in ".S" - Caderno de Artes do "Postal do Algarve"
Setembro de 2008
“Libertar as pessoas é o objectivo da arte, logo, a arte é a ciência da liberdade.”
Joseph Beuys
António Inverno
Defensor incondicional da liberdade
Um defensor incondicional da liberdade, cria e dinamiza projectos culturais por onde passa. Partilha o que sabe com a naturalidade com que respira. Fundou instituições como o Centro de Comunicação Visual A.R.C.O. e o Centro Cultural de Almada. Nasce como serígrafo para salvar a Seara Nova e hoje é um homem de destaque internacional na serigrafia, pintura e gravura. Trata por tu os grandes da arte e da política. Actualmente, entre outras actividades, é professor na ESE de Beja.
António Inverno nasceu em 1944 em Monsaraz. Em 64 conclui o curso de Gravador Litografo na Escola António Arroio. Teve como principais mestres, Roberto de Araújo, Manuel Lima, Estrela Faria e Abreu Lima. Trabalhou no atelier de Jorge Barradas na Fábrica da Viúva Lamego, com Rogério Ribeiro e Mário Rafael. Colabora na decoração de interiores do edifício da actual sede da Gulbenkian. Fez parte da equipa de Thomas de Mello, no sector gráfico na Feira Internacional de Lisboa. Em 1970 colabora na "Seara Nova" onde promove edições de serigrafias de artistas portugueses contemporâneos o que lhe dá dimensão internacional. Cria um atelier exclusivamente consagrado à serigrafia na Avenida Conde Valbom. Colabora com Júlio Pomar, Vespeira, Charrua, Espiga Pinto. Eduardo Nery. Maria Keil, Francisco Relógio, Jorge Vieira, Costa Pinheiro, Eurico Gonçalves entre outros. É sócio fundador do Centro Comunicação Visual A.R.C.O. e membro fundador do Centro Cultural de Almada. Organizou e leccionou cursos de serigrafia através de quase todo o país, destinados a professores de Educação Visual, bem como a animadores ligados às autarquias. No âmbito do intercâmbio com África seleccionou jovens artistas aos quais são atribuídas bolsas de estudo nos principais centros culturais da Europa e deu assistência a bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian.
Em 1993 criou o Centro de Serigrafia António Inverno. Colabora em vários Centros Culturais no Alentejo, promovendo exposições de artes plásticas de âmbito nacional. É professor de pintura, gravura, serigrafia e desenho na Escola Superior de Educação de Beja e brevemente também na de Viseu.
A gravura e a serigrafia, são ambas, métodos de reprodução gráfica. Qual a diferença?
Para se fazer serigrafia tem que haver um original e na gravura o original é feito em cima da chapa. Pode haver uma ideia preconcebida para aquela gravura mas a chapa é desenhada na altura.
Em Portugal, a gravura tem vindo a desaparecer, para grande mágoa minha porque gosto muito de gravura. Faz uma pequena pausa como quem desfolha lembranças e continua, olhe, havia um homem que infelizmente faleceu há pouco tempo, para mim um dos melhores gravadores da Europa ou mesmo do mundo, o Bartolomeu dos Santos. Vieram pessoas de todas as partes do mundo para aprender com o Bartolomeu. Ainda existe a Sociedade Portuguesa de Gravadores Portugueses onde ele também trabalhou. Aqui há uns anos os pintores faziam lá os seus trabalhos de gravura. Mas a gravura exige tempo e aquilo suja muito as mãos. Riu-se, há uma série de factores. Uma prensa não é muito cara mas é muito pesada, é difícil deslocá-la. Para fazerem as suas próprias gravuras, os artistas têm de ir a Tavira, onde está a prensa do Bartolomeu ou à Sociedade dos Gravadores Portugueses. Há uma também na Galeria Diferença em Lisboa.
A gravura tem que ser feita pelo próprio artista, não é como a serigrafia que pode ser feita por terceiros. Comecei a fazer serigrafia, as coisas começaram a correr bem, vinha gente do estrangeiro para trabalhar comigo. E a gravura foi sendo anulada. Neste momento, dentro das minhas possibilidades tento recuperá-la.
A arte tem que estar obrigatoriamente ligada à liberdade
Há uma relação entre o António Inverno serígrafo e a Seara Nova.
Pousa o olhar sobre mim com um sorriso e relata: houve uma altura em que a PIDE destruiu a Seara Nova. Fiz uma edição de 18 pintores para pagar coisas da Seara Nova que era uma revista muito importante, onde escreveu o Mário Soares, o Manuel Alegre, o Soromenho, o Zé Saramago… onde escreveu muita gente. Uma revista muito interessante. E a partir dessas edições comecei a ficar conhecido a nível mundial. Acabo por nascer na Seara Nova. Mas só fiz isso porque era preciso manter a Seara Nova, a PIDE partiu máquinas, partiu armários, partiu tudo…
A arte tem de estar ligada à liberdade?
Obrigatoriamente à liberdade. Razão pela qual os pintores na União Soviética, desapareciam, fugiam. Não tinham liberdade. E há boa pintura na Rússia, mas tinha muitas casinhas, muitas florzinhas… Tinha que ser tudo muito concreto.
O artista nunca se deu bem com a falta de liberdade.
Ninguém tem o direito de interromper o meu pensamento. De dizer: ‘tu não podes!’ Um pensamento é sempre criticável. Ninguém é dono da verdade, mas deixem-me ser livre! Faz uma pausa, olha-me de frente, sorri de novo e continua, agora, infelizmente vivemos num país onde as autoridades políticas não fazem nada pela cultura. Têm medo da cultura, sorri, olhe, o futebol! Não tenho nada contra o futebol nem contra quem gosta de futebol, mas é um tónico que dão às pessoas para terem ausências de pensamento, para nem sequer experimentarem a ter liberdade.
E, o que é a liberdade?
A liberdade? Olhe, a liberdade não é fazer tudo o que me apetece. Não, não é nada disso! A liberdade é não haver polícias, não haver juízes, não haver fome, não haver miséria. Um homem ter a possibilidade de se exprimir de qualquer forma, seja através da arte ou do que for. E é ter mais respeito pelo semelhante.
Portanto a liberdade define-se a partir de valores como o respeito e o livre pensamento.
Exactamente!
Mas tudo tem um reverso e cada atitude que se comete, uma consequência.
Claro!
Quando se age livremente pensa-se nas consequências dos nossos gestos e aí está a responsabilidade, não é?
É evidente! E esta liberdade que hoje dizem que temos, é mentira. E incomoda-me bastante este desprezo pela cultura. Não estou a acusar o ministro da cultura. Sou amigo dele, é uma pessoa muito inteligente, um grande senhor, mas não faz muito pela cultura neste país. Não há condições para isso, nem ele as vai criar.
Quando há cultura, as pessoas lidam umas com as outras de outra maneira.
A cultura é mesmo fundamental?
É! Pois claro que é!
Porquê?
Olhe, porque há países com menos recursos naturais que Portugal e no entanto têm um nível de vida superior porque têm melhor nível cultural.
A cultura é necessária sim, e constato que só por carolice nossa é que hoje se passam coisas muito interessantes neste país e cada vez mais, fora de Lisboa. Mas essas pessoas que dinamizam esses projectos deviam ser apoiadas. E o apoio nem sempre é dinheiro. As pessoas querem sentir-se compensadas com o seu acto de liberdade de pensamento. O Ministério da Cultura tem a mania de responder: “não temos verba para isso”. Ninguém lhes está a pedir dinheiro e muitas vezes se pedirem é para material que fica ali para outros eventos.
Homenagem em Algezur
Foi-lhe feita uma homenagem no passado dia 2 de Agosto em Aljezur onde pode ser visitada uma exposição fotoducomental, de serigrafias e aguarelas até dia 28. O evento contou com o Alto Patrocínio do Presidente da República. Presentes estiveram cerca de 400 pessoas provindas de diversos lugares do mundo e entre elas, personalidades como Luís Cabral. Na Comissão de Honra, encontram-se nomes como Elísio Summavielle e Gonçalo Couceiro e como os patronos, personalidades como Durão Barroso e Mário Soares. Contou com o apoio de instituições como o Governo Civil de Faro, Fundação Calouste Gulbenkian, Circulo Artur Bual e a Câmara da Amadora, entre outras.
Foi-lhe feita, em Aljezur, uma Homenagem. Qual a sua relação com Aljezur?
Gosto muito de andar por ali porque é de facto um ambiente de liberdade com interesse pelo saber. Existem projectos que não contam só com a população de Aljezur que é um concelho pequeno. Há a colaboração da Amadora. Penso que o Ministério da Cultura também vai participar. A Câmara de Aljezur? O Vereador, o Presidente e o Francisco Oliveira são pessoas abertas. Noutros sítios por onde tenho andado, às vezes perguntam: ‘aquele teu amigo não é de direita? Ou, não é de esquerda? ‘Houve lá uma série de conferências que se chamavam Desconversas, fui eu quem convidou as pessoas e nunca ninguém me perguntou se os meus amigos são de direita ou de esquerda.
O vereador da cultura é um grande senhor, sabe muito bem o que quer e tem uma vantagem, quando não sabe, pergunta. O Presidente da Câmara, é um homem que fala com as pessoas, senta-se à mesa com toda a gente, é uma pessoa calma e respeitada.
Em Aljezur sinto-me bem porque há democracia. E aquilo que está mal, procuram fazer melhor, e procuram aprender. E acho engraçado, eles perguntarem às pessoas como é que é.
Mas afinal o que é a cultura?
É ter a noção do que se passa à nossa volta. Se houver cultura há informação e poderemos fazer crescer algumas pessoas e atenuar as mágoas e as dores de muita gente. Tem que haver cultura para tudo isso. O mundo não pode viver só com fábricas. E as pessoas que estão na caixa de um supermercado também têm que ter cultura para fazerem mais e melhor, terem consciência e atenderem com alguma delicadeza. Olhe os polícias, um polícia não tem o direito de me tratar mal só porque tem uma farda. Isso não é cultura nem liberdade nem coisa nenhuma. Quando há cultura, as pessoas lidam umas com as outras de outra maneira.
Nem todos os capitalistas são fascistas
A cultura é imprescindível para ter mundo?
Claro! Faz uma pequena pausa, olhe, quando estive na guerra, estive na Guiné. Por vezes ocupei-me de explicar aos soldados portugueses afinal o que é a liberdade, o que é a cultura. Mostrar-lhes que para atingirmos a liberdade temos que dar liberdade aos outros. Fui castigado por causa disso! Eu tinha uma boa relação com o chamado inimigo exactamente através da liberdade que eu sentia e queria para os outros. É que as crianças não podem fugir e os velhos também não, ficam no terreno. Era consciencializar os soldados. Muitos abraçaram-me e outros trataram-me mal. Faz uma pausa. Sente-se nele uma certa comoção. Quando o homem tem alguma cultura entende muito bem e eu sempre procurei, dentro daquilo que eu possa saber, ensinar os outros.
Nessa altura já havia quem defendesse a liberdade dos povos e também devo dizer que nem todos os capitalistas são fascistas. Olhe, um grande capitalista que vivia em Lisboa, o Manuel Vinhas entregou-me sacos de dinheiro que eu, ainda jovem, entregava ao Agostinho Neto, ao Amílcar Cabral e a outros. Nova pausa, com outro sorriso, sereno, fiquei com muitos amigos, mas também fiquei com inimigos. E os inimigos quem são? São homens que por falta de cultura, por falta de educação, por falta de informação, por falta de uma série de coisas, viam em mim um mau exemplo, não defendia o meu país. Isso é mentira! Eu sempre defendi o meu país! Mas neste sentido: que os outros também sejam livres. Para eu ter liberdade não posso oprimir os outros. Isso foi o meu grande problema e que deixou marcas. Pausa. Agora lamento muito que outros homens, que às vezes vão para o poder, e que andaram a atirar pedradas, não para magoar alguém, mas contra um determinado poder, quando lá chegam, fazem exactamente aquilo que condenaram nos outros.
Acha que o poder é corruptor da humanidade dos homens?
Acho que sim!
Como pode ser educado o homem que vai exercer o poder?
Isso é muito difícil, repare, já há polícias para guardarem outros polícias. Já se mandam juízes para julgar outros juízes. Já não se está a acreditar em ninguém. Teríamos que nos educar a todos, a nós próprios, primeiro. Então, a partir daí, poderia nascer qualquer coisa.
A cultura é muito vasta, não é só erudita.
Com certeza, olhe, por exemplo, devia haver muito mais respeito pelos poetas populares, porque a erudição vem depois.
Artesanato e arte?
A arte é uma coisa e o artesanato é outra. Para o artesanato tem que haver muita habilidade, na arte pode não se ser tão habilidoso. Há indivíduos que são muito habilidosos e vivem dessa habilidade, mas a habilidade também não é a mesma coisa que a arte.
E o ultra-realismo?
Tem mais habilidade que arte. Por exemplo, encomenda um retrato da sua avó, paga ao pintor, põe na parede e depois convive com aquilo, chega a uma altura em que deixa de lhe dar importância. Os retratistas não ficam na história.
Mas o retrato pode ser feito de outro modo.
Pode! Olhe, o retrato que o Pomar fez do Mário Soares.
Concorda que o 25 de Abril chegou à Galeria da Presidência da Republica com o retrato do Mário Soares feito pelo Pomar?
Sim, sim. Riu. Foi muito contestado, não é?
A arte estimula o pensamento do artista e o seu trabalho estimula o pensamento de terceiros?
Exacto. Eu posso fazer uma pintura e daí a uns tempos alguém me vir dizer que descobriu isto e aquilo nessa pintura e eu responder: ‘isso é verdade, mas nunca tinha pensado nisso’.
O valor é do autor do quadro, não é do habilidoso que o reproduziu
Isso significa que perde a propriedade da sua pintura quando acaba a obra? A obra passa a ser propriedade do colectivo?
Eu vendo um quadro e esse quadro só deixa de ser meu ou da minha família 75 anos depois de eu morrer. Por exemplo, há aquele quadro de Fernando Pessoa que fez o Almada. O que está na Gulbenkian é uma réplica. O verdadeiro está no Museu da Cidade. Aqui há muitos anos o Jorge de Brito comprou-o e ofereceu-o à cidade. Comprou esse quadro num leilão. O que o Jorge de Brito pagou pelo quadro foi muito mais do que aquilo que o Almada recebeu por ele. Tenho impressão que o Almada recebeu mais da mais valia do que pelo quadro. Existe uma réplica na Gulbenkian, mas o seu valor é do autor do quadro, não é do habilidoso que o reproduziu.
O acto de pintar é um acto de solidão?
Um pintor está fechado entre quatro paredes, não fala com ninguém mas de propósito. Não se considera um indivíduo que vive em solidão. Mas pintar é um acto de solidão, sim.
O Sá Nogueira dizia que um pintor nunca deve estar desacompanhado. Tem que ter sempre um livro aberto, uma revista, uma coisa qualquer, mesmo que seja de pernas para o ar. E depois é a música, normalmente um pintor tem música no atelier.
A pincelada pode ser influenciada pela música?
Pode, pois pode. Até as cores podem ser influenciadas pela música.
Um allegro pode determinar um quadro cheio de movimento?
Sim, pode! A pintura é um acto de liberdade. Um homem é livre de fazer aquilo que quiser quando pega num pincel. Onde aprendi também muito foi com os loucos. Aquela liberdade que eles têm de se soltarem num espaço branco e depois começam a fazer aquelas pinceladas e começam a rir, e começam a soltar-se, começam a subir, a crescer.
Há essa solidão e depois também há esse acto de liberdade.
Onde aprendi muito foi com os loucos!
A relação do desaprender de Picasso e o acto do louco que não aprendeu mas que apenas se exprime e a arte em si?
O trabalho dos loucos interessa exactamente porque não aprenderam, já são crescidos e fazem as coisas como crianças. Um indivíduo chega a uma certa altura acaba por mecanizar os gestos e os pensamentos, por perder essa espontaneidade que os loucos têm.
Como começa um quadro?
Prefiro começar pelo caos, ir organizando um caos. Primeiro jogo a tinta para o espaço, depois dou pinceladas de todo a maneira e feitio. Muita gente começa por aí. Depois começo a organizar o caos. Uma das minhas funções é organizar esse caos. Muitas vezes acabo por descobrir no caos coisas que tinha pensado há muito tempo. Tem que ter uma dimensão de equilíbrio e uma dimensão da cor porque as cores também têm uma dimensão.
A arte mora no pensamento.
A arte mora onde?
Mora no pensamento.
A arte não é copiar o que se vê, isso pode ser habilidade. A arte quer transmitir um pensamento, um estado, uma emoção. Por exemplo na minha relação com os toiros na pintura, estou cá em cima na bancada e todo aquele desenho que se desenvolve numa arena, aquelas cores, aquela gente, o próprio desenho da arena, as pessoas ali sentadas e é redondo normalmente. Acho aquilo muito bonito! Aquelas cores lá em baixo, aqueles capotes, o toiro, a areia, tudo aquilo é bonito e tem movimento. A pintura não é uma coisa estática, tem que ter movimento. Esse movimento e toda essa emoção, um habilidoso pode não ser capaz de retratar, um menos habilidoso por vezes busca uma outra solução, faz de outra maneira e torna-se muito mais interessante. Por exemplo, se eu pintasse toiros na Rússia não ia preso, ou se calhar ia porque não há lá toiros, mas eles preferiam que eu pintasse uma casinha, uma jarra, uma criancinha a correr, tinham que perceber o que é que eu estava a pintar. Nada dessa coisa desses estados e dessas emoções. Nada que fosse discutível, que fizesse pensar, e a arte, no fundo é o pensamento. E faz com que as pessoas pensem.
Paula Ferro e Ricardo Claro