quinta-feira, 18 de março de 2010

jornalismo - Teresa Ramos e Teresa Calém

in ".S" - caderno de artes do "Postal do Algarve"

Outubro 2009

Vai atrás do teu desejo, ou mata-o…”

Manuel Rodrigues

Trajectórias

Teresa Ramos e Teresa Calém, duas mulheres com o mesmo nome, nascidas no mesmo ano em locais quase opostos do país. Ambas fazem um percurso profissional sólido, mas num dado momento da sua vida, atingida já a maturidade e o sucesso, resolvem seguir um apelo interior e recomeçam o seu caminho ingressando numa escola de arte.

A audácia, a força provinda do seu desejo interior e uma entrega efectiva ao trabalho conduzem-nas a novos êxitos, agora nas artes plásticas.

Teresa Ramos

Sensibilidade e rigor

Teresa Ramos nasceu em Tavira (1953) mas divide a sua vida entre Faro, onde tem o seu atelier, e Lisboa, onde é professora e directora do Departamento de Cerâmica no Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co).

No início dos anos 80 fez formação em olaria na “Culturona”, em Lisboa, mas, durante doze anos trabalhou na produção de filmes de publicidade.

Apesar de muito bem paga, “os níveis de agressividade, a falta de respeito, os relacionamentos injustos e a desonestidade dentro do triângulo cliente, agência e produtor de filmes, tornou-se cada vez mais inaceitável para mim”. Abandonou a publicidade quase “em legítima defesa”.

A sua leitura do mundo conduziu-a “a seguir em frente, procurando algo mais, e outros mais que suspeito existirem além daquilo que é apresentado como a verdade, a realidade, e a vida”.

Decidiu andar pelas suas próprias pernas e construir o seu próprio chão, enquanto caminhasse. Aprender fascina-a e, aos 42 anos, decidiu fazer um curso de artes e mudar de vida. Foi para o Ar.Co. Fez o plano de estudos completo de cerâmica e o plano de estudos básico em desenho, e depois o curso avançado de artes plásticas.

Em actualizações permanentes

Quando frequentava o segundo ano do curso avançado de artes plásticas, “o Manuel Castro Caldas propôs-me ficar à frente do Departamento de Cerâmica. Pensei que seria uma coisa transitória, rápida. Eu queria mesmo era vir para o meu atelier, fazer as minhas coisas, sozinha…”, mas aceitou e gostou mais do que esperava. Foi reestruturando o curso durante cinco anos seguidos e foi incorporando “todas essas mudanças no meu próprio crescente, mesmo de pensamento e de reflexão sobre qual é o papel da escola, qual a sua função”.

O Ar.Co é uma escola independente com um cariz de experimentação muito forte. É no trabalho que as coisas se realizam, se descobrem, se questionam”.

Mas não é só o Departamento de Cerâmica que está em permanente mudança, “todos os anos há mudanças. As coisas estão em reajuste permanente”. Sente-se “em actualizações permanentes. Estou sempre a reajustar a minha posição, é quase diário, e agrada-me sentir que na escola onde trabalho isso também acontece”.

Se uma escola como esta seria importante no Algarve? Soltar um sorriso límpido e brilhante: “Uma escola assim é importante em qualquer parte”.

Já como Directora de Departamento começou a leccionar. Como professora, trabalha ao lado “das pessoas” e descobre com elas. “Não dou directrizes, mas faço propostas, senão a pessoa dispersa-se e não há o envolvimento necessário”. O envolvimento, a entrega, a reflexão e a dedicação ao trabalho são fundamentais, “é preciso começar a aprender que gostar é pouco, não chega!”

A preguiça é imaturidade

Paralelamente, há um contínuo trabalho de atelier, de pesquisa, de experimentação e reflexão com um sólido percurso próprio.

Expõe regularmente desde 1998. Está representada nas Colecções do Museu de Olaria de Barcelos e na do Ar.Co, assim como em diversas colecções particulares. Foi bolseira do Montepio Geral em 2001/2002.

A cerâmica como arte ou como artesanato? “Isso depende da atitude que se toma”. A arte é uma atitude, não reside no domínio de técnicas. “Não pode! O domínio de técnicas é outro assunto. Isso é outro departamento”. A arte é outra coisa, “podemos encontrar um quadro muito bem pintado, tudo muito certinho, mas sem interesse, sem assunto inclusivamente. Há um alto domínio técnico mas… é só isso!” Faz uma pequena pausa, e continua, tranquilamente, “há pessoas e há publico para tudo, portanto há a mesma legitimidade, não há é o mesmo interesse. Para mim não tem interesse nenhum, mas é legítimo!”

Usamos técnicas para exprimir o pensamento, quer as dominemos ou não. O domínio da técnica ”depende da utilização que se faz dela. Só na utilização há aperfeiçoamento”. As técnicas podem ser utilizadas de muitas maneiras, “no sentido da perfeição ou explorando os limites dos materiais; onde é que as coisas passam para o efeito ou para o defeito? Procura-se aquilo que se considerou defeito, ou não? Vai-se utilizar, ou não? Aí é que está a consciência na utilização dos materiais. Mas para haver consciência na utilização, tem que haver utilização”.

O acento está na produção “porque só com muito trabalho à frente é que temos assunto para conversar sobre as coisas e as coisas só acontecem se nós tivermos uma atitude de trabalho sistemático”. Há que respeitar os ritmos, “cada um tem o seu grau de necessidade de pôr cá para fora” mas a preguiça é “imaturidade”.

O seu principal meio de expressão tem sido através de materiais cerâmicos. Durante o curso começou a trabalhar a porcelana líquida e a modelá-la com tecido. Desenha, modela, e depois levanta e “é como se estivesse a fazer um vestido”. Há uma feminilidade velada que espreita em cada gesto e palavra, “aquilo é tudo em plano, é tudo pincelado, colado, levanta-se…”, faz o gesto com o olhar assentado em brilho, “a passagem do plano para o volumétrico, esta transição… dá-me prazer fazer assim. Gosto de passar, progressivamente, a ideia para o plano e de partir dele para a construção volumétrica”.

O seu raciocínio é claro e a imparcialidade abunda nas suas análises. Teresa é uma perfeccionista incansável. Trabalhando com a porcelana líquida, “o corpo do objecto é a pele de porcelana, criada na superfície de outro que foi seu hospedeiro. Na superfície do objecto produzido fica registada a presença morfológica dos materiais incorporados, apesar ausência da matriz que tornou possível a sua conformação. Escavando a superfície, revela-se com detalhe o registo e isto torna possível atingir uma comunicação simples, clara e directa com os diferentes níveis de informação alcançados em simultâneo”.

Relação entre desenho e cerâmica

O seu universo é quase microscópico, cada pormenor tratado com minúcia e paciência, a entrega ao gesto sobre gesto, criando mundos onde impera o aquático com sabor a vegetal.

O seu objectivo é continuar o seu caminho, mas, foi “prestando atenção ao que ia acontecendo”, foi fazendo “o balanço entre intuição e intenção” e deste modo começou “a reconhecer que estava a desenhar um trilho através do olhar dos outros”.

Existe uma relação velada entre o desenho e a cerâmica. No início do curso descobriu que “o desenho é importante para tudo, até para resolver problemas do meu dia a dia”. Mantém guardada uma produção de desenhos muito grande que agora lhe apetece mostrar. ”Só emoldurei três, estou ainda a seleccionar”.

Para além de desenhos, também outro tipo de imagens que tem vindo a recolher e a criar. Abre-se novo momento no seu processo em que Teresa sente vontade de repousar da cerâmica, “estou mais virada para o estirador, para a máquina fotográfica e para o registo de imagens… “

Aí vem nova etapa no seu trabalho e desatam-se novos entusiasmos. Mas Teresa não premedita, abre-se à vida e observa com tranquilidade e segurança. “Não corro atrás das coisas, elas vêm ter comigo, e depois embarco nelas, ou não”.

Teresa Calém

Desafio e transformação

Teresa Calém nasceu no Porto (1953) mas habita no Algarve desde os anos 80. Sempre se sentiu atraída pelo desenho e com 18 anos, naturalmente, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto, mas desistiu e ingressou na Fundação Espírito Santo onde tirou Arquitectura de Interiores.

Já no Algarve, cria a “Al Quatro”, uma empresa especializada em design de interiores que obteve franco sucesso. Mas, a pintora reclamava atenção dentro de si e em 2000, com 46 anos, decidiu mudar de vida e inscreveu-se no Ar.Co. Durante seis anos conciliou empresa, família e viagens para Lisboa, três vezes por semana, para ter aulas de Arte e História de Arte.

Em 2004 expõe na “Produzentengalerie”, em Hamburgo, e na “Artadentro”, em Faro. Em 2004, participa no “TRACTOR”, em Faro Capital Nacional da Cultura e numa exposição colectiva no “Palácio da Galeria”, em Tavira.

Em 2006, começa a dedicar-se à pintura a tempo inteiro e em 2007 expõe no Centro Cultural de S. Lourenço. Agora foi convidada para expor em 2010 na “Galeria de Arte do Nederlandsche Bank”, em Amesterdão.

Cabeças despidas em silêncios

As obras que tem vindo a apresentar são cabeças, de um por dois metros, em aguarela. Uma mistura de mítico, místico e fantástico, materializados pela exploração de técnicas de aguarela no sentido do retrato mas que não geram retratos e sim fisionomias anónimas, de tez outonal em cabeças despidas que nos transportam para silêncios. São brilhos exaltados de espanto em expressões suspensas, agarradas no início de uma metamorfose. E soltam-se frescos, com odor a relva molhada, que nos conduzem a fantásticas possibilidades de vida encerradas num olhar.

Cada cabeça acontece a partir de pequenos pormenores que retira de fotografias encontradas em revistas, jornais ou de desenhos e esboços feitos anteriormente. Não nasceram nesta dimensão, foram crescendo, e o atelier de Teresa está repleto de cabeças de várias dimensões que pertencem “a uma espécie de tribo”. Mas “no formato grande as cabeças ganham outra densidade”.

Porquê cabeças? “Não sei! Gosto imenso de gente e de cabeças, apetece-me muito mais pintar cabeças do que paisagens e vou para aquilo que me apetece”.

O seu atelier é um mundo à parte, povoado de fantástico. Misturados com cabeças, abundam desenhos, esboços, ilustrações de contos infantis, peças tridimensionais, umas feitas de papel de seda e cola branca, outras de pastas, outras ainda feitas de ramos secos e galhos que Teresa apanha nos seus passeios pelo campo e depois constrói, unindo bocadinhos com fio de cobre. Modelos que depois pinta com aguarela em busca de novos caminhos, de novas aventuras.

Atenção total é oração

“A arte é a possibilidade de nos surpreendermos connosco próprios e com o que fazemos.” É continuamente surpreendida pela sua criação e “a partir do momento em que começo a deixar de me surpreender, tenho de passar para outra coisa porque aquela já está inserida, já está a ficar fácil e já estou quase a repetir-me a mim própria”.

A escolha da aguarela encerra o desafio de não se poder emendar. Enquanto que nas técnicas a óleo se pode pintar uma camada sobre um erro e ocultá-lo, na aguarela, cada camada deixa ver o que está por baixo e todas as pinceladas ficam expressas no trabalho.

Descreve o processo de aparição de uma obra com o enlevo da entrega a cada gesto, que tem que ser “o gesto mais perfeito que se pode fazer naquele momento”, por isso é que requer a “atenção total”, e a “atenção total é a mesma coisa que uma oração”.

E mostra, numa dança iluminada pela melodia da sua voz, como estende o papel no chão, como o molha, depois “o pincel na vertical” e olha para mim cheia de um verde translúcido que vem lá do fundo, “a tinta escorre e cresce no papel molhado de um modo muito orgânico, enquanto se espalha no desenho” e depois vem o sol que seca, e já pronto, aí vem nova camada de molhado e tinta e sol e outra camada, e mais outra… com paciência e entrega, Teresa vai saboreando cada “visitação”.

Fascinada pela mitologia grega, explora temas como Dafne, deusa das ninfas que foge de Apolo e se transforma em árvore. O tema da transformação está sempre presente no seu trabalho. No seu trabalho, na sua vida e no modo como se posiciona. Continua em permanente busca, experimentação e formação. “O ano passado, em Julho, fui para Florença, para uma academia onde ensinavam técnicas antigas a óleo”, no Inverno passado frequentou aulas de História de Arte com Nuno Faria e este Verão participou no “Mobilehome”. A sua sede de novos desafios é evidente. Olha-me sorrindo e cita Picasso: “A inspiração é muito boa, sobretudo quando me apanha a trabalhar” e volta a sorrir, cheia de entusiasmo e algum mistério.

Paula Ferro

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