Rastos de Jornada - Exposição de Fotografia de Paula Ferro
Percurso de Paula Ferro
no Jornal diariOnline - Região Sul em Dezembro de 2016
a propósito da exposição de fotografia "Rastos de Jornada".
A empatia acresce sempre à nossa humanidade
Blog com: em definição: soon, very soon
in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Outubro 2009
“Vai atrás do teu desejo, ou mata-o…”
Manuel Rodrigues
Trajectórias
Teresa Ramos e Teresa Calém, duas mulheres com o mesmo nome, nascidas no mesmo ano em locais quase opostos do país. Ambas fazem um percurso profissional sólido, mas num dado momento da sua vida, atingida já a maturidade e o sucesso, resolvem seguir um apelo interior e recomeçam o seu caminho ingressando numa escola de arte.
A audácia, a força provinda do seu desejo interior e uma entrega efectiva ao trabalho conduzem-nas a novos êxitos, agora nas artes plásticas.
Teresa Ramos
Sensibilidade e rigor
Teresa Ramos nasceu em Tavira (1953) mas divide a sua vida entre Faro, onde tem o seu atelier, e Lisboa, onde é professora e directora do Departamento de Cerâmica no Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co).
No início dos anos 80 fez formação em olaria na “Culturona”, em Lisboa, mas, durante doze anos trabalhou na produção de filmes de publicidade.
Apesar de muito bem paga, “os níveis de agressividade, a falta de respeito, os relacionamentos injustos e a desonestidade dentro do triângulo cliente, agência e produtor de filmes, tornou-se cada vez mais inaceitável para mim”. Abandonou a publicidade quase “em legítima defesa”.
A sua leitura do mundo conduziu-a “a seguir em frente, procurando algo mais, e outros mais que suspeito existirem além daquilo que é apresentado como a verdade, a realidade, e a vida”.
Decidiu andar pelas suas próprias pernas e construir o seu próprio chão, enquanto caminhasse. Aprender fascina-a e, aos 42 anos, decidiu fazer um curso de artes e mudar de vida. Foi para o Ar.Co. Fez o plano de estudos completo de cerâmica e o plano de estudos básico em desenho, e depois o curso avançado de artes plásticas.
Em actualizações permanentes
Quando frequentava o segundo ano do curso avançado de artes plásticas, “o Manuel Castro Caldas propôs-me ficar à frente do Departamento de Cerâmica. Pensei que seria uma coisa transitória, rápida. Eu queria mesmo era vir para o meu atelier, fazer as minhas coisas, sozinha…”, mas aceitou e gostou mais do que esperava. Foi reestruturando o curso durante cinco anos seguidos e foi incorporando “todas essas mudanças no meu próprio crescente, mesmo de pensamento e de reflexão sobre qual é o papel da escola, qual a sua função”.
O Ar.Co é uma escola independente com um cariz de experimentação muito forte. É no trabalho que as coisas se realizam, se descobrem, se questionam”.
Mas não é só o Departamento de Cerâmica que está em permanente mudança, “todos os anos há mudanças. As coisas estão em reajuste permanente”. Sente-se “em actualizações permanentes. Estou sempre a reajustar a minha posição, é quase diário, e agrada-me sentir que na escola onde trabalho isso também acontece”.
Se uma escola como esta seria importante no Algarve? Soltar um sorriso límpido e brilhante: “Uma escola assim é importante em qualquer parte”.
Já como Directora de Departamento começou a leccionar. Como professora, trabalha ao lado “das pessoas” e descobre com elas. “Não dou directrizes, mas faço propostas, senão a pessoa dispersa-se e não há o envolvimento necessário”. O envolvimento, a entrega, a reflexão e a dedicação ao trabalho são fundamentais, “é preciso começar a aprender que gostar é pouco, não chega!”
A preguiça é imaturidade
Paralelamente, há um contínuo trabalho de atelier, de pesquisa, de experimentação e reflexão com um sólido percurso próprio.
Expõe regularmente desde 1998. Está representada nas Colecções do Museu de Olaria de Barcelos e na do Ar.Co, assim como em diversas colecções particulares. Foi bolseira do Montepio Geral em 2001/2002.
A cerâmica como arte ou como artesanato? “Isso depende da atitude que se toma”. A arte é uma atitude, não reside no domínio de técnicas. “Não pode! O domínio de técnicas é outro assunto. Isso é outro departamento”. A arte é outra coisa, “podemos encontrar um quadro muito bem pintado, tudo muito certinho, mas sem interesse, sem assunto inclusivamente. Há um alto domínio técnico mas… é só isso!” Faz uma pequena pausa, e continua, tranquilamente, “há pessoas e há publico para tudo, portanto há a mesma legitimidade, não há é o mesmo interesse. Para mim não tem interesse nenhum, mas é legítimo!”
Usamos técnicas para exprimir o pensamento, quer as dominemos ou não. O domínio da técnica ”depende da utilização que se faz dela. Só na utilização há aperfeiçoamento”. As técnicas podem ser utilizadas de muitas maneiras, “no sentido da perfeição ou explorando os limites dos materiais; onde é que as coisas passam para o efeito ou para o defeito? Procura-se aquilo que se considerou defeito, ou não? Vai-se utilizar, ou não? Aí é que está a consciência na utilização dos materiais. Mas para haver consciência na utilização, tem que haver utilização”.
O acento está na produção “porque só com muito trabalho à frente é que temos assunto para conversar sobre as coisas e as coisas só acontecem se nós tivermos uma atitude de trabalho sistemático”. Há que respeitar os ritmos, “cada um tem o seu grau de necessidade de pôr cá para fora” mas a preguiça é “imaturidade”.
O seu principal meio de expressão tem sido através de materiais cerâmicos. Durante o curso começou a trabalhar a porcelana líquida e a modelá-la com tecido. Desenha, modela, e depois levanta e “é como se estivesse a fazer um vestido”. Há uma feminilidade velada que espreita em cada gesto e palavra, “aquilo é tudo em plano, é tudo pincelado, colado, levanta-se…”, faz o gesto com o olhar assentado em brilho, “a passagem do plano para o volumétrico, esta transição… dá-me prazer fazer assim. Gosto de passar, progressivamente, a ideia para o plano e de partir dele para a construção volumétrica”.
O seu raciocínio é claro e a imparcialidade abunda nas suas análises. Teresa é uma perfeccionista incansável. Trabalhando com a porcelana líquida, “o corpo do objecto é a pele de porcelana, criada na superfície de outro que foi seu hospedeiro. Na superfície do objecto produzido fica registada a presença morfológica dos materiais incorporados, apesar ausência da matriz que tornou possível a sua conformação. Escavando a superfície, revela-se com detalhe o registo e isto torna possível atingir uma comunicação simples, clara e directa com os diferentes níveis de informação alcançados em simultâneo”.
Relação entre desenho e cerâmica
O seu universo é quase microscópico, cada pormenor tratado com minúcia e paciência, a entrega ao gesto sobre gesto, criando mundos onde impera o aquático com sabor a vegetal.
O seu objectivo é continuar o seu caminho, mas, foi “prestando atenção ao que ia acontecendo”, foi fazendo “o balanço entre intuição e intenção” e deste modo começou “a reconhecer que estava a desenhar um trilho através do olhar dos outros”.
Existe uma relação velada entre o desenho e a cerâmica. No início do curso descobriu que “o desenho é importante para tudo, até para resolver problemas do meu dia a dia”. Mantém guardada uma produção de desenhos muito grande que agora lhe apetece mostrar. ”Só emoldurei três, estou ainda a seleccionar”.
Para além de desenhos, também outro tipo de imagens que tem vindo a recolher e a criar. Abre-se novo momento no seu processo
Aí vem nova etapa no seu trabalho e desatam-se novos entusiasmos. Mas Teresa não premedita, abre-se à vida e observa com tranquilidade e segurança. “Não corro atrás das coisas, elas vêm ter comigo, e depois embarco nelas, ou não”.
Teresa Calém
Desafio e transformação
Teresa Calém nasceu no Porto (1953) mas habita no Algarve desde os anos 80. Sempre se sentiu atraída pelo desenho e com 18 anos, naturalmente, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto, mas desistiu e ingressou na Fundação Espírito Santo onde tirou Arquitectura de Interiores.
Já no Algarve, cria a “Al Quatro”, uma empresa especializada em design de interiores que obteve franco sucesso. Mas, a pintora reclamava atenção dentro de si e em 2000, com 46 anos, decidiu mudar de vida e inscreveu-se no Ar.Co. Durante seis anos conciliou empresa, família e viagens para Lisboa, três vezes por semana, para ter aulas de Arte e História de Arte.
Em 2004 expõe na “Produzentengalerie”, em Hamburgo, e na “Artadentro”,
Em 2006, começa a dedicar-se à pintura a tempo inteiro e em 2007 expõe no Centro Cultural de S. Lourenço. Agora foi convidada para expor em 2010 na “Galeria de Arte do Nederlandsche Bank”, em Amesterdão.
Cabeças despidas em silêncios
As obras que tem vindo a apresentar são cabeças, de um por dois metros,
Cada cabeça acontece a partir de pequenos pormenores que retira de fotografias encontradas em revistas, jornais ou de desenhos e esboços feitos anteriormente. Não nasceram nesta dimensão, foram crescendo, e o atelier de Teresa está repleto de cabeças de várias dimensões que pertencem “a uma espécie de tribo”. Mas “no formato grande as cabeças ganham outra densidade”.
Porquê cabeças? “Não sei! Gosto imenso de gente e de cabeças, apetece-me muito mais pintar cabeças do que paisagens e vou para aquilo que me apetece”.
O seu atelier é um mundo à parte, povoado de fantástico. Misturados com cabeças, abundam desenhos, esboços, ilustrações de contos infantis, peças tridimensionais, umas feitas de papel de seda e cola branca, outras de pastas, outras ainda feitas de ramos secos e galhos que Teresa apanha nos seus passeios pelo campo e depois constrói, unindo bocadinhos com fio de cobre. Modelos que depois pinta com aguarela em busca de novos caminhos, de novas aventuras.
Atenção total é oração
“A arte é a possibilidade de nos surpreendermos connosco próprios e com o que fazemos.” É continuamente surpreendida pela sua criação e “a partir do momento em que começo a deixar de me surpreender, tenho de passar para outra coisa porque aquela já está inserida, já está a ficar fácil e já estou quase a repetir-me a mim própria”.
A escolha da aguarela encerra o desafio de não se poder emendar. Enquanto que nas técnicas a óleo se pode pintar uma camada sobre um erro e ocultá-lo, na aguarela, cada camada deixa ver o que está por baixo e todas as pinceladas ficam expressas no trabalho.
Descreve o processo de aparição de uma obra com o enlevo da entrega a cada gesto, que tem que ser “o gesto mais perfeito que se pode fazer naquele momento”, por isso é que requer a “atenção total”, e a “atenção total é a mesma coisa que uma oração”.
E mostra, numa dança iluminada pela melodia da sua voz, como estende o papel no chão, como o molha, depois “o pincel na vertical” e olha para mim cheia de um verde translúcido que vem lá do fundo, “a tinta escorre e cresce no papel molhado de um modo muito orgânico, enquanto se espalha no desenho” e depois vem o sol que seca, e já pronto, aí vem nova camada de molhado e tinta e sol e outra camada, e mais outra… com paciência e entrega, Teresa vai saboreando cada “visitação”.
Fascinada pela mitologia grega, explora temas como Dafne, deusa das ninfas que foge de Apolo e se transforma em árvore. O tema da transformação está sempre presente no seu trabalho. No seu trabalho, na sua vida e no modo como se posiciona. Continua em permanente busca, experimentação e formação. “O ano passado, em Julho, fui para Florença, para uma academia onde ensinavam técnicas antigas a óleo”, no Inverno passado frequentou aulas de História de Arte com Nuno Faria e este Verão participou no “Mobilehome”. A sua sede de novos desafios é evidente. Olha-me sorrindo e cita Picasso: “A inspiração é muito boa, sobretudo quando me apanha a trabalhar” e volta a sorrir, cheia de entusiasmo e algum mistério.
Paula Ferro
in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"
Outubro 2009
“Figuras de Convite” em Estói
Exposição de Júlio Pomar
“Figuras de Convite” é uma exposição na Casa Rural da Villa Romana de Milreu,
Esta exposição pode ser visitada até Janeiro de 2010. Trata-se de uma iniciativa da Galeria Ratton e da Direcção Regional de Cultura do Algarve e integra-se no âmbito das Jornadas Europeias do Património que, em 2009, têm como tema, “Vi(r)Ver o Património”. Esta iniciativa é um convite ao envolvimento dos cidadãos na participação activa da descoberta da herança cultural, reforçando a memória colectiva e de afirmação de um Património comum cuja riqueza reside na sua diversidade.
“Toda a criação é recriação” - afirma o artista - “nada é feito a partir de zero. O próprio zero é uma criação magnífica do homem” - faz uma pausa e sorri - “gerações e gerações pereceram antes de alguém ter inventado o zero”.
As figuras de convite, pintadas sobre azulejos e aplicadas nas entradas das habitações da nobreza portuguesa do século XVIII, representam, à escala natural, criados de libré, guerreiros e damas que “recebem” os visitantes. No século XX renovou-se o uso do azulejo sem que a tradição das figuras de convite fosse renovada. A galeria Ratton reconhecendo essa ausência, já quase na entrada para o séc. XXI, convidou Júlio Pomar a preencher essa lacuna. O artista fá-lo com a habitual genialidade e sentido de humor, como o provam as seis obras expostas.
Ao longo da História “a arte como ‘fazer’ tende, na maior parte dos casos, a não evitar destruir aquilo que está em desacordo com o que o dito poder propõe” - explica o artista, - “as próprias cidades são destruídas sucessivamente. Penso que esse sentimento de conservação e de respeito, de amor e curiosidade é relativamente recente, mas ainda bem!”
As obras expostas que convidam a visitar vários compartimentos da Casa Rural são retratos, ou melhor caricaturas.
O retrato, em arte, seja qual for o suporte usado, é uma representação. Mas é também “a fixação do instante, mesmo que esse instante seja massivo. É um desejo da paragem do tempo. Uma tentativa de fixação ou de retenção do tempo” - sorri de novo - “as pessoas mudam…” e o retrato é como agarrar um instante e mantê-lo. “A história do instante é fundamental” - explica - “o viver o instante, o enaltecer o instante” - saboreia a ideia - “penso que tem muito a ver com a natureza da obra de arte. Com o gozo do existir e da própria obra de arte” - os seus olhos iluminados e sábios fitam-me - “o sentir o vivo a viver”.
“O mesmo é outro”
Perguntei-lhe sobre a importância da arte. “Se as artes têm alguma vantagem”,- responde - “é porque nos ajudam a olhar para as coisas e a ver que aquilo que parecia simples e limitado, no fundo, dá saída para mundos e mundos e mundos”.
A arte vive paredes-meias com a consciência “mas por vezes ela produz-se até, sem que o produtor tenha uma ideia, mesmo vaga, do que está a fazer. Não me refiro às artes dos loucos que têm o seu mérito, todo um certo alastramento”, alastramento esse que é “um sector importante da produção da coisa mental”.
“O que é a coisa mental?” – pergunto.
Ri-se e responde: “É a capacidade de pensar a existência de modo que esse pensar tenha forma e consistência, embora não tenha forma nem consistência”. - Sorri da minha reacção – “existe na cabeça, mentalmente” – continua – “e é a partir daí que se dá a forma a nível da visibilidade”.
Para se ser artista é necessário ter “muitas coisas juntas”.
A raiz da palavra “arte” define-a como “fazer de”, “a arte de carpinteiro, ou andar nas artes, como dizem os que vivem perto do mar e não trabalham no campo” - explica, calmamente - “andam nas artes. As palavras são potes sem fundo, saem-nos da boca e não reparamos nelas”, e “este andar nas artes, no fundo, é uma lição sobre o entendimento das coisas”.
As artes prendem-se com as suas técnicas e as substâncias, com a matéria, e com “uma provocação que é cada vez menor, não direi do acaso, mas de qualquer coisa desconhecida ou menos conhecida. É claro que o acaso para o comum das pessoas é uma coisa desprezível, sem regras nem leis, mas a gente, à medida que vai vivendo e apreendendo as coisas, vai chegando à conclusão que o acaso é a matemática mais rigorosa, é aquilo que se oferece só a quem pode perceber”.
As artes respondem a necessidades do homem. As artes da pesca e as artes do camponês respondem a necessidades de sobrevivência mas as artes plásticas também existem por uma necessidade humana. Se não existisse “essa necessidade vital”, o artista não era impelido a produzir e a dedicar a sua vida a fazê-lo.
“Como é um fazer, exige técnica, obrigatoriamente. Mas, a arte é técnica?” - Perguntei.
“Não” – respondeu - “da mesma maneira que a poesia não é gramática embora não possa viver sem ela”. No fundo, a gramática é “um conhecimento da maneira como a língua se processa, se articula, de como ela, por um lado serve o pensamento, e por outro o impulsiona. É sempre ambígua essa relação entre sujeito e objecto, entre o objecto, o sujeito e o predicado. A vida é uma troca constante de posições”.
“Pensa que o artista é aquele que apanha as essências?” – Perguntei.
“Se eu o veria assim?” – Responde – “Sim, sim. Há um jogo permanente entre o artista e o que o artista persegue, e aquilo que no fundo ele faz, que muita vez, quase sempre, transcende o seu projecto”, faz uma curta paragem e avança, “veja por exemplo toda a pintura ocidental, que é uma pintura determinada pela religião. Teoricamente devia acabar, uma vez que a religião é posta em questão, mas a verdade é que eu que não sou católico e continuo a emocionar-me com uma Virgem do Giotto”.
A arte está ligada à vida e vive dentro dela.
“O mesmo é outro, o mesmo é um poço aberto. Não há mesmos”. - Explica.
“E a arte?” – Interrogo.
“É parecido. É uma outra forma de se exprimir aquilo que se pode chamar inquietação. Um sexto conhecimento. Capacidade de absorção, amor, o que quiser. É um pote sem fundo. São cadeias de sensações, pensamentos…”
Paula Ferro
“Aurora da minha humanidade”
Uma exposição de Francis Tondeur, num clima de instalação, faz um chamamento ao visitante para inter-agir, brincar e descobrir, no Palácio da Galeria, em Tavira, até ao final do ano.
Escultura, desenho e vídeo coabitam um espaço organizado encorpando o mesmo desafio. Volumes em algodão puro tornado pano, com bordados, desenhos e janelinhas, escondem peças de madeira e bronze fundido que nos espicaçam a curiosidade.
“Não há criação sem audácia”
Francis Tondeur nasceu em Uccle, na Bélgica, em 1939. Começa por se formar em Arquitectura e Artes Visuais, depois licencia-se
A sua obra materializa-se de modo variado: desenho, pintura, azulejos, arte pública, cenários para peças de teatro… Mas o que mais o atrai é a escultura.
Foi docente de disciplinas artísticas em Universidades portuguesas, nomeadamente em Évora e no Algarve.
“Há muita coisa em comum no artista e no cientista”, afirma. Ambos devem sentir desejo criativo, devem ter audácia, imaginação e senso da observação do acaso. “Quantas vezes um cientista busca uma coisa e encontra outras? Por causa de um acaso. A mesma coisa acontece
A audácia é muito importante, sem ela caímos na repetição ou nas modas. “Não há criação sem audácia”.
O que distingue o cientista do artista é o jogo e o material com que se joga. Por um lado é a molécula e todas as ferramentas das físicas e das químicas, por outro é a cor, o pincel, a forma e as ferramentas adequadas aos materiais que se usam. A base é a mesma. “Também é necessário, em ambas, a persistência, a teimosia, e a paixão. A paixão faz parte”.
Há uma ligação muito forte entre o agora e o passado. A sua infância está viva nesta exposição que nasce nas brincadeiras que o artista tinha em criança quando manuseava blocos de madeira. Francis redescobre os seus próprios gestos nos gestos do filho mais novo enquanto ele brinca e espontaneamente repete os movimentos cometidos pelo pai há muitos anos atrás. Ao observá-lo Francis revive-se e sente, com alguma surpresa, que nada mudou no seu gesto. Existe uma outra consciência, um outro conhecimento de gramáticas e uso de materiais, mas o gesto mantém-se intacto.
As forras em algodão reportam para a casa da sua avó e o modo como protegia os móveis, envolvendo-os com panos brancos que causaram em Francis um forte impacto estético. A sua imaginação era instigada pelas inúmeras possibilidades de objectos velados. Desiludia-se depois, quando as forras eram retiradas e os móveis se deixavam ver, mas este desafio de descobrir o que se esconde, ficou até aos dias de hoje.
Em “Aurora da minha humanidade”, as forras fazem parte das peças e são também a ponte para o espectador, encarnam o lado lúdico da exposição e o convite ao visitante para participar do jogo iniciado pelo artista. As forras podem ser tiradas, deixando ver a escultura que está por baixo. Tirá-las, quer dizer entrar no jogo.
As matrizes das peças são feitas de madeira maciça e forte. Reciclagem de vigas, pranchas de cofragem, materiais de construção. Reciclagem que se transporta para a própria criação das peças. As matrizes originais são reutilizadas. Nelas, Francis desenha, pinta e acrescenta bocados de tela, tecidos, torneiras, válvulas e outros objectos. Mistura a madeira com bronze fundido. As peças são cobertas por panos já costurados com janelas, brechas para o olhar, sugestões de possíveis “espreitadelas” para o “mundo” que está lá dentro.
Com espírito lúdico e sentido de humor, aborda temas sociais, culturais e raciais que examina com seriedade e um sentido crítico que pretende que se amplie. Incomodam-no os contra-sensos das religiões e fica entristecido com as consequências da cegueira dos dogmatismos e da ambição económica. Não cruza os braços. O ser humano é-o na posição vertical, mantém-se de pé e em eterno combate. O fluir da vida implica amor pela própria vida e pela sua evolução.
Arte pública em Tavira
As duas esculturas em bronze e os oito cata-ventos que se encontram na rotunda da estação de caminhos-de-ferro, em Tavira, são de sua autoria.
Em 2000, foi convidado para fazer um monumento à guerra colonial. Francis não gostou do tema mas investigou e descobriu uma ligação humana que lhe interessou: o amor entre os soldados provindos de todas as partes do país e as mulheres da terra. O rapaz faz um sinal e a rapariga também. Não se sabe se é a felicidade do regresso ou a aflição do adeus para a guerra. O mesmo gesto simboliza emoções ambíguas que foram vividas neste local, representativo das entradas e saídas da terra onde o soldado vivia dentro e fora do quartel, referenciado na farda típica da época. A rapariga, Francis encontrou na sua fantasia.
Os cata-ventos aludem à história da cidade, antigo centro de comércio que entrava pelo porto fluvial. Evoca a importância do conhecimento dos ventos para o marinheiro. “Daí o cata-vento”.
As suas cores fortes e formas arredondadas prendem-se com outra interpretação. Ali, naqueles balões de banda desenhada com volume e ao vivo, cuja página que é aquela rotunda, estão inscritas as emoções fogosas, saudosas, calorosas, entristecidas, dos amantes que se encontram e/ou se despedem, com a guerra como pano de fundo do pensamento.
Paula Ferro