quarta-feira, 13 de maio de 2009

Entrevista com Pedro Cabrita Reis




in ".S"


- Revista de Artes - Suplemento Mensal do Semanário


"Postal do Algarve"
( Fevereiro de 2009)






Cabrita Reis
autenticidade materializada










Cabrita Reis nasceu em Lisboa mas escolheu o interior da serra algarvia para construir a sua casa. Gosta da luz do sul porque possui um imenso “rigor mental”. Conta com o reconhecimento internacional dentro da arte contemporânea. Considera-se um pintor mas a sua obra tornou-se crucial para o entendimento da escultura.
Mantém-se em diálogo com as grandes tradições da história da arte moderna. Encontra nelas terreno fértil onde planta a sua imensa capacidade de se deixar impressionar por momentos simples mas únicos da realidade que depois de integrados faz acontecer em Obra.
Homem e artista aliançam-se numa amálgama compacta de vida que se busca e se expressa. Possui uma personalidade saliente que alberga um luzir constante. A sua presença sente-se. Quando entra, o olhar antecede-o e marca território no primeiro instante.
Para quem só o conhece do outro lado das coisas, ele intimida.

Como artista revelo-me em tudo aquilo que faço e na maneira como sou.

- O que é que leva uma pessoa a optar pelo caminho das artes plásticas e depois a manter-se nele? Perguntei. É por ser uma profissão como outra qualquer ou é algo mais visceral?
- Só posso responder por mim.
A sua voz é palpável e enche o lugar.
- Desde que me conheço sempre quis ser pintor e sempre o fui. Nunca tive qualquer dúvida ou hesitação. Nunca se me pôs a questão da dúvida sequer.
Há firmeza, ritmo, cadência, na projecção das palavras.
- As dúvidas que eventualmente pudesse ter tido, tenho e terei, prendem-se com as minhas interrogações sobre o trabalho, nunca sobre a minha vida, ou sobre aquilo que nem sequer escolhi fazer, fiz sempre.
Fica suspenso por um momento.
- Nunca me interroguei sobre a justeza desse modo de estar na vida.
Há uma frontalidade intensa no olhar. A sua presença instala-se como autenticidade materializada.
- Considera-se um pintor…
Deixa escapar uma pequena impaciência. As palavras saem-lhe a trote.
- Considero-me um pintor e sou um pintor e é coisa que faço sempre. Posso, de vez em quando, fazer ou não fazer esculturas, ou outras coisas…
- Era isso que queria dizer, como é que fazendo escultura…
- Não vejo as coisas tão diferentes umas das outras. Devo-lhe dizer que por mais de uma vez essa questão me foi colocada.
Uma macieza recente roça a tonalidade da voz que de repente volta a ficar firme e segura.
- Volto àquilo que sempre disse. Eu, de facto, sou um artista, com a carga e o peso que isso tem. Como é que me revelo como artista? Revelo-me em tudo aquilo que faço e na maneira como sou. Não creio que haja uma forma linear de determinar uma evolução causal no processo. Não faço desenhos para depois fazer pinturas, para depois olhar para elas e fazer esculturas. Provavelmente a pintura ainda não está seca e já estou a pregar as tábuas uma na outra e entretanto olho para o lado e vejo que não tenho pregos e já passa da hora para os ir comprar, e porque não posso continuar a fazer a escultura que estou a fazer, faço uns desenhos, enquanto a pintura está a secar. Não há um edifício causal em que umas coisas levam às outras num processo de evolução. O que há é um todo que é o eu, é o ser, é nome, é o olhar sobre o mundo, e esse todo vai-se reconhecendo a si próprio, vai-se materializando, existe, vai-se satisfazendo, fazendo o que lhe dá na gana. E eu sou assim.
Quando a comunicação se começa a estabelecer, há uma confiança que nasce no ar e o tempo começa a escorregar, balançado pelo sopro da sintonia.
- Há uma altura em que inclui lixo nas suas obras.
- Incluo tudo o que me interessa, tanto faz. Posso incluir um bocado desta conversa, ou uma imagem que tenha visto por acaso, fortuitamente. Posso dizer, por exemplo, que a imagem mais forte que hoje guardei na memória foi um gato entalado entre uma janela e uma grade. Entalado na transparência do vidro. Gostei de ver. Agora faz parte do meu caderno de apontamentos mental tal como um bocado de um lixo qualquer, ou algo que veja e mais tarde me dá informação para um trabalho.
- Para si a arte não tem limites.
- Creio que para ninguém.
Um sorriso marca o instante e um princípio de cumplicidade amanhece.
- Não imagino como poderia ter limites. Teria limites se tivesse uma determinação de funções e uma determinação de usos. Nem uma coisa nem outra se podem aplicar ao entendimento ou ao exercício da arte. A arte é, digamos, uma das características da espécie.
- Mas acha que a arte serve para alguma coisa?
Sorri.
- Não. Essa é que é a sua grande vantagem. Justamente.
A qualidade absolutamente extraordinária deste exercício que só nós inventámos é a sua absoluta inutilidade. Não serve para garantir nenhuma das funções da sobrevivência humana e contudo é específico da nossa espécie. Quer dizer que evoluímos ao ponto de fazermos uma coisa que não serve para nada. Mais ainda, evoluímos ao ponto de deixar que alguns de nós, da comunidade, possam fazer uma coisa que não serve para nada e que é, à posteriori, muito útil para todos, por muitas razões.
Deixa o tempo exacto para que as suas afirmações se aconcheguem no interior do outro. E continua:
- É, de facto, uma actividade que não tem qualquer utilidade, entendida esta à luz de um discurso de necessidades imediatas, por hipótese. E é isso que a torna tão escorregadia, tão fugidia, tão incapaz de poder ser massificada e inclusive de ser utilizada. Não é que tenham faltado ocasiões ou pessoas que a tenham querido utilizar por razões políticas, mas curiosamente, o resultado ou produto desses momentos é sempre o primeiro a ser descartado e mandado para o lixo porque não tem, jamais atinge, a qualidade ou a importância da arte que não é vista por esse lado funcional. Todas as fases da história da arte que foram ilustração propagandística deste ou daquele momento, desta ou daquela circunstância histórica e fugaz, acabam por ser deitadas para o caixote do lixo pela própria história. Neo-realismo, o Realismo Socialista, etc...
Uma curta pausa culmina em novo arranque sem espaço para questões.
- É evidente que a arte não está desligada das contradições sociais e da história. O Barroco não podia ter aparecido na altura do Neoclássico e a Arte Flamenga não podia ter aparecido na altura da Renascença, o Impressionismo só podia ter aparecido depois das primeiras descobertas ópticas e o Cubismo só aparece com a psicanálise. As coisas só aparecem no tempo em que podem aparecer. Daí inferimos, sem grande dor ou sofrimento, ou sem grande exercício mental, que a arte tem sempre um pé na história e um pé no futuro, na utopia, na visualização daquilo que há-de ser. Por isso é que a arte é importante, por ser aquela espécie de capacidade de poder configurar aquilo que nós viremos a ser. Curiosamente só se percebe isso depois.
As pessoas que cumprem na sociedade a função inútil de ser artistas, são pessoas que configuram modelos de relação, olhares sobre o mundo. Essas coisas não são importantes ou claras no momento em que se fazem, mas são, à posteriori, ferramentas para se perceber o tempo.
A arte tem algumas vantagens em relação a outras actividades humanas, ela é uma ferramenta do mundo, dizem que menos objectiva que a ciência, mas seguramente mais rica no modo como pode permitir ao ser humano imaginar-se como um todo. Posso perceber o que é que se passa com as células estaminais, posso considerar importante a questão da difusão da luz ou física quântica, contudo nada disto, em si mesmo, me dá uma noção absoluta de mim próprio e do mundo. São coisas parcelares, seguramente muito importantes para a luta contra o cancro mas absolutamente inúteis quanto ao entendimento da espécie. A arte tem essa capacidade, imagino eu. Se me perguntar como é que tenho a noção de como é que nós fomos e do que eventualmente poderemos vir a ser, seguramente temos muito mais margem para perceber isso analisando as pinturas, lendo os livros e escutando as musicas que foram construídas, do que analisando os decretos-lei, as decisões dos reis, ou as tricas da Igreja, meras questões parcelares. Há um conhecimento absoluto, radicado na posição artística, não verificável em qualquer outra manifestação da espécie.

A procura da beleza é a procura de uma coisa impossível que é sarar uma ferida, uma ruptura entre a expulsão do paraíso e a tentativa de retornar a ele.

Aproveito um silêncio e pergunto:
- E qual é o lugar da ética? Estética e ética. Há relação, não há relação?
- Não creio que haja uma relação intestinal entre ambas . A ética de um artista prende-se exclusivamente com a natureza do trabalho que faz. A ética é uma construção de um comportamento ou de uma atitude que apenas se prende com o modo ou a forma como esse artista pretende projectar uma imagem de si próprio sobre o mundo. Não pode ser um juízo valorativo ou um código determinador de comportamentos, não há, não pode haver.
- Nem chamadas de atenção…
- Não, de todo, de forma alguma. Não!
- É apenas a expressão de si próprio?
- Só pode ser assim e depois a sociedade digerirá ou interessar-se-á por isso, se a coisa for oportuna e se de facto tiver algum peso.
Posso-lhe perguntar: qual é a ética da escola de Barbizon? Aqueles pintores que pintavam umas ovelhas no campo, umas nuvens e uns pôr-do-sol. Aparentemente nenhuma. Não vem daí nenhum princípio normativo para regulamentação do comportamento humano. Contudo são o sintoma de uma coisa muito importante que é uma espécie de um momento pré moderno, e quando a saída do atelier para o exterior vem prefigurar uma mudança de paradigmas nos interesses dos artistas, que até essa data integravam sobretudo um universo muito ligado à mitologia, ou à religião, ou ao elogio heróico da sociedade política, dos reis. Libertos no campo com telas, pincéis e cavaletes, no fundo, os artistas preparam-se para se desviar das regras políticas que os tornavam meros ilustradores do status quo. Descobrem a individualidade e, passam a descobrir que a vida real, aqui simbolizada pela observação e representação da natureza, é suficiente manancial para reflexão e exercício da arte. Propõem-se, ao sair para a natureza, sem que o saibam ainda, fazer uma mudança radical que é subtrair a acção do artista à estrutura histórica de ligação a uma posição que, esteticamente, seria a validação permanente dos sistemas de valor políticos a que estavam ligados. Com a saída para fora do atelier, para fora do palácio ou da Igreja, cria-se uma ética nova.
Em arte, não creio que se olhe para a ética esperando que esta tenha uma função. Não se espera sequer que tenha uma função. O artista não está obrigado a salvar nada ou ninguém através da importância da sua arte. Tê-lo-á, ou não. A sociedade é que determina se a ética que o artista tem lhe interessa ou não. A estética faz parte da Filosofia. O problema da estética é o problema clássico da procura do Belo. É, e será sempre. O Belo é uma coisa muito simples, é a questão da harmonia, do equilíbrio. A procura da beleza é a procura dessa coisa impossível que é sarar a ferida, uma ruptura entre a expulsão do paraíso e a tentativa de retornar a ele. Uma necessidade, em absoluto, de encontrar a verdade. A beleza é uma espécie de harmonia última, é o lugar onde não há mal, onde não há morte, é o lugar da eternidade. Nesse aspecto interessa-me. A estética interessa-me seguramente mais do que a ética. A estética é uma permanente escavação num campo onde se julga que está um tesouro escondido. Esse tesouro seria a unidade absoluta entre o autor e a sua obra, entre as pessoas umas com as outras, era o lugar da perfeição, inatingível é evidente, por isso é que ainda continua o debate, e continuará sempre.
- Quando cria uma peça preocupa-se com a harmonia?
- É evidente que uma obra só estará acabada quando se sente que ela tem uma espécie de equilíbrio próprio, de vida própria, sabemos que ela não tem falhas, não há falta de balanço em todas as suas partes, é como se lhe reconhecêssemos uma capacidade de autonomia. Não sei como posso explicar isto melhor. É uma coisa que se sente, não é uma coisa que se possa explicar. É tal como quando faço uma obra. Sei que está acabada de uma forma que não tem a ver com a inteligência tal como a conhecemos. Não é um discurso racional ou lógico, é mais, quase um bem-estar físico oriundo ou fruto da sensação, assim: “Ah! Está feito!”
Uma expressão elevada e fresca sai em talhe de sorriso.
- E o corpo sabe isso de uma forma diferente da cabeça, sabe-o provavelmente com maior antecipação e talvez até com mais clareza do que a própria cabeça. A cabeça virá depois e analisará, lembrando-se, até, de como o seu corpo reagiu quando percebeu que a coisa já estava acabada.
- A cabeça já faz parte do corpo.
- Sim, mas tem tendência, o que não é desinteressante, para ter uma espécie de pensamento próprio. O corpo pensa de uma maneira, a cabeça pensa de outra, e isso é produtivo, é bom!
Acontece um silêncio. Pedro lembra-se do charuto que mantém na mão desde que chegou e leva-o à boca.
- Nas suas leituras tem preferência por poesia.
- É verdade. A poesia tem aquela coisa particular, de ter uma forma condensada, depurada, de linguagem. É uma forma quase perfeita.
- Na sua obra existe poesia?
- Na minha obra!?
Pendura um olhar no espaço e continua:
- Se entendermos a poesia como uma forma exaurida de utilizar a palavra no sentido de a tornar pura, é evidente que sim, eu gostaria de ter isso na minha obra. Gostaria de ter a capacidade de atingir essa pureza, essa lucidez, essa justeza, esse rigor mental.
A poesia é isso em relação à linguagem. O meu esforço maior é nesse sentido, é no sentido de que aquilo que faço transporte consigo essa inevitável certeza, percebe?
E a mão direita, porque a outra mantém o charuto hasteado, interrompe por instantes a sua dança constante que amplia o semblante ao pensamento.
- Tudo o que é a mais não existe, o gesto deve ser reduzido ao mínimo. Por muito confusa que possa ser, a contribuição das coisas todas deve ser pensada e feita de tal modo que não restem quaisquer duvidas. Não há nada a mais. Pode ser um caos, pode ser cheio de muitas coisas, mas contudo, o corpo da obra, por muito complexa que seja formalmente, deve ser perfeito, não deve ser fechado, não deve ter falhas, não deve ter interrogações ou dúvidas.
Pequena pausa. O corpo gira sobre si próprio e o olhar, virado para dentro, expressa uma fidalga divagação.
- Isso acontece uma vez em cada cinquenta anos. Mas não custa nada tentar.
Sorri, e o luzir interior anima-se.
O à vontade está estabelecido e a conversa flúi com a serenidade das águas que correm para a amplitude.

Não se tem outra coisa, como artista e como pessoa, que não seja o desejo absoluto, único e último de se ser tudo ao mesmo tempo.

- Este Verão fez uma exposição no Palácio da Galeria em Tavira com obras que pertencem a colecções privadas e agora uma exposição de trabalhos recentes na Galeria Trem em Faro. Há alguma marca na sua carreira que pretenda anunciar?
Sorri como se já esperasse uma pergunta assim. Movimenta-se no banco, dá uma fumaça no charuto e embala:
- Não, não há nada, é uma coisa muito simples. A exposição de Faro estava prevista antes da de Tavira. O Manuel Baptista, grande amigo, pessoa que admiro muito e um belíssimo pintor que já conheço há muitos e muitos anos, voltou a perguntar-me se, neste novo momento dele na direcção da Trem, eu quereria fazer qualquer coisa. Disse-lhe que sim. As exposições tinham uma natureza e uma dimensão diferentes. Pensei que não era bom para ninguém se as exposições fossem excessivamente próximas no tempo.
- Tem alguma coisa a dizer relativamente a estas duas exposições?
Volta a sorrir e dispara:
- Tenho a dizer que ambas me deram grande prazer e que alem disso ficaram muito boas. Tavira, o mérito de mostrar que existem coleccionadores, em Portugal, acompanhando o trajecto dos artistas e fazendo essa coisa extraordinária que é gastar dinheiro numa coisa que não serve para nada.
Pareceu-me interessante, mostrar um conjunto de obras que além de desvendarem o tempo de um percurso, revelam, por pertencerem todas a colecções privadas, que há pessoas que compram arte. Isso é muito importante. Essas pessoas, provavelmente não tendo disso uma consciência muito presente, também constroem de alguma maneira e, a seu modo, a história. São guardiães se assim o quiser, guardiães de ideias, guardiães de tesouros para os que hão-de vir depois. Ora bem, isso é importante mostrar. Acho que essas coisas têm que ser realçadas, daí que tenha ocorrido fazer a exposição e chamar-lhe “Colecções Privadas”. Fi-la apenas com obras que vieram de colecções privadas portuguesas, e isso, de alguma forma, permitiu-me trazer a Tavira um percurso transversal ao longo dos vinte e tal anos de trabalho que fui fazendo.
A de Faro é unicamente obra do atelier, trabalho recente, com dois, três anos no máximo. Contudo, encontra-se com a de Tavira no sentido em que pretende trazer às pessoas a diversidade de linhas de acção e de pensamento que se têm revelado no meu trabalho nestes últimos anos. Tavira informava sobre o meu passado mais longínquo, esta informa sobre questões mais recentes.
- O catálogo do Palácio da Galeria…
- O catálogo é um objecto muito, muito bonito, tem sido muito admirado e não há razões para menos.
- No catálogo diz que “não há obra de arte alguma que não seja ela própria uma substituição do mundo por inteiro.” Isto é ânsia, volúpia, intensidade?
- Em cada pintura, ou desenho, em cada risco simples num papel, está o seu autor e por inerência, quase poderia dizer também o mundo por inteiro. Num risco, nesse risco, está tudo aquilo que se precisa de fazer. Não se escolhe qual a parte de si mesmo que faz aquele risco.
O olhar apontado e os gestos acesos em movimento reforçam os contornos do sentido.
- Pega-se num lápis e faz-se assim no papel, (faz o gesto de desenhar), e ao fazer-se isto não se está a escolher de dois em dois centímetros qual é a parte da nossa vida que se está a pôr ali. Uma coisa que é verdade é que esse risco transporta tudo aquilo que se é. Ora, cada um só é o mundo inteiro, porque não se tem outra coisa, como artista e como pessoa, que não seja o desejo absoluto, único e último de ser tudo ao mesmo tempo, porque é a única maneira de desprezar a morte. Cada traço, por mais simples que seja, é o mundo inteiro. É isso que essa frase queria dizer.
Desde o momento em que se começa qualquer coisa de novo, volta-se a querer continuar… a querer continuar a não morrer.
- E isto é uma atitude do homem ou só dos artistas?
- Não creio que haja diferença. Cada um de nos fará à sua maneira e como souber, riscos sobre o papel.
Pára uns instantes. Fico suspensa no saborear as suas palavras. A sua energia sugere uma estrutura sólida, terrena, que contém no seu interior um rio galopante, imparável, transportando imagens, ideias, emoções várias, que vêm ao de cima com precisão e consonância.
- Na sua “Autopsicografia” Pessoa define o poeta como um actor do seu próprio sentir. E o pintor? O Pedro é actor quando cria?
- Acho que não há gesto humano, por mais simples que seja, que não carregue consigo essa qualidade que Pessoa descreve nessa poesia. Toda a vida é uma mediação do mundo. Nas coisas mais simples, desde lavar os dentes até seja o que for. E todo o caos, o rio infindável de gestos humanos entendidos seja individualmente, seja socialmente, são mediações do mundo, são coisas que têm como única função criar uma hipotética verosimilhança para justificar porque é que se existe, porque é que se está aqui. Se entendermos que existe na actuação, ou no ser actor, essa espécie de deslocação para criar uma projecção de comportamentos que, sendo abstracta, seja de algum modo simbólica, trazendo consigo alguma coisa mais do que simplesmente o gesto que se vê, acho que essa qualidade residirá, afinal, em tudo o que fazemos e portanto não posso estar fora disso. Não, não estou fora disso.


Paula Ferro

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