sábado, 27 de janeiro de 2018

Entrevista com Paula Ferro



Notícia no Jornal diariOnline - Região Sul (Dezembro 2016)

Rastos de Jornada - Exposição de Fotografia de Paula Ferro





“Rastos de Jornada” é uma exposição de fotografia que vai estar patente ao público no Arquivo Histórico Municipal A. Rosa Mendes, em Vila real de Sto António, entre dia 5 e dia 30 de dezembro.
“Rastos de Jornada expressa uma linha do percurso que tenho vindo a fazer”, explica Paula Ferro, “contém fotografias dos momentos mais significativos dos últimos dez anos de jornada do meu olhar fotográfico.”
A exploração das sombras e da água transporta-nos para um misto de espiritualidade e poesia onde o silêncio conta estórias de intimidade e sonho. Momentos de paisagem que sobressaltam e a cidade surpreendida na pluralidade de mundos que se conjugam num só instante.

No Arquivo Histórico Municipal de Vila Real de Sto António, a partir de dia 5 de Dezembro, das 09:30 às 13:00 e das 14:00 às 16:45 horas, de segunda a sexta.



                                                             
Percurso de Paula Ferro


Paula Ferro nasceu em Lisboa em 1960. Licenciou-se em Filosofia, em Coimbra (1984) e pouco depois começou a frequentar a Ar.Co. em diversas áreas e onde, em 2009, chegou a ser modelo performativo em aulas de  desenho com Armanda Duarte. 
Fez outras formações em áreas como desenho, pintura, fotografia, gravura, escultura e teatro.
Em 1993 expõe pela primeira vez, desenho e pintura. Em 1998 começa a expor também fotografia integrada em projetos de escolas onde lecionou. Seguiram-se locais como Leões de Tavira, RefCafé, Casa das Artes de Tavira, e Galeria Artina, entre outros.
Em 2005 adquire a carteira de jornalista e trabalha no Postal do Algarve em jornalismo de cultura com especialização em artes plásticas, até 2010.

Em 2006 foca-se na fotografia como expressão artística privilegiada e explora sobretudo sombras e reflexos na água. Expõe em locais como a Sociedade Recreativa Olhanense e o Catita & Companhia, em Olhão, a Quinta da Calma, em Almancil, a Casa da Cultura de Loulé e o IPJ, em Faro, entre outros locais do Algarve. É também neste ano que o seu trabalho começa a ser apresentado noutros pontos do país como a Galeria Queiroza, em Arcos de Valdevez.
Faz o curso de “Iniciação à Fotografia Jornalística” (Cenjor e Ar.Co) e o Curso de Escrita Jornalística” (Cenjor).

Em 2008 participa em “Geografias Variáveis” no Palácio da Galeria, em Tavira, expõe no “Teatro del Mar”, em Punta Umbria e no Centro de Arte Contemporânea de Alfragide e termina “Pingado de Fresco”, um livro de poesia que ainda está por publicar.

Em 2009 participa no workshop “I Put a Spell on You” de Ana Borralho & João Galante e realiza o curso de Jornalismo de Cultura (AGECAL com Cenjor e Câmara Municipal de Loulé).
 .
Nessa altura, a nível da fotografia artística, dedica-se ao estudo dos lagos da Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, onde explora o sentir de Fernando Pessoa misturado com o seu próprio sentir poético. Nasce “sentir(me) pessoa” um conjunto de imagens que esteve patente ao público na Associação de Artes Plásticas de Campo Maior, no Quartel da Atalaia, em Tavira, na Galeria Margem, em Faro, entre outros locais.


Em 2010 inicia o “Projeto Íris Vana”, (de foro literário mas que se manifesta em diversos formatos), com a exposição de pintura de Laura Matamouros.

 


Entrevista com Paula Ferro realizada por Paulo Moreno 
no Jornal diariOnline - Região Sul em Dezembro de 2016 
a propósito da exposição de fotografia "Rastos de Jornada".

                         
A empatia acresce sempre à nossa humanidade

Rastos de Jornada. Porquê este título?
Porque o meu percurso em termos de fotografia tem sido uma contínua jornada. A exposição que se encontra patente até dia 30 de dezembro no Arquivo Histórico António Rosa Mendes é uma retrospetiva e contém fotos dos momentos mais significativos do meu percurso na fotografia como forma de expressão artística.

Estás a fechar, aqui, um ciclo?
Sim, fecha-se um ciclo e abre-se outro, como sempre, com a foto intitulada “Polis”. Mas nesta exposição estão pontuados vários ciclos. As fotos viradas a sépia encontram-se aqui três. Duas pontuam a exploração da sombra nas ondas do mar e uma outra, “Interseccionismo na Álvaro de Campos”, representa o auge da fase sépia e abre um outro ciclo, ainda mais intimista, em que o meu olhar se detém só sobre os lagos da Biblioteca Municipal de Tavira. Aí, encontro-me com o poeta da minha eleição, Fernando Pessoa, numa busca que durou mais de um ano, em pedaços de água acorrentada mas que, não obstante a sua prisão, se movimentam e contêm vida própria. O resultado dessa fase foi apresentado em vários locais como “sentir(me) pessoa” e está pontuado em “Rastos de Jornada” com dois dípticos e um tríptico. Este conjunto de fotos “conta” como da mancha que se desconstrói, se viaja pela interioridade e se regressa à reconstrução.
Depois vem outra fase, resultante de um desafio criado por Miguel Proença para “Paisagem Estranha Entranha”, uma exposição coletiva que inaugurou na Casa das Artes de Tavira, em 2012, com a sua curadoria. O Miguel puxou-me o olhar para o movimento do vento e para os campos, isso abanou-me, arrancou-me das profundezas da interioridade e abriu-me outros horizontes para o desejo que estimula o olhar. Em “Rastos de Jornada” duas fotos pontuam esta fase.
A seguir o olhar salta do campo e pousa na comunidade e o alvo são os instantes em que vários mundos coexistem e sobrevivem… Nesta mostra encontram-se duas fotos deste ciclo, uma que abre e a outra que fecha a exposição.

Muito bem. Dás muita importância à técnica fotográfica?
Não, não dou. Ou melhor, dou a importância necessária para usar a máquina e tirar dela o que preciso. Não sou como um Jorge Côrte-Real, não tenho a destreza que ele e outros fotógrafos têm a manejar a máquina… Admiro-os mas não sou assim… e depois, aborrece-me mudar de máquina.
As máquinas não me fascinam, o que me fascina é o mundo e cada um dos bocadinhos dele, seja o mundo externo, seja o interno e, como tal, o que tenho vindo a trabalhar sempre é o olhar.
Acho que o que me conduziu à fotografia como suporte de expressão criativa foi a pintora frustrada. Adoro desenhar e pintar, mas para se desenhar e/ou pintar bem não se pode ser um pintor de fim-de-semana. É preciso pintar e desenhar continuamente.
Mas depois também gosto muito de escrever, de lidar com plantas, de pesquisar, de… fazer muitas outras coisas, e o meu gostar de pintar não consegue saciar-me de tudo o resto, logo, não tenho tempo para ser uma boa pintora.

E então?
Pois!... Quando descobri isso, embateu em mim um certo vazio e, dei comigo, de máquina em punho, em busca das pinturas do Criador, ou seja, das pinturas que já estão impressas na Natureza, no mundo circundante. Comecei pela água, pelos reflexos da Ria Formosa, do Mar, do Gilão e do Sécua. Passei depois a ser mais interventiva na construção da “foto-pintura” quando passei a criar cenários com a minha sombra e com a sombra de objetos. Depois retirei-me de cena e passei a deter o olhar apenas no exterior para falar do interior. Mais tarde saltei para o campo e aí sim, a máquina passou a ser mais importante porque um desafio era criar foco na distância, desfocando o que está próximo e o outro desafio era captar o movimento.
É a fase em que me soube bem mexer com outras potencialidades da máquina fotográfica mas isso foi-me solicitado pelo que queria expressar.

Imagem em movimento, não?!...
Sim, essa é uma outra exploração da imagem que comecei a fazer em 2011 e que é criar vídeos a partir de fotografias. O último que fiz chama-se “estilhaço de um entardecer”, uma forma de dizer adeus ao Leif Lonne, que explora uma técnica muito semelhante à que ele e a Sofia Trincão vinham a usar em vídeo e a que deram o nome de “camara paint”. As fotografias que compõem este vídeo integram nitidamente aprendizagens feitas nessa fase de explorar mais as capacidades da máquina.
A nível de trabalho digital o que faço é muito pouco. Gosto da foto crua. Salvo as viragens a sépia, quanto muito posso dar um pouco mais de contraste, mais ou menos luz, apenas isso.

Mas… este é o teu único projeto artístico?
Não. Este é um dos caminhos da minha expressão artística. (sorriso)
Acho que sou essencialmente escritora. Em 2008 terminei um livro que ainda não foi publicado, mas existe. Chama-se “Verde Pingado de Fresco” e é um marco no meu modo de estar nas metas, nos focos e na prática artística. É a partir de aí que se definem certos caminhos na fotografia e é aí que começa a revelar-se um outro projeto, o “Projeto Íris Vana” que é literário embora se recorra de outros suportes. É um projeto dinâmico e já mudou de nome, agora chama-se apenas “Malicadar” porque o romance já se começou a manifestar.
Íris Vana é uma escritora e é apenas isso. Ela e a sua obra coincidem, são uma e a mesma coisa. A Íris Vana é o seu grande romance, Malicadar, que se começa a manifestar em 2010 através de uma exposição de pintura de Laura Matamouros no Ki-Sabor, em Santa Luzia, cuja inauguração constou de um jantar com cerca de 50 pessoas, conteve momentos de dança com Bruna Félix e uma performance improvisada devido ao desaparecimento da pintora.
Laura Matamouros é uma pintora de Malicadar, um local que contém uma cidade com o mesmo nome, uma aldeia piscatória que se chama S. Vicente e uma aldeia de interior que se chama Atégina, e contém muitos outros lugares. Nesses lugares vivem pessoas. A Laura Matamouros é uma delas e veio a Santa Luzia apresentar pessoas da sua terra através das suas pinturas.
Aqui temos o primeiro grito deste romance. Tudo começa aqui. O segundo passo deste projeto foi mais um momento performativo, “estilhaços de romance”, a partir dos quadros de Laura Matamouros, na “V Palavra Ibérica (Arma Palavra) – Encontro de Escritores Algarvios e Andaluzes”, em 2011, que constou da apresentação das personagens do romance através das pinturas e, oralmente, a história de cada uma delas ia sendo revelada.
Segue-se, em 2012, em Gent, na Bélgica, o mesmo tipo de performance mas a partir de fotografias das imagens.
Em 2015, o quarto momento, acontece na Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, integrado na Maré de Contos. Desta vez com uma equipa de oito leitores, e aí começaram a ser revelados escritores de Malicadar que nos vão transmitindo o romance em forma de antologia cujos textos foram escolhidos à laia de “em busca do tempo perdido” de Marcel Proust.
E claro que a Íris Vana / Malicadar vão ganhando forma enquanto o romance se vai desenvolvendo no interior de si próprio. Decerto que brevemente Malicadar alvitrará novo momento certo para desvelar mais um pouco das tramas que se desdobram nas suas entranhas.

A fotografia é um caminho separado?
É e não é. Em mim, tudo se interliga e se conjuga cá dentro. A fotografia que faço não é só de expressão artística. Gosto de imagens. Gosto de fazer paisagem, adoro fazer retrato: gravar a essência de uma pessoa pelo instante de expressão que se lhe captura do rosto. E adoro reportagem que para além de exigir muitas outras coisas, nos coloca o grande desafio de ter de apanhar “aquele momento” em que várias expressões em movimento se manifestam em simultâneo.
Passo a vida a fazer reportagens. E, se calhar, essa contínua reportagem que faço da vida tem sido muito importante para a organização do olhar que, em determinado instante, e em separado de tudo o resto, se expressa mais criativamente através de bocados de mundo que optou por segurar.
É que, tal como para se fazer boas composições em desenho tem que se passar a vida a rabiscar, para se fazer boas composições em fotografia também é preciso passar a vida a reenquadrar o olhar.
E quanto à fotografia como expressão artística ser um caminho à parte nas artes, pois… nunca se sabe se a Paula Ferro fotógrafa não será uma personagem de Malicadar que se antecipou ao romance.

Já trabalhaste em curadoria?
Sim. Fiz alguns trabalhos nesse sentido mas a minha primeira curadoria a sério foi nas comemorações dos 25 anos da Casa das Artes de Tavira.
Havia um tema para todas as exposições, em torno da Casa como espaço que se habita e onde acontecem pedaços da vida. A partir desse tema, nós tínhamos que criar o desafio que colocaríamos aos artistas. Convidei três tavirenses: a Margarida Santos que tem um desenho fortíssimo, visceral mesmo, o Miguel Andrade, um fotógrafo incontornável em Tavira, e a Patrícia Gonçalves que estava a desenvolver um trabalho muito interessante na exploração da luz. Coloquei-lhes o desafio “Metamorfose da Habitabilidade”, ou seja, como é que se habita num mundo em permanente transformação e que cada vez se manifesta de modo mais acelerado? As respostas foram muito interessantes e conseguimos que existisse um bom diálogo entre elas e também uma complementaridade. Foi uma exposição bastante visitada. Acho que todos ficámos contentes com o trabalho que realizámos.
Gosto de trabalhar com artistas durante o seu processo criativo e em curadoria é aí que está o foco. A proximidade torna-se muito intensa. Nesta exposição lembro-me bem do processo da Margarida Santos. Foi tudo muito forte porque fui acompanhando os desenhos a romperem, a crescerem, a berrarem… e fui assistindo às emoções da artista, as suas guerreias internas, as questões que colocava ao seu trabalho e que este lhe colocava a ela, os caminhos que chegavam e como ela os escolhia… foi muito enriquecedor e sou-lhe grata por essa partilha tão genuína.
Em curadoria, essa quase participação no trabalho artístico do outro é muito enriquecedora e desafiadora também. Mas eu gosto de trabalhar com artistas e de me entranhar um pouco no seu sentir enquanto criam e enquanto laboram, seja em curadoria ou fora dela. A empatia, o tentar sentir o sentir do outro e com o outro, acresce sempre à nossa própria humanidade.

No teu entendimento, qual é o papel do jornalismo?
Primeiro que tudo, para mim é uma espécie de bichinho, um caruncho qualquer que não me dá sossego se estou parada e também não mo dá quando pratico jornalismo. É uma espécie de desassossego permanente.
Mas, para além disso é uma grande fonte de aprendizagens e de exercícios: o exercício da imparcialidade e do rigor, o exercício da escrita por que qualquer escritor deve passar, o exercício da superação de nós mesmos para cumprir timings e chegar aos factos, às verdades e às pessoas.
Tem sido uma grande fonte de aprendizagens. Por exemplo, entrei para o jornalismo de cultura, especializando-me nas artes. Isso permitiu-me entrevistar artistas com percurso, maturidade e volume como Bartolomeu Cid dos Santos, Pedro Cabrita Reis, António Inverno, Júlio Pomar,… as entrevistas eram aulas que eu recebia continuamente e dadas por professores incontestáveis.
Agora faço um jornalismo mais social e sinto que o exercício do jornalismo, em si, não só o que pratico mas todo ele, precisa de ser repensado independentemente do modo como se nos apresenta: impresso, on-line, rádio, televisão…
É necessário regressar aos valores originais, aos princípios éticos. Mas, tal como diz Karam em “Jornalismo, ética e liberdade”, a ética jornalística não se reduz à normatização, a ética jornalística faz parte do processo interior do jornalista e este processo deve refletir-se no seu trabalho quotidiano e deve estar relacionado com o mundo social.

Estás a querer dizer que o jornalismo precisa ser repensado?
Claro. Sempre. Por todos. E, pelo menos para mim, para repensar o jornalismo, nada como estar em contacto direto com ele e praticá-lo em processo autocrítico. A práxis do pensar sobre a práxis do jornalismo.
O jornalismo para mim não se manifesta só através da escrita, ele está também na fotografia, na rádio e no vídeo mas todos estes formatos têm de ter por base os mesmos princípios de rigor e ética para que a comunicação / informação sejam o mais factual e isentas possível.
É que, o jornalismo não é a imprensa ou a radio! É sim, um conjunto de técnicas e de saberes, na arte de comunicar de forma ética… É uma maneira de se difundir informação útil, uma forma de alertar a sociedade e de se denunciar as injustiças, as questões sociais, etc....
Antigamente o jornalismo era considerado um aliado da democracia, era uma espécie de “balança” da justiça social e farei os possíveis para que continue a sê-lo.
Neste momento tenho vindo a praticá-lo também como uma forma de impulsionar o exercício da cidadania.

E o associativismo?
O associativismo é um degrau em direção ao futuro que me parece apontar para a necessidade da comunidade autêntica, onde cada cidadão tem um lugar e por isso naturalmente se manifesta e se expressa porque naturalmente participa do mundo de todos.
Estamos todos a vir de uma grande viagem de exclusão, muitas vezes até voluntária, estamos a vir da não participação nas decisões globais mas que nos dizem respeito a todos, a toda a sociedade e também individualmente.
Parece que está a acontecer um despertar e o descontentamento está no ar. As pessoas estão a começar a sentir a urgência em exercer os seus direitos de participantes do mundo e já reclamam a sua necessidade de exprimirem o que querem e o que não querem nas suas vidas.
O associativismo é uma grande via para o exercício da cidadania.

Em que é que isto tudo se relaciona com as artes?
Ninguém cria a partir do nada. Todos somos seres situados, mesmo os mais nómadas, e o estímulo da criatividade, o que nos incita para a expressão artística, é o mundo vivido e experienciado por nós. É nele que mora tudo, é lá que moram as sensações, as emoções, as questões e os desafios que afoitam a criatividade e a necessidade de nos expressarmos artisticamente.
Decerto que não é por mero acaso que quando a minha vida está entregue ao associativismo, o jornalismo que faço é mais social, o projeto literário incide numa comunidade povoada onde as pessoas interagem e que a ponte para o futuro do olhar fotográfico se situe numa foto chamada “polis”.
O nosso universo é determinado pelo desenrolar da praxis da nossa vida e esta está recheada de multiplicidades “inter-relacionadas” que se condicionam umas às outras. O meu olhar artístico tem como cenários o que existe dentro do meu universo vivencial e, neste momento, tudo em mim está muito envolvido com as problemáticas da comunidade, por isso, é aí que a criatividade está a encontrar as solicitações para se expressar.


quinta-feira, 18 de março de 2010

Jornalismo - Marco Martins

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Setembro 2009
Marco Martins
Cinema português além-fronteiras

Marco Martins nasceu em Lisboa em 1972 mas as suas raízes encontram-se no Algarve, na região de Tavira. Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema (1994) estagia na área de produção com os realizadores Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier e, durante dois anos, é assistente de realização de João Canijo.
Entre 1994 e 1998 escreve e realiza três curtas-metragens: “Mergulho no Ano Novo” que recebeu o prémio de Melhor Curta-metragem Nacional no Festival Internacional de Curtas-metragens de Vila do Conde; “Não Basta ser Cruel”, prémio Melhor Curta-Metragem e Melhor Realizador no VII Festival Ibérico de Cinema de Badajoz; e “No Caminho para a Escola”, prémio Eixo Atlântico no Festival de Ourém. Realiza também filmes publicitários e, em 2002 funda a sua própria produtora de publicidade, “Ministério dos Filmes”, que foi distinguida com vários prémios internacionais.
Marco Martins nasceu em Lisboa em 1972 mas as suas raízes encontram-se no Algarve, na região de Tavira. Formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema (1994) estagia na área de produção com os realizadores Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Bertrand Tavernier e, durante dois anos, é assistente de realização de João Canijo.
Entre 1994 e 1998 escreve e realiza três curtas-metragens: “Mergulho no Ano Novo” que recebeu o prémio de Melhor Curta-metragem Nacional no Festival Internacional de Curtas-metragens de Vila do Conde; “Não Basta ser Cruel”, prémio Melhor Curta-Metragem e Melhor Realizador no VII Festival Ibérico de Cinema de Badajoz; e “No Caminho para a Escola”, prémio Eixo Atlântico no Festival de Ourém. Realiza também filmes publicitários e, em 2002 funda a sua
própria produtora de publicidade, “Ministério dos Filmes”, que foi distinguida com vários prémios internacionais.

“Escrever ou fazer filmes é sempre um trabalho sobre a memória”
“How to Draw a Perfect Circle” (Como Desenhar um Círculo Perfeito) é a nova longa-metragem de Marco Martins e vai ser estreada em Outubro. Uma história de incesto. Mais do que outra história, outro tema. “Gosto mais de temas do que de histórias”. As histórias aparecem com os temas e “gosto de temas pesados e controversos. Não pretendo chocar. São temas que me fascinam e fascinam-me ao ponto de me fazerem trabalhar sobre eles ao longo de dois anos”. Temas fortes, relacionados com ambientes familiares pesados. Em “Alice”, há um corte involuntário entre os pais e a filha, em “Como Desenhar um Círculo Perfeito”, temos dois irmãos isolados, entregues a si próprios, e o corte dá-se com o resto do mundo.
“A escolha de uma estrutura familiar tem a ver sobretudo com o trabalho. Escrever ou fazer filmes é sempre um trabalho sobre a memória. Estamos sempre a trabalhar sobre memórias. Há um interesse em explorar laços afectivos familiares na medida em que a família é uma estrutura onde existe muita coisa escondida, ocultada. Nunca se diz tudo sobre a família, e é isso que é interessante”.
Aqui é abordado o tema do incesto, um incesto “particular, entre irmãos e gémeos. Um dos grandes tabus, um dos poucos que continua a existir”.
Incesto como tema e abandono como sub-tema. “É um bocadinho como acontecia em “Alice” que era a história de um desaparecimento mas na verdade era um filme sobre uma visão de uma cidade. Este filme também aborda a temática do abandono, o abandono daquelas duas crianças por parte da família. O isolamento em que elas vivem, também provocado por elas próprias a partir de certa altura, porque acabam por criar um mundo que é só deles, demarcado pelo espaço da casa”.
“Alice”, um filme de exteriores e agora, “Como Desenhar um Círculo Perfeito” um filme onde a câmara explora sobretudo uma geografia de interiores.
Em “Como Desenhar um Círculo Perfeito” há uma parceria com Gonçalo M. Tavares. “Quando acabei o guião fiz-lhe um desafio: fazer uma segunda versão. E ele fez”. Marco escreve os seus próprios guiões mas está ligado sobretudo à imagem. Existem momentos em que sente necessidade de recorrer a quem domine verdadeiramente a linguagem literária. “O personagem do pai é escritor e escreve textos para o filho. Essa parte, evidentemente, é toda do Gonçalo”.



“A música é um género de subtexto da acção principal”
Estreia a sua primeira longa-metragem em 2005, um drama intitulado “Alice”. O actor Nuno Lopes encarna o papel de Mário, um pai obcecado pelo desaparecimento da sua filha de quatro anos e que, todos os dias, refaz o mesmo itinerário, repete os mesmos gestos, construindo e sustentando a esperança de encontrar alguma pista de Alice. Este filme explora a obsessão, materializando um estado de desespero resignado diante de uma realidade contra a qual muito pouco pode ser feito, e ao mesmo tempo retrata a cidade de Lisboa mostrando-a pelo seu lado de cidade fria e anónima.
“Alice” recebe diversos prémios internacionais: Festival de Cannes, Festival de Cinema Luso-Brasileiro (Melhor Filme e Prémio Revelação Melhor Actor - Nuno Lopes), Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata na Argentina (Melhor Realização), Raindance Film Festival, (Melhor Filme, Melhor Fotografia e Prémio FIPRESCI), Festival Las Palmas (Melhor Primeira Obra), Coimbra Caminhos do Cinema Português (Prémio de Realizador Revelação), Globo de Ouro (Melhor Filme), Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (Melhor Actor - Nuno Lopes, e Melhor Filme), Festival dos Cinemas do Mediterrâneo (Melhor Realizador, Melhor Montagem, Melhor Fotografia e Melhor Música).
Bernardo Sassetti foi o compositor escolhido para participar na banda sonora. Embora não abunde, a música tem um papel muito importante. Invade-nos os sentidos e transporta-nos para dentro da angústia de Mário. O piano a solo conduz-nos, lentamente, para sensações cada vez mais fundas, mais escuras e densas. “Na história da Alice interessava-me tudo o que era música repetitiva mas não minimal”, explica o cineasta, “com essa ideia de repetição, para o cada dia da personagem do Nuno ser absolutamente igual ao outro, ser uma constante repetição do outro, mas sempre com uma pequena evolução. Daí partimos para a composição da música”.
A música é de extrema importância nos filmes de Marco Martins pois não é vista “como um sublinhar da acção dramática e sim como outra linha textual, um género de subtexto da acção principal. Como se fosse a linha de pensamento da personagem principal”.
No próximo filme, Marco usa-a do mesmo modo, e oferece-nos outro desafio feito a Sassetti que desta vez não usará o piano. Aqui, a música funciona “às vezes até em contra-ciclo com o que estamos a ver, é quase um descodificador emocional da imagem”.



O trabalho do actor é visto como uma obra de arte
Faz um trabalho intenso com cada actor e descobrir o indicado para cada personagem é um trabalho exaustivo. Para “Como Desenhar um Circulo Perfeito” demorou muito tempo até encontrar as pessoas certas, sobretudo devido à idade dos personagens. “Qualquer actor como estes miúdos de dezasseis anos, é um não actor. Embora possam ter tido algumas experiências, não são actores. Não podemos olhar para o corpo de trabalho de cada um deles e perceber realmente o que é capaz de fazer. Há uma parte em que temos que adivinhar e outra parte em que temos que acreditar que ele vai lá chegar”. Um trabalho árduo que exige paciência e persistência. “No início eram 600 miúdos” e foi seleccionando até escolher três que trabalhou exaustivamente até definir os protagonistas.
“Tenho a noção que a partir do momento em que escolho o actor, ele vai condicionar uma reescrita do meu guião, por isso começo logo a reescrever mal escolho o actor”. Não lhe agrada a representação clássica, “dizer um texto ou representar uma acção. Obviamente todas as representações são representações, mais naturalistas ou menos naturalistas, mas gosto de levar ao extremo o trabalho com o actor. Trabalho muito tempo com eles. Com estes dois miúdos trabalhámos quase quatro meses à volta daquela personagem e com questões ligadas à representação. Como jovens actores que são, deixaram-se completamente submergir por aquelas personagens e depois já era difícil distinguir onde estava o actor e começava a personagem. Esse trabalho faz com que se chegue sempre a um sítio que já não é o sítio de partida. Não estou a tentar moldá-los a uma ideia que eu tinha da personagem, estou apenas a tentar chegar a uma ideia. Há uma confrontação com a realidade do material que nós temos”.
O trabalho do actor é exibido de um modo distinto em “Night Walks”, a vídeo instalação que esteve patente ao público na Casa das Artes de Tavira, “um projecto que nasceu durante a rodagem deste filme. Havia planos muito, muito longos que não tinham o ritmo do filme. Só duas personagens, a andar, que intimamente não faziam parte da montagem final. Eles, só por si, eram interessantes e colocavam uma série de questões quase como se fossem, eles próprios, uma narrativa fechada num só plano, sem qualquer tipo de contextualização”.
“Night Walk” apresenta-nos o trabalho do actor de cinema colocado no universo da vídeo arte, no espaço expositivo de uma galeria de arte, atribuindo-lhe assim o valor de obra de arte.
Aguarda-se com alguma expectativa a estreia de “How to Draw a Perfect Circle”, nos cinemas, já em Outubro.
Paula Ferro

jornalismo - Teresa Ramos e Teresa Calém

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"

Outubro 2009

Vai atrás do teu desejo, ou mata-o…”

Manuel Rodrigues

Trajectórias

Teresa Ramos e Teresa Calém, duas mulheres com o mesmo nome, nascidas no mesmo ano em locais quase opostos do país. Ambas fazem um percurso profissional sólido, mas num dado momento da sua vida, atingida já a maturidade e o sucesso, resolvem seguir um apelo interior e recomeçam o seu caminho ingressando numa escola de arte.

A audácia, a força provinda do seu desejo interior e uma entrega efectiva ao trabalho conduzem-nas a novos êxitos, agora nas artes plásticas.

Teresa Ramos

Sensibilidade e rigor

Teresa Ramos nasceu em Tavira (1953) mas divide a sua vida entre Faro, onde tem o seu atelier, e Lisboa, onde é professora e directora do Departamento de Cerâmica no Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co).

No início dos anos 80 fez formação em olaria na “Culturona”, em Lisboa, mas, durante doze anos trabalhou na produção de filmes de publicidade.

Apesar de muito bem paga, “os níveis de agressividade, a falta de respeito, os relacionamentos injustos e a desonestidade dentro do triângulo cliente, agência e produtor de filmes, tornou-se cada vez mais inaceitável para mim”. Abandonou a publicidade quase “em legítima defesa”.

A sua leitura do mundo conduziu-a “a seguir em frente, procurando algo mais, e outros mais que suspeito existirem além daquilo que é apresentado como a verdade, a realidade, e a vida”.

Decidiu andar pelas suas próprias pernas e construir o seu próprio chão, enquanto caminhasse. Aprender fascina-a e, aos 42 anos, decidiu fazer um curso de artes e mudar de vida. Foi para o Ar.Co. Fez o plano de estudos completo de cerâmica e o plano de estudos básico em desenho, e depois o curso avançado de artes plásticas.

Em actualizações permanentes

Quando frequentava o segundo ano do curso avançado de artes plásticas, “o Manuel Castro Caldas propôs-me ficar à frente do Departamento de Cerâmica. Pensei que seria uma coisa transitória, rápida. Eu queria mesmo era vir para o meu atelier, fazer as minhas coisas, sozinha…”, mas aceitou e gostou mais do que esperava. Foi reestruturando o curso durante cinco anos seguidos e foi incorporando “todas essas mudanças no meu próprio crescente, mesmo de pensamento e de reflexão sobre qual é o papel da escola, qual a sua função”.

O Ar.Co é uma escola independente com um cariz de experimentação muito forte. É no trabalho que as coisas se realizam, se descobrem, se questionam”.

Mas não é só o Departamento de Cerâmica que está em permanente mudança, “todos os anos há mudanças. As coisas estão em reajuste permanente”. Sente-se “em actualizações permanentes. Estou sempre a reajustar a minha posição, é quase diário, e agrada-me sentir que na escola onde trabalho isso também acontece”.

Se uma escola como esta seria importante no Algarve? Soltar um sorriso límpido e brilhante: “Uma escola assim é importante em qualquer parte”.

Já como Directora de Departamento começou a leccionar. Como professora, trabalha ao lado “das pessoas” e descobre com elas. “Não dou directrizes, mas faço propostas, senão a pessoa dispersa-se e não há o envolvimento necessário”. O envolvimento, a entrega, a reflexão e a dedicação ao trabalho são fundamentais, “é preciso começar a aprender que gostar é pouco, não chega!”

A preguiça é imaturidade

Paralelamente, há um contínuo trabalho de atelier, de pesquisa, de experimentação e reflexão com um sólido percurso próprio.

Expõe regularmente desde 1998. Está representada nas Colecções do Museu de Olaria de Barcelos e na do Ar.Co, assim como em diversas colecções particulares. Foi bolseira do Montepio Geral em 2001/2002.

A cerâmica como arte ou como artesanato? “Isso depende da atitude que se toma”. A arte é uma atitude, não reside no domínio de técnicas. “Não pode! O domínio de técnicas é outro assunto. Isso é outro departamento”. A arte é outra coisa, “podemos encontrar um quadro muito bem pintado, tudo muito certinho, mas sem interesse, sem assunto inclusivamente. Há um alto domínio técnico mas… é só isso!” Faz uma pequena pausa, e continua, tranquilamente, “há pessoas e há publico para tudo, portanto há a mesma legitimidade, não há é o mesmo interesse. Para mim não tem interesse nenhum, mas é legítimo!”

Usamos técnicas para exprimir o pensamento, quer as dominemos ou não. O domínio da técnica ”depende da utilização que se faz dela. Só na utilização há aperfeiçoamento”. As técnicas podem ser utilizadas de muitas maneiras, “no sentido da perfeição ou explorando os limites dos materiais; onde é que as coisas passam para o efeito ou para o defeito? Procura-se aquilo que se considerou defeito, ou não? Vai-se utilizar, ou não? Aí é que está a consciência na utilização dos materiais. Mas para haver consciência na utilização, tem que haver utilização”.

O acento está na produção “porque só com muito trabalho à frente é que temos assunto para conversar sobre as coisas e as coisas só acontecem se nós tivermos uma atitude de trabalho sistemático”. Há que respeitar os ritmos, “cada um tem o seu grau de necessidade de pôr cá para fora” mas a preguiça é “imaturidade”.

O seu principal meio de expressão tem sido através de materiais cerâmicos. Durante o curso começou a trabalhar a porcelana líquida e a modelá-la com tecido. Desenha, modela, e depois levanta e “é como se estivesse a fazer um vestido”. Há uma feminilidade velada que espreita em cada gesto e palavra, “aquilo é tudo em plano, é tudo pincelado, colado, levanta-se…”, faz o gesto com o olhar assentado em brilho, “a passagem do plano para o volumétrico, esta transição… dá-me prazer fazer assim. Gosto de passar, progressivamente, a ideia para o plano e de partir dele para a construção volumétrica”.

O seu raciocínio é claro e a imparcialidade abunda nas suas análises. Teresa é uma perfeccionista incansável. Trabalhando com a porcelana líquida, “o corpo do objecto é a pele de porcelana, criada na superfície de outro que foi seu hospedeiro. Na superfície do objecto produzido fica registada a presença morfológica dos materiais incorporados, apesar ausência da matriz que tornou possível a sua conformação. Escavando a superfície, revela-se com detalhe o registo e isto torna possível atingir uma comunicação simples, clara e directa com os diferentes níveis de informação alcançados em simultâneo”.

Relação entre desenho e cerâmica

O seu universo é quase microscópico, cada pormenor tratado com minúcia e paciência, a entrega ao gesto sobre gesto, criando mundos onde impera o aquático com sabor a vegetal.

O seu objectivo é continuar o seu caminho, mas, foi “prestando atenção ao que ia acontecendo”, foi fazendo “o balanço entre intuição e intenção” e deste modo começou “a reconhecer que estava a desenhar um trilho através do olhar dos outros”.

Existe uma relação velada entre o desenho e a cerâmica. No início do curso descobriu que “o desenho é importante para tudo, até para resolver problemas do meu dia a dia”. Mantém guardada uma produção de desenhos muito grande que agora lhe apetece mostrar. ”Só emoldurei três, estou ainda a seleccionar”.

Para além de desenhos, também outro tipo de imagens que tem vindo a recolher e a criar. Abre-se novo momento no seu processo em que Teresa sente vontade de repousar da cerâmica, “estou mais virada para o estirador, para a máquina fotográfica e para o registo de imagens… “

Aí vem nova etapa no seu trabalho e desatam-se novos entusiasmos. Mas Teresa não premedita, abre-se à vida e observa com tranquilidade e segurança. “Não corro atrás das coisas, elas vêm ter comigo, e depois embarco nelas, ou não”.

Teresa Calém

Desafio e transformação

Teresa Calém nasceu no Porto (1953) mas habita no Algarve desde os anos 80. Sempre se sentiu atraída pelo desenho e com 18 anos, naturalmente, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto, mas desistiu e ingressou na Fundação Espírito Santo onde tirou Arquitectura de Interiores.

Já no Algarve, cria a “Al Quatro”, uma empresa especializada em design de interiores que obteve franco sucesso. Mas, a pintora reclamava atenção dentro de si e em 2000, com 46 anos, decidiu mudar de vida e inscreveu-se no Ar.Co. Durante seis anos conciliou empresa, família e viagens para Lisboa, três vezes por semana, para ter aulas de Arte e História de Arte.

Em 2004 expõe na “Produzentengalerie”, em Hamburgo, e na “Artadentro”, em Faro. Em 2004, participa no “TRACTOR”, em Faro Capital Nacional da Cultura e numa exposição colectiva no “Palácio da Galeria”, em Tavira.

Em 2006, começa a dedicar-se à pintura a tempo inteiro e em 2007 expõe no Centro Cultural de S. Lourenço. Agora foi convidada para expor em 2010 na “Galeria de Arte do Nederlandsche Bank”, em Amesterdão.

Cabeças despidas em silêncios

As obras que tem vindo a apresentar são cabeças, de um por dois metros, em aguarela. Uma mistura de mítico, místico e fantástico, materializados pela exploração de técnicas de aguarela no sentido do retrato mas que não geram retratos e sim fisionomias anónimas, de tez outonal em cabeças despidas que nos transportam para silêncios. São brilhos exaltados de espanto em expressões suspensas, agarradas no início de uma metamorfose. E soltam-se frescos, com odor a relva molhada, que nos conduzem a fantásticas possibilidades de vida encerradas num olhar.

Cada cabeça acontece a partir de pequenos pormenores que retira de fotografias encontradas em revistas, jornais ou de desenhos e esboços feitos anteriormente. Não nasceram nesta dimensão, foram crescendo, e o atelier de Teresa está repleto de cabeças de várias dimensões que pertencem “a uma espécie de tribo”. Mas “no formato grande as cabeças ganham outra densidade”.

Porquê cabeças? “Não sei! Gosto imenso de gente e de cabeças, apetece-me muito mais pintar cabeças do que paisagens e vou para aquilo que me apetece”.

O seu atelier é um mundo à parte, povoado de fantástico. Misturados com cabeças, abundam desenhos, esboços, ilustrações de contos infantis, peças tridimensionais, umas feitas de papel de seda e cola branca, outras de pastas, outras ainda feitas de ramos secos e galhos que Teresa apanha nos seus passeios pelo campo e depois constrói, unindo bocadinhos com fio de cobre. Modelos que depois pinta com aguarela em busca de novos caminhos, de novas aventuras.

Atenção total é oração

“A arte é a possibilidade de nos surpreendermos connosco próprios e com o que fazemos.” É continuamente surpreendida pela sua criação e “a partir do momento em que começo a deixar de me surpreender, tenho de passar para outra coisa porque aquela já está inserida, já está a ficar fácil e já estou quase a repetir-me a mim própria”.

A escolha da aguarela encerra o desafio de não se poder emendar. Enquanto que nas técnicas a óleo se pode pintar uma camada sobre um erro e ocultá-lo, na aguarela, cada camada deixa ver o que está por baixo e todas as pinceladas ficam expressas no trabalho.

Descreve o processo de aparição de uma obra com o enlevo da entrega a cada gesto, que tem que ser “o gesto mais perfeito que se pode fazer naquele momento”, por isso é que requer a “atenção total”, e a “atenção total é a mesma coisa que uma oração”.

E mostra, numa dança iluminada pela melodia da sua voz, como estende o papel no chão, como o molha, depois “o pincel na vertical” e olha para mim cheia de um verde translúcido que vem lá do fundo, “a tinta escorre e cresce no papel molhado de um modo muito orgânico, enquanto se espalha no desenho” e depois vem o sol que seca, e já pronto, aí vem nova camada de molhado e tinta e sol e outra camada, e mais outra… com paciência e entrega, Teresa vai saboreando cada “visitação”.

Fascinada pela mitologia grega, explora temas como Dafne, deusa das ninfas que foge de Apolo e se transforma em árvore. O tema da transformação está sempre presente no seu trabalho. No seu trabalho, na sua vida e no modo como se posiciona. Continua em permanente busca, experimentação e formação. “O ano passado, em Julho, fui para Florença, para uma academia onde ensinavam técnicas antigas a óleo”, no Inverno passado frequentou aulas de História de Arte com Nuno Faria e este Verão participou no “Mobilehome”. A sua sede de novos desafios é evidente. Olha-me sorrindo e cita Picasso: “A inspiração é muito boa, sobretudo quando me apanha a trabalhar” e volta a sorrir, cheia de entusiasmo e algum mistério.

Paula Ferro

jornalismo - Júlio Pomar

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"

Outubro 2009

“Figuras de Convite” em Estói

Exposição de Júlio Pomar

“Figuras de Convite” é uma exposição na Casa Rural da Villa Romana de Milreu, em Estói. Um diálogo histórico entre o mosaico romano, as figuras de convite que marcam o séc. XVIII e a contemporaneidade, através do olhar de Júlio Pomar.

Esta exposição pode ser visitada até Janeiro de 2010. Trata-se de uma iniciativa da Galeria Ratton e da Direcção Regional de Cultura do Algarve e integra-se no âmbito das Jornadas Europeias do Património que, em 2009, têm como tema, “Vi(r)Ver o Património”. Esta iniciativa é um convite ao envolvimento dos cidadãos na participação activa da descoberta da herança cultural, reforçando a memória colectiva e de afirmação de um Património comum cuja riqueza reside na sua diversidade.

“Toda a criação é recriação” - afirma o artista - “nada é feito a partir de zero. O próprio zero é uma criação magnífica do homem” - faz uma pausa e sorri - “gerações e gerações pereceram antes de alguém ter inventado o zero”.

As figuras de convite, pintadas sobre azulejos e aplicadas nas entradas das habitações da nobreza portuguesa do século XVIII, representam, à escala natural, criados de libré, guerreiros e damas que “recebem” os visitantes. No século XX renovou-se o uso do azulejo sem que a tradição das figuras de convite fosse renovada. A galeria Ratton reconhecendo essa ausência, já quase na entrada para o séc. XXI, convidou Júlio Pomar a preencher essa lacuna. O artista fá-lo com a habitual genialidade e sentido de humor, como o provam as seis obras expostas.

Ao longo da História “a arte como ‘fazer’ tende, na maior parte dos casos, a não evitar destruir aquilo que está em desacordo com o que o dito poder propõe” - explica o artista, - “as próprias cidades são destruídas sucessivamente. Penso que esse sentimento de conservação e de respeito, de amor e curiosidade é relativamente recente, mas ainda bem!”

As obras expostas que convidam a visitar vários compartimentos da Casa Rural são retratos, ou melhor caricaturas.

O retrato, em arte, seja qual for o suporte usado, é uma representação. Mas é também “a fixação do instante, mesmo que esse instante seja massivo. É um desejo da paragem do tempo. Uma tentativa de fixação ou de retenção do tempo” - sorri de novo - “as pessoas mudam…” e o retrato é como agarrar um instante e mantê-lo. “A história do instante é fundamental” - explica - “o viver o instante, o enaltecer o instante” - saboreia a ideia - “penso que tem muito a ver com a natureza da obra de arte. Com o gozo do existir e da própria obra de arte” - os seus olhos iluminados e sábios fitam-me - “o sentir o vivo a viver”.

“O mesmo é outro”

Perguntei-lhe sobre a importância da arte. “Se as artes têm alguma vantagem”,- responde - “é porque nos ajudam a olhar para as coisas e a ver que aquilo que parecia simples e limitado, no fundo, dá saída para mundos e mundos e mundos”.

A arte vive paredes-meias com a consciência “mas por vezes ela produz-se até, sem que o produtor tenha uma ideia, mesmo vaga, do que está a fazer. Não me refiro às artes dos loucos que têm o seu mérito, todo um certo alastramento”, alastramento esse que é “um sector importante da produção da coisa mental”.

“O que é a coisa mental?” – pergunto.

Ri-se e responde: “É a capacidade de pensar a existência de modo que esse pensar tenha forma e consistência, embora não tenha forma nem consistência”. - Sorri da minha reacção – “existe na cabeça, mentalmente” – continua – “e é a partir daí que se dá a forma a nível da visibilidade”.

Para se ser artista é necessário ter muitas coisas juntas”.

A raiz da palavra “arte” define-a como “fazer de”, “a arte de carpinteiro, ou andar nas artes, como dizem os que vivem perto do mar e não trabalham no campo” - explica, calmamente - “andam nas artes. As palavras são potes sem fundo, saem-nos da boca e não reparamos nelas”, e “este andar nas artes, no fundo, é uma lição sobre o entendimento das coisas”.

As artes prendem-se com as suas técnicas e as substâncias, com a matéria, e com “uma provocação que é cada vez menor, não direi do acaso, mas de qualquer coisa desconhecida ou menos conhecida. É claro que o acaso para o comum das pessoas é uma coisa desprezível, sem regras nem leis, mas a gente, à medida que vai vivendo e apreendendo as coisas, vai chegando à conclusão que o acaso é a matemática mais rigorosa, é aquilo que se oferece só a quem pode perceber”.

As artes respondem a necessidades do homem. As artes da pesca e as artes do camponês respondem a necessidades de sobrevivência mas as artes plásticas também existem por uma necessidade humana. Se não existisse “essa necessidade vital”, o artista não era impelido a produzir e a dedicar a sua vida a fazê-lo.

“Como é um fazer, exige técnica, obrigatoriamente. Mas, a arte é técnica?” - Perguntei.

“Não” – respondeu - “da mesma maneira que a poesia não é gramática embora não possa viver sem ela”. No fundo, a gramática é “um conhecimento da maneira como a língua se processa, se articula, de como ela, por um lado serve o pensamento, e por outro o impulsiona. É sempre ambígua essa relação entre sujeito e objecto, entre o objecto, o sujeito e o predicado. A vida é uma troca constante de posições”.

“Pensa que o artista é aquele que apanha as essências?” – Perguntei.

“Se eu o veria assim?” – Responde – “Sim, sim. Há um jogo permanente entre o artista e o que o artista persegue, e aquilo que no fundo ele faz, que muita vez, quase sempre, transcende o seu projecto”, faz uma curta paragem e avança, “veja por exemplo toda a pintura ocidental, que é uma pintura determinada pela religião. Teoricamente devia acabar, uma vez que a religião é posta em questão, mas a verdade é que eu que não sou católico e continuo a emocionar-me com uma Virgem do Giotto”.

A arte está ligada à vida e vive dentro dela.

“O mesmo é outro, o mesmo é um poço aberto. Não há mesmos”. - Explica.

“E a arte?” – Interrogo.

“É parecido. É uma outra forma de se exprimir aquilo que se pode chamar inquietação. Um sexto conhecimento. Capacidade de absorção, amor, o que quiser. É um pote sem fundo. São cadeias de sensações, pensamentos…”

Paula Ferro

jornalismo - Francis Tondeur

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Novembro 2009

“Aurora da minha humanidade”

Uma exposição de Francis Tondeur, num clima de instalação, faz um chamamento ao visitante para inter-agir, brincar e descobrir, no Palácio da Galeria, em Tavira, até ao final do ano.

Escultura, desenho e vídeo coabitam um espaço organizado encorpando o mesmo desafio. Volumes em algodão puro tornado pano, com bordados, desenhos e janelinhas, escondem peças de madeira e bronze fundido que nos espicaçam a curiosidade.





“Não há criação sem audácia”

Francis Tondeur nasceu em Uccle, na Bélgica, em 1939. Começa por se formar em Arquitectura e Artes Visuais, depois licencia-se em Biologia Molecular e faz o doutoramento em Bioquímica. Desde 1963 realiza exposições individuais e colectivas em Galerias e Museus de vários países da Europa e no Brasil.

A sua obra materializa-se de modo variado: desenho, pintura, azulejos, arte pública, cenários para peças de teatro… Mas o que mais o atrai é a escultura.

Foi docente de disciplinas artísticas em Universidades portuguesas, nomeadamente em Évora e no Algarve.

“Há muita coisa em comum no artista e no cientista”, afirma. Ambos devem sentir desejo criativo, devem ter audácia, imaginação e senso da observação do acaso. “Quantas vezes um cientista busca uma coisa e encontra outras? Por causa de um acaso. A mesma coisa acontece em arte. O acaso é uma coisa fabulosa. Uma mancha inicialmente indesejada pode-se transformar num milagre e um erro pode ser utilizado para enriquecer uma peça”.

A audácia é muito importante, sem ela caímos na repetição ou nas modas. “Não há criação sem audácia”.

O que distingue o cientista do artista é o jogo e o material com que se joga. Por um lado é a molécula e todas as ferramentas das físicas e das químicas, por outro é a cor, o pincel, a forma e as ferramentas adequadas aos materiais que se usam. A base é a mesma. “Também é necessário, em ambas, a persistência, a teimosia, e a paixão. A paixão faz parte”.

Há uma ligação muito forte entre o agora e o passado. A sua infância está viva nesta exposição que nasce nas brincadeiras que o artista tinha em criança quando manuseava blocos de madeira. Francis redescobre os seus próprios gestos nos gestos do filho mais novo enquanto ele brinca e espontaneamente repete os movimentos cometidos pelo pai há muitos anos atrás. Ao observá-lo Francis revive-se e sente, com alguma surpresa, que nada mudou no seu gesto. Existe uma outra consciência, um outro conhecimento de gramáticas e uso de materiais, mas o gesto mantém-se intacto.

As forras em algodão reportam para a casa da sua avó e o modo como protegia os móveis, envolvendo-os com panos brancos que causaram em Francis um forte impacto estético. A sua imaginação era instigada pelas inúmeras possibilidades de objectos velados. Desiludia-se depois, quando as forras eram retiradas e os móveis se deixavam ver, mas este desafio de descobrir o que se esconde, ficou até aos dias de hoje.

Em “Aurora da minha humanidade”, as forras fazem parte das peças e são também a ponte para o espectador, encarnam o lado lúdico da exposição e o convite ao visitante para participar do jogo iniciado pelo artista. As forras podem ser tiradas, deixando ver a escultura que está por baixo. Tirá-las, quer dizer entrar no jogo.

As matrizes das peças são feitas de madeira maciça e forte. Reciclagem de vigas, pranchas de cofragem, materiais de construção. Reciclagem que se transporta para a própria criação das peças. As matrizes originais são reutilizadas. Nelas, Francis desenha, pinta e acrescenta bocados de tela, tecidos, torneiras, válvulas e outros objectos. Mistura a madeira com bronze fundido. As peças são cobertas por panos já costurados com janelas, brechas para o olhar, sugestões de possíveis “espreitadelas” para o “mundo” que está lá dentro.

Com espírito lúdico e sentido de humor, aborda temas sociais, culturais e raciais que examina com seriedade e um sentido crítico que pretende que se amplie. Incomodam-no os contra-sensos das religiões e fica entristecido com as consequências da cegueira dos dogmatismos e da ambição económica. Não cruza os braços. O ser humano é-o na posição vertical, mantém-se de pé e em eterno combate. O fluir da vida implica amor pela própria vida e pela sua evolução.






Arte pública em Tavira

As duas esculturas em bronze e os oito cata-ventos que se encontram na rotunda da estação de caminhos-de-ferro, em Tavira, são de sua autoria.

Em 2000, foi convidado para fazer um monumento à guerra colonial. Francis não gostou do tema mas investigou e descobriu uma ligação humana que lhe interessou: o amor entre os soldados provindos de todas as partes do país e as mulheres da terra. O rapaz faz um sinal e a rapariga também. Não se sabe se é a felicidade do regresso ou a aflição do adeus para a guerra. O mesmo gesto simboliza emoções ambíguas que foram vividas neste local, representativo das entradas e saídas da terra onde o soldado vivia dentro e fora do quartel, referenciado na farda típica da época. A rapariga, Francis encontrou na sua fantasia.

Os cata-ventos aludem à história da cidade, antigo centro de comércio que entrava pelo porto fluvial. Evoca a importância do conhecimento dos ventos para o marinheiro. “Daí o cata-vento”.

As suas cores fortes e formas arredondadas prendem-se com outra interpretação. Ali, naqueles balões de banda desenhada com volume e ao vivo, cuja página que é aquela rotunda, estão inscritas as emoções fogosas, saudosas, calorosas, entristecidas, dos amantes que se encontram e/ou se despedem, com a guerra como pano de fundo do pensamento.

Paula Ferro