domingo, 25 de outubro de 2009

Jornalismo - Entrevista reportagem com Teresa Patrício

in Postal do Algarve
Março 2008



(in "Geografias Variáveis" - Palácio da Galeria - Tavira)







“A arte é longa, a vida é breve”
In "Aforismos" de Hipócrates

















O trabalho da artista prende-se com o ordenamento do território





É o sul, tenho raízes e estou apaixonada por Cacela Velha







Criar harmonias e envolventes que possam favorecer essa harmonia central


Teresa Patrício começou a interessar-se por actividades criativas quando o pai lhe ofereceu uma caixa de lápis de cor, “tinha talvez três ou quatro aninhos. Os lápis de cor eram assim uma grande alegria”, faz um gesto com os braços e fala pausadamente, “depois fui fazendo coisas. Desenhos. Depois encontrei as tintas, depois chateei-me com as tintas. Então descobri a tapeçaria e foi a grande paixão” e o rosto queda-se iluminado.
Está no Algarve desde 1981 “e o que me mantém aqui é tudo. Nunca tinha pensado muito bem na minha ascendência paterna mas é um facto que ela está cá. Tenho ascendência em Silves e Alcantarilha”. Parou o olhar num ponto do infinito só dela e… “é o sul, tenho raízes e é o sul, o Mediterrâneo, é uma questão de clima e estou apaixonada por Cacela Velha”. Riu, deixando transparecer uma imensa jovialidade.
Também fez teatro, “representei com o Grupo de Teatro António Aleixo”. Em Vila Real de Sto António aconteceram dois festivais de Teatro, “um foi organizado por mim e o Nuno Osório”. Fez “fotografia para a Revista Sul, as capas. Já não existe, saíram oito números e infelizmente acabou”.
Mas, chateou-se com as tintas? Perguntei. “Sim, as tintas são um grande susto”. E voltou a rir com tranquilo ar jovial, “assustam-me muito os pincéis, sinto-me mais à vontade com o têxtil”.
No entanto mostrou vários trabalhos onde os pincéis e as tintas estão presentes, quadros pintados a pastel de óleo diluído em aguarrás sobre pano porque “gosto da textura do pano, é muito menos agressivo do que aquela tela plastificada”. Encolheu os ombros e sorriu com ar de catraia, “tenho medo, não sou pintora”.





Acordo, olho para o meu cão e digo “vamos começar um bom dia?”





Outro tipo de trabalho com tintas e pincel é o restauro criativo e reorganizado de peças de barcos que “morrem na praia”. Peças que “pintei com as suas próprias cores e outras nem sequer pintei”. Usou “esmalte dos barcos, pregos dos barcos”, materiais como os de origem. “Fiz uma recolha de Vila Real de Sto António até Olhão. Peças lindíssimas!”
Conta que “para modernizar a frota pesqueira os pescadores que queriam um subsídio da comunidade europeia com 60 por cento a fundo perdido tinham que abater o seu pequeno e velho barco de pesca, muitas das vezes património marítimo absolutamente fascinante”. Fez uma pausa e sorriu tranquilamente. “Isso levou-me a fazer um trabalho com essas peças de barcos às quais chamei ‘Os Navegantes’” e esteve exposto na Casa Azul em Cacela Velha.
O quotidiano de Teresa Patrício é simples e sadio. O seu grande companheiro é um idoso cão de água algarvio que irradia simpatia. “Acordo, olho para o meu cão e digo ‘vamos começar um bom dia? ’ Ele dá uns grandes pinotes, tomamos o pequeno-almoço e vamos até à praia, depois ponho o meu cão em casa, pego na bicicleta e vou dar um passeio. Venho então para os meus trabalhos, quotidianamente”.
Para Teresa o acto criativo não se limita ao espaço de exposição, à galeria. Apesar da aparente rotina do seu quotidiano, a sua forma de estar na vida é interventiva, criativa e tem um objectivo muito forte. “Criar harmonias e envolventes que possam favorecer essa harmonia central. O objecto central e as envolventes trabalhadas é uma coisa que me fascina muito”.
Há cerca de vinte anos atrás, fez uma instalação na praia de Cacela “uma praia deserta, não tem caixotes… tinha muito lixo. Eu e o Ricardo Baptista, tivemos um mês de Agosto, inteirinho, todos os dias, a apanhar o lixo. Delimitámos trinta mil metros quadrados entre Cacela e a Manta Rota, centrámos Cacela e limpámos tudo até ao mais pequenino pormenor, e metíamos em sacos de plástico atrás da duna.” Parou, divertida. “Havia um amigo nosso muito preocupado, ‘e se vos roubam o lixo’!?” Um riso verdadeiro assomou-se-lhe ao rosto. “Enfim, ninguém nos roubou o lixo”, um sorriso-riso de pausa, “eram mil e quinhentos sacos de lixo e fizemos a instalação que era uma cruz de tóxico, das dunas até ao mar. Havia um panfletozinho explicativo onde também agradecíamos que cada pessoa que veio à exposição levasse um ou dois saquinhos para o contentor mais próximo. A areia agradece!” Fez um gesto largo com o braço, divertida com a lembrança. “A exposição chamava-se ‘O chamamento da Areia’. Bem, a praia ficou mais limpa!”
Teresa Patrício sente que “Cacela Velha devia ser a Pérola da Ria Formosa” e “apeteceu-me fazer coisas que mantivessem essa calma que existia em Cacela, essa cal e essa harmonia”. Passou a pertencer a uma associação, “a ADRIC, Associação de Defesa, Reabilitação do Património Natural e Cultura” onde permaneceu durante vinte anos. “Era uma associação muito novinha mas já existia. Deu origem a muitos trabalhos de defesa do património: caçar caçadores de fósseis, caçadores de pássaros, as arribas… enfim, toda a envolvente natural leva a querer preservar isto ao máximo e isso foi um trabalho…” buscou o adjectivo que a rondava, “… poético!” E sorriu.
“Uma vez que o parque nem sequer tem possibilidade de ter guardas por todo o lado, isto aqui em Cacela era um santuário de tiros e de redes ali no ribeiro que é um santuário de verdade. Deu-nos algum trabalho andar à caça dos caçadores. Criámos alguns inimigos”. Por outro lado, “gente de toda a banda vinha de picareta dar cabo das margens do ribeiro para apanhar fósseis. Foi outro trabalho. Vinham até de Universidades da Europa. O mundo soube antes de nós que aqui era a jazida fóssil mais importante da Península Ibérica. Está praticamente destruída, salvo alguns sítios onde há muita vegetação”.
Cacela é um ponto com importância arqueológica. “O início da arqueologia foi uma coisa nossa. Fazer com que as entidades dessem o devido valor à arqueologia. Passaram muitos povos por aqui antes de nós. Existem marcas romanas e islâmicas. Mas toda a história de Cacela está provavelmente por desvendar uma vez que o tremor de terra de 1755 deu cabo das provas históricas que poderiam existir e depois um fogo em Vila Real de Sto António também destruiu arquivos”.



Cacela está no meu trabalho mais do que tudo.




Há que preservar e fazer viver. A casa que habita é uma prova disso. Recuperada adequando, de modo harmonioso e criativo, a resposta às necessidades actuais com a falta de espaço e a traça de sempre do edifício. Teresa gosta de raízes que prolongam e continuam a vida, de mexer nos materiais naturais, de os tratar com cuidado e preciosidade. “Descobri a cana”, exclama apontando para o tecto da parte térrea da casa, (todo o resto é escavado), tratado por ela “desde o canavial, cortar com um bisturi aquela parte da folha para não rasgar…” e prende o olhar às canas, impecavelmente tratadas, com amor e orgulho.
Contacta com outros artistas. “Infelizmente a pessoa com que me dava mais morreu, o René Bértholo. Morava aqui na Ribeira do Álamo, uma pessoa extraordinária, fazia parte do grupo dos pintores do Levante com Manuel Baptista, Jorge Martins, Costa Pinheiro, entre outros. A esposa dele, a Elna Hellwig, continua por cá e pinta, fotografa.”
Neste momento integra a exposição colectiva “Geografias Variáveis” que se encontra patente ao público no Palácio da Galeria. “O que exponho não é tapeçaria, chamo-lho ‘trapologia’ no sentido do estudo do pano pela arte. Gosto dos materiais e gosto de trabalhar com eles. Trabalho como se fosse um puzzle”. Quadros que em vez de serem construídos com tintas são construídos com pedaços de pano. Usa a máquina de costura, “começo pelo material, pela textura e pela cor. Linhos, de preferência. Isso tem-me dado a possibilidade de criar formas monocromáticas através de linhas de cosedura” vai buscar uma textura diferente, cose os panos, combina diferenças ordenadas, daí a relação entre o seu trabalho e o ordenamento do território. “Cacela está no meu trabalho mais do que tudo. A cal, as formas, os muros e as portas e as janelas e para dentro e para fora disso. Tem a ver com a paisagem natural e também com a urbana. Hoje já não podem ser separadas, temos a paisagem humanizada misturada com a paisagem natural e mais uma vez o ordenamento seria maravilhoso para não termos mais desastres como os que estão por aí à vista”.

Paula Ferro

Jornalismo - Entrevista reportagem com Patrícia Gonçalves

in Postal do Algarve
Fevereiro 2008
(in "Geografias Variáveis" -
- Palácio da Galeria - Tavira)



“A arte é o lugar da liberdade perfeita”
André Suarés




Tenho a certeza que fiz a opção correcta






Os diálogos com Bartolomeu dos Santos fizeram-me crescer









O desenho e a pintura têm o poder do prazer e da comunicação



Patrícia Gonçalves nasceu em Tavira em 1982. A tendência para a arte foi algo que foi crescendo com ela. Desde pequena que gostava de pintar, desenhar, misturar materiais, criar formas. “Quando cheguei à adolescência havia quem dissesse que o meu interesse pela pintura e por todo este mundo artístico era algo passageiro. Isso fazia-me pensar” Sorriu. “Mas a verdade é que não me via sem estar neste meio”. Fez uma pequena pausa e ofereceu-me um sorriso iluminado. “Hoje tenho a certeza que fiz a opção correcta!”
Tem bacharel em Pintura e licenciatura em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Trabalhou com Bartolomeu Cid dos Santos no seu atelier onde aprendeu técnicas de gravura. “Mostrei-lhe o meu trabalho e ele convidou-me para trabalhar no seu atelier onde aprendi imenso com as nossas conversas e as histórias que ele me contava”. Parou um pouco como quem volta atrás nas recordações “Os diálogos entre nós fizeram-me crescer”. Sorriu com o seu peculiar jeito de menina crescida “Eu mostrava-lhe o meu ponto de vista que nem sempre era coincidente com o dele e conversávamos, como iguais,” sorriu mais uma vez, parou e ficou com ar sério, como se tivesse dito algo que não devia “apesar de eu ter uma noção bem definida das distâncias”. Fitou-me séria de modo a não deixar lugar para dúvidas. “Respeito imenso o seu percurso e o seu estatuto de Mestre que me parece quase inalcançável, sobretudo porque estou ainda no início de carreira”.
Relativamente a gravura “ainda estou a explorar as potencialidades desta técnica. Faz-me lembrar um pouco o processo da fotografia. Colocando a chapa nos ácidos, pouco a pouco vão surgindo resultados e não se sabe o que vai sair dali, só depois da prensa é que sabe. Ou seja, imagina-se e cria-se com uma ideia inicial, mas o resultado final é diferente”. Sorriu com ar de catraia, “principalmente para mim pois é uma técnica que ainda não domino, e por isso ainda não sei calcular tempos para deixar a chapa nos ácidos”. Pequena pausa. “Mas posso dizer que tenho gostado dos resultados”.






O desenho e a pintura são testemunhos da vida





Seguidamente entrou no estágio profissional na Câmara de Tavira. Trabalha no Palácio da Galeria/ Museu Municipal de Tavira, na área do Serviço Educativo. Para Patrícia Gonçalves o desenho e a pintura são testemunhos da vida. “Desde a pré-histórica que temos vestígios destas duas formas de arte com as pinturas rupestres” e deixou sair aquela expressão de quem ainda não se despegou da escola. “Já aqui podemos notar que estas duas formas de arte são testemunhos da vida. São como um livro de história porque nos permitem analisar épocas. São duas formas de arte que comunicam”. Parou como quem busca uma forma melhor de dizer as coisas “Talvez me atreva a chamar-lhes ‘ferramentas para mostrar a vida’, o visível e não visível dela” Pequena pausa. “Mostram pensamentos ocultos, acontecimentos mais infelizes ou mais felizes, críticas, etc”. Sorriu, olhou para mim e continuou, “bem, nem sempre comunicam algo. Pode apenas fazer-nos usufruir da sua estética. Esse é o poder do desenho e da pintura. Tal como outras formas de arte, têm o poder do prazer e da comunicação”.







Não me parece que exista uma ‘definição universal’ do que é considerado arte







Tentar saber o que é a arte é uma questão complexa, “é tão complexa que leva sociólogos e filósofos a ocuparem-se dela e a desenvolverem imensas teorias. A arte está em constante reflexão intelectual. É repensada, redefinida, e muito trabalhada. Não tenho a ousadia de dar uma definição de arte”. Sorriu expressando humildade, “depois também não me parece que exista uma ‘definição universal’ do que é considerado arte. Para uns, algumas obras não são consideradas arte, já para outros são. Ou seja, com este paradoxo, parece-me que há necessidade de se saber primeiro o que poderá ser classificado como obra de arte” e o discurso flúi sem paragens. “Quais são as propriedades que levam a tal. Será que a obra para ser considerada uma obra de arte tem que estar no museu? É o museu que dá estatuto à obra? Têm que ser contemplada para ser arte? Quem poderá criar uma obra de arte? Quem é considerado artista? Quem considera que um determinado ‘trabalho’ tem estatuto para ser considerado de obra de arte?” Pequena pausa. “Poderia continuar com imensas questões. Parece-me que o mais adequado seria chegar a um consenso entre entendidos desta área. O que não me parece que seja possível”. Tanta divergência deve-se “talvez ao facto de o mundo estar em constante mudança e a arte ser o ‘espelho’ da vida. Sempre mudando. Isso faz com que as teorias sobre artes, mudem com ele”. Fez uma pausa, ficou séria e esclareceu, “quando iniciei o curso de artes plásticas, pensava que me ia ser dada uma definição de arte mas não.” Pausa. “O que é certo é que aprendi diversas maneiras de reflectir sobre arte, tive conhecimentos de várias teorias, problemas que surgiram ao longo dos anos, li opiniões de diferentes pensadores sobre este assunto. Mas apenas e uma única definição, não”.




O vidro permite que tudo seja visível tal como é





Os trabalhos que apresenta na exposição colectiva intitulada “Geografias Variáveis” que se encontra patente ao público no Palácio da Galeria são fotografias, instalação e escultura. “É um trabalho límpido, branco, translúcido, requintado e até frágil, pois o vidro é um dos materiais de eleição para a realização das peças. São peças visualmente leves mas fisicamente pesadas”.
Utiliza várias matérias e materiais, mas os de maior destaque são o vidro incolor, por vezes água, luz e gesso. “A escolha do vidro e não de outro material, tem haver com a sua característica primordial, a sua transparência. Esta permite que tudo seja visível, que possamos ver além de... É um trabalho com uma mensagem de valorização pelo que é genuíno, o espontâneo, o verdadeiro. O vidro não consegue esconder, permite que tudo seja visível tal como é”. O branco do gesso também está associado à pureza. “Já em latim ‘puro’ tem um sentido material, que é puro o que é limpo, sem mancha, ou seja, sem nódoa”. Reflectiu um pouco. “Apesar de achar que a pureza, a nível do humano não existe. Mas, há sempre pessoas que não vêm o mal onde ele, de facto, não está. Pelo contrário, há muitas outras que vêm mal em toda a parte. Eu procuro valorizar o bom da vida, como uma espécie de ‘hino à vida’”.

As formas arredondadas são apelativas ao toque






A luz do dia, a luz emitida pelo sol, também é importante para a realização do seu trabalho. “A luz simboliza constantemente a vida e a felicidade, as minhas peças/instalações só vivem com luz. O vidro é um material reflectivo e absorve as energias da atmosfera em redor, envolvendo o meio onde se encontra e variando, consoante a hora do dia e até a estação do ano. Aproveito-me da luz inimitável para a realização das fotografias. A luz é o tema central das minhas fotos”.
Outra característica do trabalho apresentado nesta exposição, é o uso de formas arredondadas. “As formas arredondadas são apelativas ao toque ao passo que as pontiagudas, transmitem violência e agressividade” esclarece, “de modo geral é esta a razão da escolha das matérias e materiais para a realização do meu trabalho nesta exposição”.


Paula Ferro



































Jornalismo - Entrevista reportagem com Margarida Santos

in Postal do Algarve
Abril 2008
(in "Geografias Variáveis" - Palácio da Galeria - Tavira)

“A arte, um dos grandes valores da vida, deve ensinar aos homens humildade, tolerância, sabedoria e magnanimidade”
William Sommerset Maugham






Quando quero expressar algo tenho em conta a cor escolhida

Tanto a pintura como o desenho funcionam como catarse mas de modos diferentes.
A gravura permite-me libertar-me imenso
Margarida dos Santos nasceu em Tavira em 1968. Entrou para o Ar.Co em 1991 onde estudou Pintura, Desenho e História de Arte. Seguidamente estudou Temas de Estética e Teorias de Arte Contemporânea na Sociedade Nacional de Belas Artes. Concluiu vários outros cursos e então ingressou na Faculdade de Belas Artes onde se licenciou em Artes Plásticas – Pintura em 2002.
Começou a expor em 1993 numa colectiva do Ar.Co. A partir daí participou em diversas mostras colectivas em locais como o Museu de Angra do Heroísmo nos Açores e Casa das Artes de Tavira, entre outros. Expôs individualmente na Galeria Passage em Ayamonte, Igreja de Monsaraz e Galeria Gravura em Lisboa, entre outros locais.
Em 1995 “fiz um worshop de gravura com o Mestre Bartolomeu dos Santos na Casa das Artes de Tavira. Fui explorar técnicas de gravura que já me vinham despertando curiosidade há algum tempo, mais concretamente a textura e uma série de possibilidades dos materiais. Tirar partido da plasticidade, da técnica em si. Gostei muito”. Afirma “A gravura permite-me libertar-me imenso. Existe uma grande envolvência, e essencialmente permite-me ser mais criativa. Posso usar a fotografia, colagens, aguarela… é um conjunto de experiências que vai mais ao encontro daquilo que eu pretendo transmitir.”
Trabalhar com Bartolomeu dos Santos foi bastante gratificante e enriquecedor porque “partilha connosco as suas experiências, dialoga sobre os nossos trabalhos e fá-lo com imensa abertura. Isso incentiva-nos e ajuda a que o trabalho avance”, conta Margarida dos Santos, “fala muito sobre a influência de outros artistas no nosso trabalho e sobre as técnicas mas sublinha que estas não são mais do que meios para se chegar a algo que só se atinge se nos desligarmos do tecnicismo para outra coisa maior, a procura da nossa própria essência enquanto artistas. Isso conduz-me a uma maior reflexão sobre o meu próprio trabalho”.





Quando pinto existe uma enorme inquietação e no desenho não
No ano seguinte Bartolomeu dos Santos convidou Margarida para ser sua assistente num novo Workshop e “aí explorei um pouco mais esta forma de expressão artística. Foi nessa altura que ficou definitivamente marcado em mim o gosto pela gravura.” Em 2003/04 desenvolve a técnica da gravura na Galeria Diferença em Lisboa.
A pintura e o desenho são essenciais para o seu percurso artístico mas sente-os de modos diferentes. “Quando pinto existe uma enorme inquietação e no desenho não. O desenho permite-me deambular pelo espaço que eu crio”. Independentemente de se usar o desenho ou a pintura como suporte, o fundamental é chegar à profundidade do sentir. A música é muito importante para o seu trabalho. “Quando conseguimos mergulhar nas profundezas da própria arte na busca de tesouros invisíveis, aí está aberto o caminho para a Grande Arte É aqui que entra a música, desempenhando um papel muito importante no mundo da minha pintura. Esta funciona como um fio condutor entre o eu e a arte. Permite-me entrar no espaço criado e conduzir-me a uma maior reflexão. Ao som de Rachel’s, Maria Callas, Rodrigo Leão ou do piano de Keith Jarret, entre outros, vão surgindo novas etapas de um percurso criativo”.


O desenho é fundamental, quer a nível da estruturação do trabalho quer em termos de representação plástica

A cor é inevitável tanto no desenho como na pintura. “Bem, no desenho tento simplificar os meios. Mas, a cor transmite vibrações. Provoca em mim sensações muito fortes que chegam a ser incomodativas” e dá outra direcção ao caminho da reflexão. Impõe outro tipo de opções e de percursos. “Quando quero expressar algo tenho em conta a cor escolhida. Nada é por acaso. Isso torna a pintura mais expressiva e intensa. Quando pinto, o choque comigo mesma é inevitável porque a cor mexe em coisas ocultas, talvez ao nível do inconsciente” muito embora o uso do inconsciente no trabalho final tenha que ser feito com muita consciência. “Tanto a pintura como o desenho funcionam como catarse mas de modos diferentes porque o desenho se torna mais libertador, mais tranquilo, traz-me o encontro comigo própria. A pintura e o desenho quase que são opostos embora se toquem. Um não faz sentido sem o outro, completam-se. Na maioria dos meus trabalhos existe uma fusão entre dois”.
A nível da educação do olhar, o desenho é um mestre para todas as áreas, “é a base de tudo, é fundamental, quer a nível da estruturação do trabalho quer em termos de representação plástica”. Já a pintura “é essencialmente a representação das sensações comunicadas pelo espaço circundante. Bem, ultimamente, com os trabalhos que realizei em função de ‘Geografias Variáveis’ alterarei um pouco a minha opinião sobre o desenho. Tive sensações muito fortes. Começo a aproximar muito o desenho da pintura. Não sei mesmo se o que estou a fazer em desenho não irá ultrapassar o que experimentava antes apenas com a pintura.”
O seu trabalho pretende ter um papel de intervenção. “Quando pinto pretendo abarcar as questões contemporâneas que preocupam a humanidade, nomeadamente ambiente, guerra, sexo…. Interessa-me intervir, mexer com as consciências, essencialmente fazer pensar, sensibilizar, agitar, romper com os preconceitos”.
É importante o estudo da História de Arte porque todos os artistas recebem influências. “A presença constante dos artistas alemães no meu percurso surgiu quase de forma imediata. Inicialmente, aderindo inconscientemente. Hoje percebo que é pela sua força transmitida numa expressividade quase teatral”, explica. “Percursores que vão ao encontro da minha forma de pensar a arte? Vários, Anselm Kiefer, Gerard Richter, Joseph Beuys, William Kentridge, Luc Tuymans, Kiki Smiths e outros”.
Ultimamente “tenho enveredado pelo caminho do design gráfico e ilustração sem deixar de lado as artes plásticas. Tenho vindo a fazer formação nestas áreas, nomeadamente o Workshop de ilustração no AR.CO com Daniel Lima, ‘História da Ilustração’ com Jorge Silva, e ‘Design Gráfico’ em diversas instituições”.

Tenho feito imensas descobertas, essencialmente na exploração das novas tecnologias

Colabora em Lisboa com uma agência de talentos criativos (WHO) com ilustração e Design Gráfico, “tenho feito imensas descobertas, essencialmente na exploração das novas tecnologias que afinal de contas são o futuro e também servem de suporte para o meu trabalho plástico”.
Participou durante três anos consecutivos no Concurso de Ilustração da ETIC (Escola Técnica de Imagem e Comunicação). Ilustrou o “Clube da Poetisa Morta” Adília Lopes editado na Alemanha, assim como diversas capas de livros para o GEOTA (Associação Ambientalista) entre outros projectos gráficos.
“Colaborei com o arqueólogo João Caninas no âmbito da pesquisa documental sobre património arqueológico e etnológico na linha de metro entre o Lumiar e o aeroporto de Lisboa. Neste momento participo da exposição colectiva intitulada “Geografias Variáveis” para a qual fui convidada pelo Dr. Jorge Queiroz que se encontra no Palácio da Galeria em Tavira. Preparo também uma exposição de pintura na Alemanha (Dusseldorf). Paralelamente desenvolvo uma série de projectos gráficos no âmbito de colaborações com o departamento sócio-cultural da Câmara Municipal de Tavira e em trabalhos da Associação Campo Arqueológico de Tavira”.

Paula Ferro

Jornalismo - momentos marcantes- Casa das Artes de Tavira

in Postal do Algarve

Junho 2008


Dois olhares diferentes sobre o Algarve


O poético e o crítico completam-se no mesmo lugar
A Casa das Artes de Tavira iniciou a época “Verão-2008” no passado sábado pelas 22 horas com a inauguração de duas exposições de fotografia: “Portobello” de Patrícia Almeida e “Doce Sal” de Catarina Mendes. O tema explorado pelas fotógrafas é o Algarve.
“Portobello” de Patrícia Almeida debruça-se sobre os não lugares associados ao turismo de massa. Trata-se de uma série de fotografias realizadas no Algarve entre 2005 e 2007. Tal como acontece com nomes como «Acapulco», «Tahiti» ou «Éden», «Portobello» procura evocar um imaginário exótico genérico geralmente associado a uma ideia de natureza virgem e paradisíaca assim como às “insígnias luminescentes” de discotecas, bares, hotéis e outros registos das férias no Alagrve. O que incentiva Patrícia a este trabalho “começou por esse interesse sobre o que são as férias, esta coisa do tempo morto, um tempo para onde vamos para não fazer nada. Apagar o que está para trás. Sem passado, sem futuro, só para estar, para se viver o presente”. Conta a fotógrafa ao POSTAL.
Patrícia Almeida dá-nos uma ideia clara do que representa o Algarve para muitos turistas, um mundo artificial desligado de uma realidade particular para que seja permitido viver fantasias em segurança. Por outro lado Patrícia dá-nos também uma visão mordaz e irónica, “quase Parriana”, de uma zona do país e da forma como a reconstrução do espaço, a urbanização, é encarada . “Como se continua a construir desenfreadamente? Como é que ainda há espaço?” Questiona.
Em simultâneo, “Doce Sal” de Catarina Mendes, explora a magia do sal, a ambivalência que o faz balançar entre o sombrio e o solar, entre o que escurece e o que ilumina. Um percurso poético por várias características do sal.
Dois conjuntos de fotografias que apresentam duas formas diferentes e originais de olhar para o mesmo espaço. Duas formas diferentes de expressão sobre o mesmo tema, usando o mesmo suporte. Com caminhos e visões diferentes, dois olhares especiais e interessantes que nos ajudam a repensar o nosso espaço podem ser vistos na Casa das Artes de Tavira até 1 de Agosto, todos os dias, das 21 e 30 até às 0 e 30 horas. E depois, outras surpresas se seguirão.
Para mais informações pode consultar http://www.acasadasartes.com.
Paula Ferro

Jornalismo - momentos marcantes - Casa das Artes de Tavira

in Postal do Algarve
Junho de 2007



Casa das Artes de Tavira abriu a sua época de exposições







Exposição colectiva de fotografia, escultura, desenho, gravura e vídeo






Tibéria Rosa (à esquerda) e Nada Mandelbaum





Nada Mandelbaum com fotografia analógica a cores e a preto e branco


A Casa das Artes de Tavira abriu a sua época de exposições com uma exposição de fotografia da alemã Nada Mandelbaum e com a dupla de escultores portugueses Miguel Martinho e José Macedo Rodrigues no passado sábado pelas 21 e 30 horas.
Nada Mandelbaum nasceu em Dusseldorf /Alemanha onde estudou dança clássica nas escolas de bailado von Bulow e Pergel, a partir dos anos 80 Modern-Dance, Jazz, Afro, Dança Teatro e Butoh com Kazuo Ohno no Japão. Em 1979 licenciou-se em Arte na Escola Superior de Pedagogia em Neuss/Alemanha. Desde 1985 fez espectáculos de dança em Dusseldorf, Mettmann, Ratingen, Bruxelas e Nova York. Em Portugal fez performances na Galeria Trem, em Faro, na Quinta da Arte e na Casa das Artes em Tavira. Faz fotografia, pintura e cerâmica deste 1983.
A sua máquina fotográfica é um prolongamento de si própria. Através dela fixa momentos que são etapas da história da região onde vive actualmente, dos locais e por onde passa quotidianamente. A actual exposição é formada por um conjunto de fotografias em formato analógico seleccionadas entre muitas que foi tirando ao longo dos anos 2002/2003 e mostram a transformação da paisagem ao lado da EN 125, entre Faro e Olhão. São apresentadas fotografias a cores e a preto e branco. “A beleza é a cores, o mundo antigo do Algarve, os valores arquitectónicos, as casas antigas que nos atraem e vão desaparecer”, revela a artista ao Postal do Algarve, “depois vem o preto e branco que mostra o que vai aparecer a seguir: o betão, os gradeamentos, o mundo da industrialização que não têm a beleza da arquitectura tradicional que está desaparecendo e que está apresentada a cores.” A artista neste momento está trabalhando sobretudo em pintura, tem outra série de fotografias pronta a ser mostrada mas ainda não sabe exactamente onde as vai apresentar.

Miguel Martinho “mais uma tentativa de chamar a atenção para o estado do mundo”


Miguel Martinho, José Delgado Martins e José Macedo Rodrigues


Outra sala é ocupada pelos escultores Miguel Martinho e José Macedo Rodrigues com um projecto de escultura, gravura, desenho e vídeo intitulado “O pano a cair azul”.
Miguel Martinho realizou em 2003 a exposição “Redes Neuronais Artificiais” na Casa das Artes de Tavira, participou em 2005 na XIV Galeria Aberta do Museu Jorge Vieira em Beja e na Bienal de Gravura do Douro em Alijó. Em 2006 foi convidado a participar com um trabalho de vídeo na exposição 50 anos de Gravura em Portugal, Tavira/Lisboa.
José Macedo Rodrigues conta com cerca de 40 exposições colectivas e alguns prémios. Além das colecções privadas está representado em algumas institucionais: Centro de Arte Contemporânea – Palácio da Cerca (Almada), Caixa de Crédito Agrícola de Estremoz, Direcção Regional dos Assuntos Culturais – Secretaria Regional do Turismo e Cultura Funchal, Casa do Sal – Angra do Heroísmo, Casa da Cultura do Município de Santa Cruz – Madeira, Centro Cultural John dos Passos – Madeira.
Para Miguel Martinho há a necessidade de apelar à reflexão sobre a evolução, sobre o que o Ser Humano continua a fazer ao mundo em que vive. “Milhares de anos de evolução tecnológica entregues à sofisticação do fim. A cada dia que passa o ar que respiramos torna-se mais letal. Aparente inocência de insidiosa mercadoria, formatando mentalidades. Energia aplicada no desenvolvimento bélico é negra, visa a destruição. Já conseguimos abalar o equilíbrio precário de demasiados ecossistemas.” É o modo como anuncia o conjunto dos seus trabalhos.
Os dois escultores colaboram em termos técnicos, juntam-se uma vez por mês para desenvolverem trabalhos de fundição em conjunto mas cada um tem o seu caminho individual e os seus objectivos pessoais.
“Em certas coisas trabalhamos juntos, nós fundimos juntos”, explica Miguel Martinho ao Postal do Algarve, “isto é fundido pelos próprios. O facto de se dominar a tecnologia da fundição vai permitir que o resultado seja totalmente diferente do que se fosse uma peça feita e mandada passar a gesso por outras pessoas.” Para Miguel faz todo o sentido que a arte seja uma reflexão sobre a sociedade “nós vivemos tempos que são terríveis e isto no fundo é mais uma tentativa de chamar a atenção para o estado do mundo”, esclarece o escultor “isto no fundo são ruínas do futuro. Estes cavalos são os quatro cavalos do Apocalipse. Os nomes dos canhões são todos muito queridos. Isto é a ironizar no fundo com o grande flagelo que é a guerra e se passa todos os dias no mundo.”

José Macedo Rodrigues em busca de si próprio no universo medieval



José Macedo Rodrigues percorre um caminho diferente dentro da arte. “O vocabulário dos símbolos compõe-se, diversifica-se, segundos critérios de representação gráfica e formal, onde um tipo de comunicação visual se gera, se desenvolve, e se movimenta. Articula-se não em ordem a uma quantidade de registos repetidos, mas segundo uma desfocagem do mundo concreto, a determinação de um efeito global de imagens eficazmente activas, semiabstractas, abertas ao controlo do olhar, que nos fornece desta realidade uma perspectiva dinâmica, e onde as referências anteriores do visível vão perdendo o nexo narrativo”. Assim define o escultor o trabalho que expõe.
“A pretensão de fazer este tipo de objectos, desenhos ou esculturas, não é propriamente transmitir uma mensagem, faço-os para mim, é o mundo que eu invento para mim”, confessa o escultor ao Postal do Algarve, “é uma busca de uma imagética, neste caso particular com a ajuda de símbolos, de ícones na construção de uma linguagem mas para mim”. O artista tem um trabalho muito mais individualista “em busca de mim próprio” e é fascinado pelos ambientes, símbolos e mistérios medievais.
Esta exposição está patente ao público, todos os dias, das 21 e 30 horas às 00 e 30 horas, até dia 20 do corrente mês.

Paula Ferro

Jornalismo- Momentos marcantes



in "Postal do Algarve"


Fevereiro de 2008






“Lápis” de Paulo Serra no Palácio da Galeria


Paulo Serra mostra a vergonha que não é falada









“Lápis” intitula-se a exposição de Paulo Serra inaugurada no passado sábado no Palácio da Galeria. Desenhos de figuras humanas, paisagens urbanas e algumas colagens podem ser vistas nesta exposição individual.
Desde 2002 dedica-se sobretudo ao desenho porque “é um material com diversas possibilidades e acrescenta muito mais ao meu trabalho do que a cor. Torna-o mais lúcido”, afirma Paulo Serra ao Postal do Algarve, “O meu desenho é uma investigação. Onde é que estou? Como é que sou? É uma provocação a mim próprio e ao mesmo tempo é uma verdade que acrescento a mim”. Trabalha diariamente, compulsivamente. “Há momentos em que me afasto e só volto ao trabalho quando me sinto intimamente preparado para retomar essa provocação”, afirma.
Sedento por ver trabalhos de outros artistas, trocar ideias e experiências gosta de História de Arte. “Com Van Gogh aprendi a percorrer o caminho que é só meu.” Sempre foi curioso. O desconhecido atrai-o. “Lobo Antunes diz ‘não entres tão depressa nessa noite escura’. Eu vou muito depressa para esse desconhecido e isso reflecte-se no meu trabalho”.
É possível “desenhar o vento, o cheiro da maçã, o aroma do charuto…Penso: Qual é o melhor material? Qual é a melhor maneira de desenhar? Qual é o melhor estado mental? No fundo as sensações são imagens mentais que mais ou menos se elaboram e que vêm do coração, da razão, vêm do lado mais calmo ou mais instável… Como se está nesse momento? Qual é a história de vida? Tudo isso influencia a imagem mental que se cria e vai ser processada pela mão. A mão é física mas ao mesmo tempo é afectiva. Com a mão se afaga uma criança, a nossa mãe ou uma mulher e tudo isso tem relações ou conexões com a nossa maneira de fazer. Quando mostro um desenho também mostro a maneira como o faço”.
Os seus desenhos não deixam o espectador indiferente porque “há coisas que não são faladas. A vergonha não é falada. Eu mostro essa vergonha que não é falada”.
Esta exposição está patente ao público no Palácio da Galeria até dia 8 de Março. O Palácio da Galeria está aberto de terça a sábado das 10 horas às 12 e 30 e das 14horas às 17 e 30.

Paula Ferro

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Entrevista - Reportagem com Rui Martins




in "Postal do Algarve"


Agosto de 2007








“Pouco importam as notas na música, o que conta são as sensações produzidas por elas”.
Leonid Pervomaisky






“A Arte tem qualquer coisa de mistério e de mágico.”






“A música, no estado puro, é independente do instrumento e do género.”



Rui Martins começou a interessar-se pela música ainda em criança. Em menino, pediu aos pais para lhe oferecerem uma guitarra, “porque eu gostava desse instrumento não sei porquê”. Aos 12 anos começou a tocar “com amigos que já eram músicos na área popular, no rock. Aos 13, 14 anos é que entrei na Academia de Amadores de Música. O presidente era o Lopes Graça, o grande compositor português”. Fez os seus estudos na Academia e no Conservatório de Musica de Lisboa com os professores J. Coutinho, N. V. de Almeida, e P. Naggy. “Depois de completar os meus estudos fui para França”. Foi aperfeiçoar-se na guitarra e em harmonia com A. Ponce e A. Weber e M. Rosset, professores do Conservatório Superior de Paris. Obteve o diploma superior de guitarra do Conservatório Nacional de Região de Música de Courneve e a Medalha de ouro - 1º Prémio (diploma superior) da Escola Nacional de Música de Fresnes. As suas actividades como músico foram variadas, desde concertista a professor de guitarra clássica no Conservatório de Música de Bois-Colombes (região de Paris) e na Escola de Música de St. Witz (França). Organizou encontros de guitarra, foi director de orquestra e júri de diversos concursos do ensino musical.



“É um erro analisar a arte só pela técnica”


Para Rui Martins “a música, no estado puro, é independente do instrumento, é até do género, se é música clássica, barroca, popular, rock, jazz… cada vez me delicio mais com qualquer género de música, quando gosto. Ia dizer quando é boa mas isso é muito vago, pode uma coisa parecer-me boa para mim e má a outra pessoa devido à nossa sociabilidade, à nossa cultura, e à qualidade técnica. Às vezes os músicos analisam a música um bocado mais tecnicamente ou deliciam-se com música que é muito técnica. No entanto uma música pode ser extraordinária com três ou quatro sons diferentes. Não é a quantidade de notas que nos faz deliciar”. O que nos delicia numa música nem sempre é a sua intelectualidade, “é um bocado como na pintura, não me estou a referir a Miró ou Matisse ou a artistas específicos, mas há quadros em que num bocado, num traço, existe uma coisa qualquer que nos faz sentir uma força, uma poesia… e não é preciso o quadro estar cheio de técnica ou de cores. Com a música é a mesma coisa, não é preciso a música estar cheia de notas, com uma técnica incrível, com contrapontos e uma harmonia extraordinariamente intelectual. Com três ou quatro notas pode colocar-nos assim num estado sentimental profundo”. A simplicidade é muito importante, “Mozart era um génio da simplicidade. Tem harmonias extremamente simples, só que as faz de uma forma extraordinariamente bela e genial. Quando a gente sinaliza uma partitura de orquestra dele é uma coisa simples, é acorde de dó, é mi, é sol. São quase as três notas do acorde. Claro que não é só isso mas a base é assim. Outros músicos, contemporâneos e não só, já fazem uma coisa muito mais intelectual. Não quer dizer que não nos possamos deliciar também. Não há assim tanta regra para os sentimentos das pessoas, é como gostar de outra pessoa. Porque é que eu gosto dela? A gente não se vai pôr a definir não sei com quantos parâmetros porque gosta da pessoa: é isto, isto, e isto… às vezes a gente nem sabe bem dizer porque é que gosta de uma pessoa e a Arte também é assim. É um erro analisar a arte só pela técnica. Quando se tem a técnica como referência é muito mais fácil não se errar a fazer um julgamento sobre uma pintura ou uma fotografia. Na música também é mais fácil dizer que um músico que tem mais raciocínio intelectual é bom. Ao ouvirmos um músico popular que usa poucas notas, é mais difícil dizer se é bom ou não mas acho que é mais importante ligar às sensações que nós sentimos do que propriamente à técnica”.


“Uma música pode ser extraordinária com três ou quatro sons diferentes”






“A harmonia é uma questão de moda”
Desde criança que o compositor está presente nele, “ com um amigo meu, o Carlos Cabral, desde a primeira vez que nos encontrámos, enquanto os outros meninos jogavam à bola, nós tocávamos. É giro porque éramos miúdos, não sabíamos tocar, não sabíamos notas mas fazíamos música”. Em França compôs peças de carácter pedagógico e de concerto para guitarra, coro, quarteto de cordas e orquestra. “Componho mais na área da música contemporânea, embora não seja música da vanguarda, longe disso. Tenho uma pulsação rítmica forte. O ritmo é importante porque é essencial na nossa vida”. Os sons, a harmonia “é uma questão de moda. Sons que eram dissonantes aqui há uns anos, são agora perfeitamente normais e as pessoas gostam” mas o ritmo é eterno e faz parte da vida, está dentro dela
, “quando andamos temos o nosso ritmo, a maneira de falar, cada um tem o seu ritmo, o ritmo existe na vida. Quando se faz uma música sem pulsação rítmica, como há pessoas que fazem, para mim vai contra a natureza, toca-me muito menos. Mesmo quando se toca Mozart, Bethooven, Fernando Sor, etc., compositores de guitarra clássica do séc. XVIII, XIX, essa música tem que ser tocada com uma pulsação forte e é muito mais difícil criar essa pulsação quando não há percussão e bateria”.

“Agora penso é na música que está dentro da minha cabeça”
Quando compõe põe-se num estado especial de concentração “concentro-me e liberto-me, começo a compor, a tocar, começam-me a sair as notas, escrevo, começo a encontrar outras vozes, outros instrumentos e só a partir de um certo momento é começo a ver onde é que a música me vai levar. Começo a encontrar um tema e um título para a música e só aí é que sigo a direcção daquela música. Funciono muito pela intuição e por sensações”. A técnica é importante
“ quando faço a música e me liberto, começo a libertar as notas, aos poucos e poucos começo a utilizar a técnica, porque da técnica precisamos todos, mas tento sempre libertar-me ao máximo disso. Não gosto muito de raciocinar antes, raciocino depois, claro. Quero ir mais directamente a uma coisa que não se explica pelo raciocínio. Acho que a Arte tem qualquer coisa de mistério e de mágico.”
Tem apenas uma guitarra clássica, a música não depende do número de instrumentos que se possui nem de um instrumento especial, a música existe dentro dele
. “Já senti uma intimidade maior com a minha guitarra do que sinto agora. Antes, um instrumento era assim como uma pessoa, ligava-me ao instrumento de uma forma muito íntima, pessoal. Agora não, agora penso é na música que está dentro da minha cabeça e a guitarra é um simples instrumento”.
Actualmente lecciona nos Conservatórios de Vila Real de Sto António, de Faro e de Olhão.

Paula Ferro






terça-feira, 11 de agosto de 2009

Jornalismo - Entrevista com António Inverno

in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"

Setembro de 2008





“Libertar as pessoas é o objectivo da arte, logo, a arte é a ciência da liberdade.”
Joseph Beuys







António Inverno
Defensor incondicional da liberdade










Um defensor incondicional da liberdade, cria e dinamiza projectos culturais por onde passa. Partilha o que sabe com a naturalidade com que respira. Fundou instituições como o Centro de Comunicação Visual A.R.C.O. e o Centro Cultural de Almada. Nasce como serígrafo para salvar a Seara Nova e hoje é um homem de destaque internacional na serigrafia, pintura e gravura. Trata por tu os grandes da arte e da política. Actualmente, entre outras actividades, é professor na ESE de Beja.





António Inverno nasceu em 1944 em Monsaraz. Em 64 conclui o curso de Gravador Litografo na Escola António Arroio. Teve como principais mestres, Roberto de Araújo, Manuel Lima, Estrela Faria e Abreu Lima. Trabalhou no atelier de Jorge Barradas na Fábrica da Viúva Lamego, com Rogério Ribeiro e Mário Rafael. Colabora na decoração de interiores do edifício da actual sede da Gulbenkian. Fez parte da equipa de Thomas de Mello, no sector gráfico na Feira Internacional de Lisboa. Em 1970 colabora na "Seara Nova" onde promove edições de serigrafias de artistas portugueses contemporâneos o que lhe dá dimensão internacional. Cria um atelier exclusivamente consagrado à serigrafia na Avenida Conde Valbom. Colabora com Júlio Pomar, Vespeira, Charrua, Espiga Pinto. Eduardo Nery. Maria Keil, Francisco Relógio, Jorge Vieira, Costa Pinheiro, Eurico Gonçalves entre outros. É sócio fundador do Centro Comunicação Visual A.R.C.O. e membro fundador do Centro Cultural de Almada. Organizou e leccionou cursos de serigrafia através de quase todo o país, destinados a professores de Educação Visual, bem como a animadores ligados às autarquias. No âmbito do intercâmbio com África seleccionou jovens artistas aos quais são atribuídas bolsas de estudo nos principais centros culturais da Europa e deu assistência a bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian.
Em 1993 criou o Centro de Serigrafia António Inverno. Colabora em vários Centros Culturais no Alentejo, promovendo exposições de artes plásticas de âmbito nacional. É professor de pintura, gravura, serigrafia e desenho na Escola Superior de Educação de Beja e brevemente também na de Viseu.

A gravura e a serigrafia, são ambas, métodos de reprodução gráfica. Qual a diferença?
Para se fazer serigrafia tem que haver um original e na gravura o original é feito em cima da chapa. Pode haver uma ideia preconcebida para aquela gravura mas a chapa é desenhada na altura.
Em Portugal, a gravura tem vindo a desaparecer, para grande mágoa minha porque gosto muito de gravura. Faz uma pequena pausa como quem desfolha lembranças e continua, olhe, havia um homem que infelizmente faleceu há pouco tempo, para mim um dos melhores gravadores da Europa ou mesmo do mundo, o Bartolomeu dos Santos. Vieram pessoas de todas as partes do mundo para aprender com o Bartolomeu. Ainda existe a Sociedade Portuguesa de Gravadores Portugueses onde ele também trabalhou. Aqui há uns anos os pintores faziam lá os seus trabalhos de gravura. Mas a gravura exige tempo e aquilo suja muito as mãos. Riu-se, há uma série de factores. Uma prensa não é muito cara mas é muito pesada, é difícil deslocá-la. Para fazerem as suas próprias gravuras, os artistas têm de ir a Tavira, onde está a prensa do Bartolomeu ou à Sociedade dos Gravadores Portugueses. Há uma também na Galeria Diferença em Lisboa.
A gravura tem que ser feita pelo próprio artista, não é como a serigrafia que pode ser feita por terceiros. Comecei a fazer serigrafia, as coisas começaram a correr bem, vinha gente do estrangeiro para trabalhar comigo. E a gravura foi sendo anulada. Neste momento, dentro das minhas possibilidades tento recuperá-la.

A arte tem que estar obrigatoriamente ligada à liberdade

Há uma relação entre o António Inverno serígrafo e a Seara Nova.
Pousa o olhar sobre mim com um sorriso e relata: houve uma altura em que a PIDE destruiu a Seara Nova. Fiz uma edição de 18 pintores para pagar coisas da Seara Nova que era uma revista muito importante, onde escreveu o Mário Soares, o Manuel Alegre, o Soromenho, o Zé Saramago… onde escreveu muita gente. Uma revista muito interessante. E a partir dessas edições comecei a ficar conhecido a nível mundial. Acabo por nascer na Seara Nova. Mas só fiz isso porque era preciso manter a Seara Nova, a PIDE partiu máquinas, partiu armários, partiu tudo…

A arte tem de estar ligada à liberdade?
Obrigatoriamente à liberdade. Razão pela qual os pintores na União Soviética, desapareciam, fugiam. Não tinham liberdade. E há boa pintura na Rússia, mas tinha muitas casinhas, muitas florzinhas… Tinha que ser tudo muito concreto.
O artista nunca se deu bem com a falta de liberdade.
Ninguém tem o direito de interromper o meu pensamento. De dizer: ‘tu não podes!’ Um pensamento é sempre criticável. Ninguém é dono da verdade, mas deixem-me ser livre! Faz uma pausa, olha-me de frente, sorri de novo e continua, agora, infelizmente vivemos num país onde as autoridades políticas não fazem nada pela cultura. Têm medo da cultura, sorri, olhe, o futebol! Não tenho nada contra o futebol nem contra quem gosta de futebol, mas é um tónico que dão às pessoas para terem ausências de pensamento, para nem sequer experimentarem a ter liberdade.

E, o que é a liberdade?
A liberdade? Olhe, a liberdade não é fazer tudo o que me apetece. Não, não é nada disso! A liberdade é não haver polícias, não haver juízes, não haver fome, não haver miséria. Um homem ter a possibilidade de se exprimir de qualquer forma, seja através da arte ou do que for. E é ter mais respeito pelo semelhante.

Portanto a liberdade define-se a partir de valores como o respeito e o livre pensamento.
Exactamente!

Mas tudo tem um reverso e cada atitude que se comete, uma consequência.
Claro!

Quando se age livremente pensa-se nas consequências dos nossos gestos e aí está a responsabilidade, não é?
É evidente! E esta liberdade que hoje dizem que temos, é mentira. E incomoda-me bastante este desprezo pela cultura. Não estou a acusar o ministro da cultura. Sou amigo dele, é uma pessoa muito inteligente, um grande senhor, mas não faz muito pela cultura neste país. Não há condições para isso, nem ele as vai criar.


Quando há cultura, as pessoas lidam umas com as outras de outra maneira.


A cultura é mesmo fundamental?
É! Pois claro que é!

Porquê?
Olhe, porque há países com menos recursos naturais que Portugal e no entanto têm um nível de vida superior porque têm melhor nível cultural.
A cultura é necessária sim, e constato que só por carolice nossa é que hoje se passam coisas muito interessantes neste país e cada vez mais, fora de Lisboa. Mas essas pessoas que dinamizam esses projectos deviam ser apoiadas. E o apoio nem sempre é dinheiro. As pessoas querem sentir-se compensadas com o seu acto de liberdade de pensamento. O Ministério da Cultura tem a mania de responder: “não temos verba para isso”. Ninguém lhes está a pedir dinheiro e muitas vezes se pedirem é para material que fica ali para outros eventos.







Homenagem em Algezur

Foi-lhe feita uma homenagem no passado dia 2 de Agosto em Aljezur onde pode ser visitada uma exposição fotoducomental, de serigrafias e aguarelas até dia 28. O evento contou com o Alto Patrocínio do Presidente da República. Presentes estiveram cerca de 400 pessoas provindas de diversos lugares do mundo e entre elas, personalidades como Luís Cabral. Na Comissão de Honra, encontram-se nomes como Elísio Summavielle e Gonçalo Couceiro e como os patronos, personalidades como Durão Barroso e Mário Soares. Contou com o apoio de instituições como o Governo Civil de Faro, Fundação Calouste Gulbenkian, Circulo Artur Bual e a Câmara da Amadora, entre outras.






Foi-lhe feita, em Aljezur, uma Homenagem. Qual a sua relação com Aljezur?
Gosto muito de andar por ali porque é de facto um ambiente de liberdade com interesse pelo saber. Existem projectos que não contam só com a população de Aljezur que é um concelho pequeno. Há a colaboração da Amadora. Penso que o Ministério da Cultura também vai participar. A Câmara de Aljezur? O Vereador, o Presidente e o Francisco Oliveira são pessoas abertas. Noutros sítios por onde tenho andado, às vezes perguntam: ‘aquele teu amigo não é de direita? Ou, não é de esquerda? ‘Houve lá uma série de conferências que se chamavam Desconversas, fui eu quem convidou as pessoas e nunca ninguém me perguntou se os meus amigos são de direita ou de esquerda.
O vereador da cultura é um grande senhor, sabe muito bem o que quer e tem uma vantagem, quando não sabe, pergunta. O Presidente da Câmara, é um homem que fala com as pessoas, senta-se à mesa com toda a gente, é uma pessoa calma e respeitada.
Em Aljezur sinto-me bem porque há democracia. E aquilo que está mal, procuram fazer melhor, e procuram aprender. E acho engraçado, eles perguntarem às pessoas como é que é.


Mas afinal o que é a cultura?
É ter a noção do que se passa à nossa volta. Se houver cultura há informação e poderemos fazer crescer algumas pessoas e atenuar as mágoas e as dores de muita gente. Tem que haver cultura para tudo isso. O mundo não pode viver só com fábricas. E as pessoas que estão na caixa de um supermercado também têm que ter cultura para fazerem mais e melhor, terem consciência e atenderem com alguma delicadeza. Olhe os polícias, um polícia não tem o direito de me tratar mal só porque tem uma farda. Isso não é cultura nem liberdade nem coisa nenhuma. Quando há cultura, as pessoas lidam umas com as outras de outra maneira.


Nem todos os capitalistas são fascistas

A cultura é imprescindível para ter mundo?
Claro! Faz uma pequena pausa, olhe, quando estive na guerra, estive na Guiné. Por vezes ocupei-me de explicar aos soldados portugueses afinal o que é a liberdade, o que é a cultura. Mostrar-lhes que para atingirmos a liberdade temos que dar liberdade aos outros. Fui castigado por causa disso! Eu tinha uma boa relação com o chamado inimigo exactamente através da liberdade que eu sentia e queria para os outros. É que as crianças não podem fugir e os velhos também não, ficam no terreno. Era consciencializar os soldados. Muitos abraçaram-me e outros trataram-me mal. Faz uma pausa. Sente-se nele uma certa comoção. Quando o homem tem alguma cultura entende muito bem e eu sempre procurei, dentro daquilo que eu possa saber, ensinar os outros.
Nessa altura já havia quem defendesse a liberdade dos povos e também devo dizer que nem todos os capitalistas são fascistas. Olhe, um grande capitalista que vivia em Lisboa, o Manuel Vinhas entregou-me sacos de dinheiro que eu, ainda jovem, entregava ao Agostinho Neto, ao Amílcar Cabral e a outros. Nova pausa, com outro sorriso, sereno, fiquei com muitos amigos, mas também fiquei com inimigos. E os inimigos quem são? São homens que por falta de cultura, por falta de educação, por falta de informação, por falta de uma série de coisas, viam em mim um mau exemplo, não defendia o meu país. Isso é mentira! Eu sempre defendi o meu país! Mas neste sentido: que os outros também sejam livres. Para eu ter liberdade não posso oprimir os outros. Isso foi o meu grande problema e que deixou marcas. Pausa. Agora lamento muito que outros homens, que às vezes vão para o poder, e que andaram a atirar pedradas, não para magoar alguém, mas contra um determinado poder, quando lá chegam, fazem exactamente aquilo que condenaram nos outros.

Acha que o poder é corruptor da humanidade dos homens?
Acho que sim!

Como pode ser educado o homem que vai exercer o poder?
Isso é muito difícil, repare, já há polícias para guardarem outros polícias. Já se mandam juízes para julgar outros juízes. Já não se está a acreditar em ninguém. Teríamos que nos educar a todos, a nós próprios, primeiro. Então, a partir daí, poderia nascer qualquer coisa.

A cultura é muito vasta, não é só erudita.
Com certeza, olhe, por exemplo, devia haver muito mais respeito pelos poetas populares, porque a erudição vem depois.

Artesanato e arte?
A arte é uma coisa e o artesanato é outra. Para o artesanato tem que haver muita habilidade, na arte pode não se ser tão habilidoso. Há indivíduos que são muito habilidosos e vivem dessa habilidade, mas a habilidade também não é a mesma coisa que a arte.

E o ultra-realismo?
Tem mais habilidade que arte. Por exemplo, encomenda um retrato da sua avó, paga ao pintor, põe na parede e depois convive com aquilo, chega a uma altura em que deixa de lhe dar importância. Os retratistas não ficam na história.

Mas o retrato pode ser feito de outro modo.
Pode! Olhe, o retrato que o Pomar fez do Mário Soares.

Concorda que o 25 de Abril chegou à Galeria da Presidência da Republica com o retrato do Mário Soares feito pelo Pomar?
Sim, sim. Riu. Foi muito contestado, não é?

A arte estimula o pensamento do artista e o seu trabalho estimula o pensamento de terceiros?
Exacto. Eu posso fazer uma pintura e daí a uns tempos alguém me vir dizer que descobriu isto e aquilo nessa pintura e eu responder: ‘isso é verdade, mas nunca tinha pensado nisso’.


O valor é do autor do quadro, não é do habilidoso que o reproduziu

Isso significa que perde a propriedade da sua pintura quando acaba a obra? A obra passa a ser propriedade do colectivo?
Eu vendo um quadro e esse quadro só deixa de ser meu ou da minha família 75 anos depois de eu morrer. Por exemplo, há aquele quadro de Fernando Pessoa que fez o Almada. O que está na Gulbenkian é uma réplica. O verdadeiro está no Museu da Cidade. Aqui há muitos anos o Jorge de Brito comprou-o e ofereceu-o à cidade. Comprou esse quadro num leilão. O que o Jorge de Brito pagou pelo quadro foi muito mais do que aquilo que o Almada recebeu por ele. Tenho impressão que o Almada recebeu mais da mais valia do que pelo quadro. Existe uma réplica na Gulbenkian, mas o seu valor é do autor do quadro, não é do habilidoso que o reproduziu.

O acto de pintar é um acto de solidão?
Um pintor está fechado entre quatro paredes, não fala com ninguém mas de propósito. Não se considera um indivíduo que vive em solidão. Mas pintar é um acto de solidão, sim.
O Sá Nogueira dizia que um pintor nunca deve estar desacompanhado. Tem que ter sempre um livro aberto, uma revista, uma coisa qualquer, mesmo que seja de pernas para o ar. E depois é a música, normalmente um pintor tem música no atelier.

A pincelada pode ser influenciada pela música?
Pode, pois pode. Até as cores podem ser influenciadas pela música.

Um allegro pode determinar um quadro cheio de movimento?
Sim, pode! A pintura é um acto de liberdade. Um homem é livre de fazer aquilo que quiser quando pega num pincel. Onde aprendi também muito foi com os loucos. Aquela liberdade que eles têm de se soltarem num espaço branco e depois começam a fazer aquelas pinceladas e começam a rir, e começam a soltar-se, começam a subir, a crescer.
Há essa solidão e depois também há esse acto de liberdade.



Onde aprendi muito foi com os loucos!



A relação do desaprender de Picasso e o acto do louco que não aprendeu mas que apenas se exprime e a arte em si?
O trabalho dos loucos interessa exactamente porque não aprenderam, já são crescidos e fazem as coisas como crianças. Um indivíduo chega a uma certa altura acaba por mecanizar os gestos e os pensamentos, por perder essa espontaneidade que os loucos têm.

Como começa um quadro?
Prefiro começar pelo caos, ir organizando um caos. Primeiro jogo a tinta para o espaço, depois dou pinceladas de todo a maneira e feitio. Muita gente começa por aí. Depois começo a organizar o caos. Uma das minhas funções é organizar esse caos. Muitas vezes acabo por descobrir no caos coisas que tinha pensado há muito tempo. Tem que ter uma dimensão de equilíbrio e uma dimensão da cor porque as cores também têm uma dimensão.

A arte mora no pensamento.

A arte mora onde?
Mora no pensamento.
A arte não é copiar o que se vê, isso pode ser habilidade. A arte quer transmitir um pensamento, um estado, uma emoção. Por exemplo na minha relação com os toiros na pintura, estou cá em cima na bancada e todo aquele desenho que se desenvolve numa arena, aquelas cores, aquela gente, o próprio desenho da arena, as pessoas ali sentadas e é redondo normalmente. Acho aquilo muito bonito! Aquelas cores lá em baixo, aqueles capotes, o toiro, a areia, tudo aquilo é bonito e tem movimento. A pintura não é uma coisa estática, tem que ter movimento. Esse movimento e toda essa emoção, um habilidoso pode não ser capaz de retratar, um menos habilidoso por vezes busca uma outra solução, faz de outra maneira e torna-se muito mais interessante. Por exemplo, se eu pintasse toiros na Rússia não ia preso, ou se calhar ia porque não há lá toiros, mas eles preferiam que eu pintasse uma casinha, uma jarra, uma criancinha a correr, tinham que perceber o que é que eu estava a pintar. Nada dessa coisa desses estados e dessas emoções. Nada que fosse discutível, que fizesse pensar, e a arte, no fundo é o pensamento. E faz com que as pessoas pensem.

Paula Ferro e Ricardo Claro








quinta-feira, 23 de julho de 2009

Entrevista com Miguel Lobo Antunes


in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"

Abril de 2009



“Quem tem imaginação mas não tem cultura, possui asas, mas não tem pés”.
Joseph Joubert


Miguel Lobo Antunes
Clareza, eficiência e flexibilidade


Miguel Lobo Antunes foi vice-presidente do ex-Instituto Português de Cinema (1983-85), director para o Cinema e Animação na Europália (1989-92), assessor jurídico de Lisboa Capital da Cultura (1994), geriu o Centro Cultural de Belém (1996-2001), foi programador do Festival Internacional de Música de Mafra, jurista do Tribunal Constitucional e actualmente é gestor da Culturgest.

Nunca houve tanta produção artística como actualmente

Gostaria que me falasse sobre a relação entre educação e cidadania e do papel da arte em ambas.
A arte é qualquer coisa de intrínseco à natureza humana. Desde sempre o homem teve uma necessidade ou um impulso para a criação artística. E continua a tê-la. Faz parte da condição humana. O homem sempre teve a procura do belo, ou o uso da imaginação, ou da construção, seja na arte popular, seja na erudita. Isso é um impulso, faz parte da natureza humana. Ninguém pode apagar isso, nunca se apagará. Haverá sempre artistas, sempre, enquanto existirem homens e mulheres.
Põem-se outras questões: haver um ambiente mais ou menos propício para que essas vocações, para que essa necessidade interior que as pessoas têm, se possa de exprimir e chegar aos outros. E isso tem variado segundo épocas históricas embora se tenha mantido sempre.
Existem épocas menos florescentes e épocas mais florescentes na história da humanidade. Houve alturas em que, por circunstâncias variadíssimas, se deu um crescimento singular, excepcional, na produção artística. Acho que actualmente vivemos um desses momentos, no sentido em que a produção artística se generalizou pelo mundo todo. Há imensas relações de comunicação, logo temos o acesso facilitado às produções artísticas mais díspares e das origens mais diferentes. De algum modo a criação artística globalizou-se.
Nunca houve, provavelmente, tanta produção artística como actualmente. Um dos problemas da gestão cultural que se começa a assinalar é que há mais oferta que procura. Há mais gente a produzir e os públicos não aumentam significativamente. Esse é um problema actual que não é de Portugal, é de todos os países mais desenvolvidos.
A arte relaciona-se com a cidadania, no sentido em que, para se exercer bem a cidadania, o conhecimento é importantíssimo, e o conhecimento da inovação e da criação são fundamentais para a formação das pessoas, para o esclarecimento das pessoas, para que tenham uma visão do mundo mais compreensiva, mais tolerante.
O conhecimento da actividade artística, do produto do que os artistas fazem, ajuda-nos a reflectir sobre o mundo, a reflectir sobre nós próprios, portanto, por consequência, a sermos melhores cidadãos, no sentido em que, o conhecimento é fundamental para exercermos bem a nossa vida com os outros.
A educação também se relaciona com isto porque é outra forma de contribuir para a formação do homem, para nos salvar da selvajaria, para nos dar outra dimensão.

Não há razão nenhuma para que se aplique o raciocínio económico à criação artística

Como educar para a cidadania com arte, ou como educar para a cidadania através da arte? É possível? Deve ser assim?
A educação, por natureza, contribui sempre para a cidadania. O simples aprender a ler, a escrever e a contar, mesmo que o ensino seja muito mau, mesmo que haja muitas críticas sobre o ensino, não tenho dúvidas que o adquirir conhecimentos, mesmo que a importância desses conhecimentos não seja a maior, esses não sejam os conhecimentos mais importantes para adquirir, é sempre positivo. E, as opiniões sobre a educação têm variado muito ao longo dos anos, os homens têm-se enganado tanto sobre o que é a educação…. De qualquer maneira, esta é sempre positiva para a cidadania porque forma as pessoas, porque dá conhecimento, e está provado que as pessoas mais educadas são aquelas que têm mais propensão para apreciar, gozar e compreender as práticas artísticas, sobretudo as práticas artísticas não populares, que exigem alguma reflexão, que interpelam as pessoas, que as põem em causa, que interrogam a sociedade. As pessoas que têm educação estão mais habilitadas a perceber, a compreender e a apreciar esse tipo de objecto artístico de construção dos homens.
Como deveremos agir nas nossas cidades relativamente à arte? Devemos dar-lhe valor? Incentivar?
Hoje em dia não há dúvidas. Toda a gente está de acordo que as artes devem ser incentivadas. A parte artística, a construção de objectos artísticos deve ser incentivada. Onde as pessoas se podem dividir é relativamente aos modelos para o fazer. Basicamente existem dois modelos: onde a intervenção do estado é fundamental, e o modelo anglo-saxónico, em que a participação dos particulares, dos privados, é mais predominante, ainda que nesses modelos particulares existam benefícios fiscais, e aí, o estado, indirectamente também apoia. Hoje em dia isso é indiscutível, ninguém põe em causa que sempre foi assim na história da humanidade.
Há certo tipo de realização artística que o mercado não justifica, não sustenta, e sempre foi assim a partir de certa altura na história do homem. Suponho que isso é pacífico. Há um acordo unânime que a prática artística, aquela que não consegue resolver-se no mercado, só sobrevive graças à generosidade dos particulares ou à generosidade do estado.
A arte não poderá nunca ser rentável?
Não. Eu acho que não.
Porque não serve para nada, é isso?
Não, não. Serve! O problema está em que, a certa altura, nos anos oitenta, o poder económico começou a predominar em todos os campos da sociedade. O único padrão de valores, a única maneira de dizer aquilo é bom e aquilo é mau era um discurso económico. No Renascimento, na Grécia, quando se faziam catedrais ou quando se faziam pirâmides, ninguém pensava nisso assim. Era a coisa mais abstrusa do ponto de vista económico e também social, morria imensa gente, os custos eram elevadíssimos.
A certa altura da nossa evolução, só se justificava aquilo que o mercado justificava, aquilo que economicamente se auto sustentava. Acho que não há razão nenhuma para que se aplique o raciocínio económico à criação artística, sem que isso signifique um completo desprezo pelo público.
O artista romântico e muitos artistas contemporâneos achavam que aquilo que tem muito êxito, não presta. Sobretudo a partir do romantismo há muito essa ideia, que muitos artistas geniais, aquilo que faziam, só teria valor se fosse apreciado por muito poucos. De facto, quando as coisas são muito inovadoras, não são compreensíveis pela generalidade das pessoas, são compreendidas por uma fracção. Daí a 50 ou 100 anos já não é assim, mas no momento em que surgem, são de tal modo inovadoras que o número de pessoas para quem aquela obra de arte fala, é um número muito restrito. Mas se não houver inovação também não há evolução na criação artística, por isso é essencial que isso exista assim. O artista, de alguma maneira, está à frente na compreensão. É muito mais inventivo, está muito mais à frente do que a generalidade das pessoas, por isso é que é artista.

Não é por se ouvir muito Marco Paulo que se chega ao Bach.

Para que a arte erudita seja mais amplamente compreendida, deveríamos tentar motivar as pessoas para se interessarem pelas artes. Isso implica uma aprendizagem. É útil e válido intensificar a cultura popular? Há um grau aqui?
Uma coisa não tem a ver com a outra. Não é por se ouvir muito Marco Paulo que se chega ao Bach. Não é por aí! O que não quer dizer que não se dê grande valor à cultura popular. Acho óptimo que as pessoas se emocionem com essas coisas. Muitas vezes não têm outras maneiras de se exprimir, de vibrar.
Agora em relação à arte mais inovadora, acho que deve haver um esforço de explicação. Há artistas que acham que não, que a obra vale por si, quem compreende, compreende, quem não compreende, não compreende. Não concordo, acho que, sobretudo nas formas de maior ruptura, se deve dar a maior informação possível, com a maior qualidade possível, para que maior número de pessoas possa entrar nesse mundo. Daí os serviços educativos e outras medidas que se criam hoje em dia.
Por exemplo nas artes visuais a ruptura é muito complexa. Na música contemporânea a ruptura foi muito grande. Ganha-se em dar às pessoas informação que lhes permita apreciar essa criação. Quanto mais pessoas apreciarem melhor.
Para alguns criadores isso é indiferente, suponho que grande parte deles cria para um grupo restrito de pessoas. Há outros que não, que precisam do sucesso, o sucesso é-lhes fundamental porque chegam a mais gente. Para outros o sucesso é visto noutra dimensão, não é o sucesso em números, é outra coisa.
Mas acho que deve haver a preocupação de tentar, não é explicar, é dar informação, ao maior número de pessoas possível, que há-de ser sempre um número relativamente restrito. Não é possível que todos os homens e todas as mulheres apreciem a Guernica, ou um quarteto de Bartók. Não creio que seja possível. As Quatro Estações de Vivaldi ainda acredito que sim, mas a maior parte das criações não. Depois, há pessoas que gostam de música e não gostam de pintura, depende de cada um. Os homens são muito variáveis.

Paula Ferro

Entrevista reportagem com Rafa Sendin

in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"


Abril de 2009





“Eu jamais iria para a fogueira por uma opinião minha, afinal, não tenho certeza alguma. Porém, eu iria para a fogueira pelo direito de ter e de mudar de opinião, quantas vezes eu quisesse.”

Friedrich Nietzsche


Rafa Sendín
Arte com(o) atitude




Rafa Sendín nasceu em Salamanca em 1971. Frequenta ateliês dinamizados por Christian Boltanski, Gabriel Orozco e Nacho Criado e estuda com Rogelio López Cuenca. Desde 2000 participa em mostras individuais e colectivas, em Espanha, França e Portugal. Em 2005 beneficia da Bolsa Francisco Zurbarán da Junta da Extremadura. A sua obra é objecto de várias publicações e integra as colecções do Banco Santander, da Junta da Extremadura, a Colecção MEIAC, da Institución Cultural El Brocense e do Domus Artium.

A arte detém o conhecimento da história de arte, e há certas normas não escritas, uma delas é a liberdade.

Em “Fossa Comum”, exposição de fotografia e vídeo que se encontra patente ao público até dia 16 de Maio na Artadentro em Faro, Rafa Sendín reflete a partir de registos que retratam o brilho do progresso, ou a informação como sedução. “Este trabalho surge das fotografias publicitárias que podemos ver pelas ruas”, explica, “quando passeio com a minha câmara vou recolhendo muitas coisas, entre elas, fotos aos cartazes publicitários”.
Neste conjunto de obras primeiro vem a ideia, como um desenho mental, depois vêm as fotos, e a seguir, o trabalhá-las em computador. “O estúdio leva-me a elaborar o trabalho de outra maneira. Comecei a reflectir sobre o retrato. Construo um retrato a partir de dois retratos, feitos por outro fotógrafo. Estou a apropriar-me do trabalho de outro artista, ou de outro profissional, neste caso da fotografia publicitária. Utilizo uma parte feminina e outra masculina, e assim introduzo a noção de género: Feminino, masculino. Introduzo o tema da tendência sexual: homem/mulher, mulher/mulher, homem/homem”.
As coisas acontecem. A realidade motiva o olhar de diferentes pontos de vista. “São trabalhos que se desenvolvem muito lentamente. Então, vou introduzindo uma temática múltipla. Não há apenas uma, mas muitas leituras. Por exemplo, os cadáveres esquisitos dos surrealistas. Fazer retratos com duas partes de rostos diferentes que fazem um só retrato. E é curioso ver como duas expressões, de duas secções dos rostos, fazem uma expressão natural”.
Pára diante de uma das suas obras, olha um pouco em silêncio, aponta a fotografia, vira-se e afirma:
“O género não está no rosto nem está no corpo, está na cultura, na educação”.
Somente?
“Principalmente, não somente. É lógico que fisicamente o homem e a mulher são diferentes. Não no rosto, no rosto não são diferentes”.
E no comportamento?
“No comportamento? Sim, mas o comportamento geral é dado pela cultura”.
Nada pelos genes?
“Logicamente algo influirá, mas não tanto como agora sucede”, e lembra, “as nossas mães trabalhavam em casa, cuidando de nós e da casa, enquanto os nossos pais trabalhavam fora. Agora vêem-se, as mulheres e os homens, não de uma maneira igualitária ainda, a aproximar-se muito no desempenho dos mesmos trabalhos”.
Pensa que entre os homens e as mulheres não existem diferenças?
“Muito poucas. As mesmas diferenças que existem entre uma pessoa e outra”.

A arte é uma ferramenta de pensamento e por isso de construção individual

A arte é assumida como gesto, o gesto de um observador intenso em estratégia reflexiva sobre o mundo, essa globalidade variável em permanente transformação.
Também fala de homossexualidade e heterossexualidade…
“Não falo, penso, reflicto. Não trato de resolver. Não me interessa resolver estas questões. Interessa-me assinalar que é negativo que suceda que nos vão guiando. Não quero guias, não quero guias nem na arte, nem na vida. Mas quero informação, quero que me digam as coisas. Com isso me basta, eu decidirei”, pausa., “por exemplo, não tenho formação artística, não estudei arte”, encolhe os ombros num gesto desprendido, “bem, não estudei de forma académica. Evidentemente que me tenho informado e me mantenho informado”, olha com clareza e simplicidade, “não quero tutores. Há uma canção em Espanha que diz ‘eu não quero um bom tutor, prefiro enganar-me eu’”.
“Fossa comum”. Porque razão este título?
“A fossa comum é o local onde se enterravam os fuzilados, na guerra civil, sem identificar os corpos. E como isto sai da publicidade”… sorri, “para mim a publicidade é como uma fossa comum do pensamento dos indivíduos”, olha-me sério, “não?” Pausa, “a publicidade trata de guiar o pensamento, e eu trato aqui de libertar as ideias, de abrir o pensamento”.
Rafa Sendín está atento ao que o rodeia, e para além da dimensão estética, o seu trabalho encerra uma dimensão ética, na medida em que se debruça sobre os fenómenos da alienação colectiva em que vivemos.
“Creio que em arte há um único ponto a atingir, infelizmente muito distante, que é a liberdade. A liberdade de pensamento e a liberdade de acção. A liberdade na hora de trabalhar a obra, na hora de pensar, e na hora de viver”.
Gosta que o espectador da sua obra vá desprevenido de informação, “quero que se possa apreciá-la sem todas as minhas reflexões. Não me importa que não se veja. Quero que o espectador, quando se confronta com uma obra minha, esteja limpo de informação. Primeiro que a veja, que a perceba, e se lhe interessa, que aprofunde a causa. Para isso existe o livro, o texto crítico, as minhas ideias, as minhas intenções… mas primeiro, a obra tem que funcionar visualmente sem informação. Tem que ser vista.”
A arte como generosidade individual, como comportamento, ou melhor, como atitude. “Para mim a arte é uma ferramenta de pensamento e por isso de construção individual”.
Constrói-se através da arte. Essa é uma das funções da arte? Qual a função da arte?
“Bem, função!?” e joga a mão ao queixo para agarrar o pensamento, “bem, não acredito que a arte seja uma coisa inútil. Logicamente não é uma forma de ganhar a vida, não é um trabalho remunerado. A arte é uma atitude, uma maneira de fazer, de pensar e de viver. Não é um trabalho ao uso, que chega ao fim do mês e alguém paga. E não tem horários, pode-se estar trabalhando toda a vida, incluindo quando se dorme. Um artista, tudo o que faz é arte”.
E o que é um artista?
“Aquele que faz arte”.
E o que é a arte?
“A arte detém o conhecimento da história de arte, e há certas normas não escritas, uma delas é a liberdade”.
A liberdade é o caminho da arte?
“Claro, pelo menos como a vejo. Com Goya, nas pinturas da Quinta del Sordo, ou com a pintura política, de livre pensamento, não arte de encargo”.
Pensa que a sua arte é política?
“Existem aí conceitos políticos mas não são reconhecidos na obra. Podem sê-lo, porque falo da liberdade”.
Pensa que a política e a liberdade estão ligadas?
“Sim, claro, a política implica a liberdade e a condenação”.

Nunca me interessou desenhar a realidade. Para isso temos olhos, para vê-la.

Esta exposição é de fotografia, mas Rafa Sendín usa outros suportes para se exprimir. “A ideia vem primeiro, e a ideia é, principalmente, essa meta distante da liberdade. Esteticamente vou procurando a liberdade criativa. Em desenho trabalho com círculos porque me parece ser a forma mais básica. O quadrado é muito artificial. Não faço círculos perfeitos. Se usasse compasso cortaria a minha liberdade”. Em fotografia? “Não sou fotógrafo, utilizo a câmara”.
Gosta especialmente de retrato. “Quando comecei a desenhar fazia sempre retratos. Retratos imaginários, nunca retratavam ninguém. O retrato podia ser desta ou daquela pessoa, mas a única coisa que se assemelhava fisicamente à pessoa que queria retratar era o nome, não o desenho” e sorri, simplesmente, “nunca me interessou desenhar a realidade. Para isso temos olhos, para vê-la”.
Mas o retrato, “é quase o mais importante em arte. O retrato representa-nos, não?”, o olhar abre-se com ar de óbvio, “e através dele quero introduzir muito mais temas. A vida interior do adormecido e a casca da morte”, faz um gesto com a mão, “o corpo que sai…”, olha-me num sorriso, “e estou falando de religião também. Ao fotografar um morto, estou fotografando a alma, ou simplesmente algo que não tem vida? São muitas coisas…” e entrega-se a um sorriso pensativo.
Corto o silencio:
A religião e a morte estão relacionadas.
“Claro, mas eu sou agnóstico. Não creio absolutamente em nada que não seja a vida, o amor, e a liberdade”.
É a concepção da morte, a descoberta da existência da morte, que faz nascer a religião.
“Claro. As perguntas inexplicáveis deram origem à religião. Claro. Inventar histórias para que possamos viver mais a gosto com essas perguntas que não têm respostas”, repousa o olhar no infinito aberto em sorriso, “quando é muito melhor ter perguntas que não têm respostas”.

Paula Ferro