atitude, uma maneira de fazer, de pensar e de viver. Não é um trabalho ao uso, que chega ao fim do mês e alguém paga. E não tem horários, pode-se estar trabalhando toda a vida, incluindo quando se dorme. Um artista, tudo o que faz é arte”.
E o que é um artista?
“Aquele que faz arte”.
E o que é a arte?
“A arte detém o conhecimento da história de arte, e há certas normas não escritas, uma delas é a liberdade”.
A liberdade é o caminho da arte?
“Claro, pelo menos como a vejo. Com Goya, nas pinturas da Quinta del Sordo, ou com a pintura política, de livre pensamento, não arte de encargo”.
Pensa que a sua arte é política?
“Existem aí conceitos políticos mas não são reconhecidos na obra. Podem sê-lo, porque falo da liberdade”.
Pensa que a política e a liberdade estão ligadas?
“Sim, claro, a política implica a liberdade e a condenação”.

Nunca me interessou desenhar a realidade. Para isso temos olhos, para vê-la.

Esta exposição é de fotografia, mas Rafa Sendín usa outros suportes para se exprimir. “A ideia vem primeiro, e a ideia é, principalmente, essa meta distante da liberdade. Esteticamente vou procurando a liberdade criativa. Em desenho trabalho com círculos porque me parece ser a forma mais básica. O quadrado é muito artificial. Não faço círculos perfeitos. Se usasse compasso cortaria a minha liberdade”. Em fotografia? “Não sou fotógrafo, utilizo a câmara”.
Gosta especialmente de retrato. “Quando comecei a desenhar fazia sempre retratos. Retratos imaginários, nunca retratavam ninguém. O retrato podia ser desta ou daquela pessoa, mas a única coisa que se assemelhava fisicamente à pessoa que queria retratar era o nome, não o desenho” e sorri, simplesmente, “nunca me interessou desenhar a realidade. Para isso temos olhos, para vê-la”.
Mas o retrato, “é quase o mais importante em arte. O retrato representa-nos, não?”, o olhar abre-se com ar de óbvio, “e através dele quero introduzir muito mais temas. A vida interior do adormecido e a casca da morte”, faz um gesto com a mão, “o corpo que sai…”, olha-me num sorriso, “e estou falando de religião também. Ao fotografar um morto, estou fotografando a alma, ou simplesmente algo que não tem vida? São muitas coisas…” e entrega-se a um sorriso pensativo.
Corto o silencio:
A religião e a morte estão relacionadas.
“Claro, mas eu sou agnóstico. Não creio absolutamente em nada que não seja a vida, o amor, e a liberdade”.
É a concepção da morte, a descoberta da existência da morte, que faz nascer a religião.
“Claro. As perguntas inexplicáveis deram origem à religião. Claro. Inventar histórias para que possamos viver mais a gosto com essas perguntas que não têm respostas”, repousa o olhar no infinito aberto em sorriso, “quando é muito melhor ter perguntas que não têm respostas”.

Paula Ferro