quinta-feira, 11 de março de 2010

Jornalismo - Nuno Faria

in ".S" - Caderno de Artes do Postal do Algarve
28 de Janeiro de 2010


Uma ética que é uma estética

Nuno Faria nasceu em 1971 em Lisboa, formou-se em História da Arte pela Université Libre de Bruxelles, é professor do Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co – Centro de Artes e Comunicação Visual e do Curso de Artes Visuais da Universidade de Faro. Escreveu na Revista História – Jornal de Letras, foi subdirector do Instituto de Arte Contemporânea, actual Instituto das Artes. Foi consultor e curador residente do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian.
Veio residir para o Algarve no início do séc. XXI onde fez vários projectos: “Os dias de Tavira”, no ano de criação do Palácio da Galeria “em armazéns de sal, numa vertente sobretudo de arte contemporânea, com pessoas como o Francisco Tropa, Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft, Augusto Alves da Silva, entre outros”. No âmbito de “Faro, Capital da Cultura”, fez um projecto na Quinta de Marim, entre outros.
Foi convidado pela Fundação de Serralves para ser coordenador local da segunda edição do Allgarve.
Vive actualmente perto de Loulé e pretende “fazer um trabalho estruturante que crie um contexto e instancias críticas que contribuam para que o Algarve cumpra o seu destino que não é ser um mero local de férias, é sim, reencontrar a sua natureza de ponto de encontro, de troca civilizacional e cultural”.
Sente que no seu trabalho há “uma espécie de missão que o investe de uma responsabilidade muito para além do próprio prazer ou da realização profissional”, é absolutamente uma “uma ética e uma estética em simultâneo”.


Mobilehome
“Mobilehome – Curso Experimental de Arte Contemporânea” foi organizado pelo Atelier Educativo e a Câmara Municipal de Loulé, coordenado por Nuno Faria, decorreu no passado Verão e terminou com uma exposição no Lagar das Portas do Céu em Loulé. Este curso, integrado na programação do Allgarve dirigiu-se a artistas com percurso e a participação esteve sujeita a selecção.
“O projecto Mobilehome tem que ver com a leitura que fiz sobre as lacunas mais gritantes no panorama da arte contemporânea no Algarve”, explica Nuno, “não existem instâncias críticas no Algarve ou existem de forma muito isolada. Contam-se pelos dedos os espaços galerísticos com consistência e, mesmo assim, uma só mão chega e sobra. Uma das lacunas mais gritantes e aflitivas é o facto de haver uma panóplia muito interessante de artistas com trabalhos sólidos, a trabalhar cá, sem um enquadramento crítico. Os artistas precisam de diálogo, de trocar ideias, de ter pessoas em quem confiem e que saibam entabular uma crítica. Os artistas com trabalho consolidado são seres muito complexos e com uma estrutura crítica muito forte mas carecem muito do seu contexto para desenvolver trabalho e discutir sobre ele no sentido de enriquecer e ganhar novas perspectivas a partir dele”.
Faltava um bom projecto educativo que juntasse os artistas criando uma ponte de diálogo e acompanhamento de trabalho. “Faltava sobretudo um projecto equiparado ao que poderia ser uma pós-graduação, independente e experimental, para artistas com percurso e que convocasse outros artistas. A perspectiva tem que ser sempre a de tentar perceber o que é que faz falta e de abrir o lugar também a outras pessoas. Essa é a melhor maneira de se ultrapassar, de uma vez por todas, esta relação viciada e completamente assimétrica que é o mundo contemporâneo do Algarve e o seu modo de se posicionar como região periférica que é. A periferia geográfica não tem que corresponder uma periferia de pensamento. Quem acompanha o que se passa a nível internacional nas grandes dinâmicas de programação percebe que os ditos centros estão muito interessados nas periferias e estão a redescobri-las porque elas têm um potencial enorme”.
Trata-se de uma espécie de curso ou escola de Verão e “baseou-se num formato muito simples de seminário/workshop e numa relação de tutores com os participantes, de artista para artista, de curador ou de crítico para artista, e acredito que só é possível fazer isto com pessoas que tenham acção no meio, uma acção verdadeira, com pessoas que façam”.
Foram convocados artistas, “portugueses ou não, a viverem cá ou não, para fazerem parte deste corpo. Houve uma série de conferências, de masterclass e de artistas a falarem sobre o seu trabalho. Houve sobretudo cinco semanas de curso muito intensas que tiveram uma belíssima participação reunindo um conjunto de artistas muito qualificados, muito interessantes, que vivem aqui e trabalham aqui. Penso que a experiência foi muito forte para eles”. Participaram também artistas de outros pontos do país e do estrangeiro.
“Estamos a preparar a segunda edição que já está praticamente formatada”, informa, “em Novembro houve um encontro de preparação com vários tutores. É um projecto com um orçamento bastante vago. Não se acredite que só se fazem coisas com orçamentos altos”.
Este ano o formato vai ser sobretudo de investigação sobre o território. “A arte contemporânea tem uma dimensão política interventiva no sentido nobre do termo e, ao grupo de tutores, parecia impossível não se fazer um trabalho sobre o território, sobre as instituições, sobre esta bipolaridade algarvia. A bipolaridade litoral/ interior, Verão/ resto do ano, a produção própria, agrícola ou piscatória e o fornecimento de serviços, a relação entre a paisagem e os campos de golfe”.
O próximo Mobilehome vai ter também uma forte componente de residência para as pessoas se concentrarem totalmente no seu trabalho e vai haver um naipe de tutores absolutamente invejável.
“O encontro de preparação foi muito importante. Convidámos o Francisco Palma Dias para fazer uma leitura sobre o território. Ele é uma das pessoas mais decisivas, uma das muitas pessoas que aqui, no Algarve, se mantêm recatadas mas têm uma produção de pensamento absolutamente central. Convidei um arquitecto relativamente jovem, o João Soares que nasceu em Loulé, estudou em Veneza, é professor na Universidade de Évora e escreveu uma tese sobre o território algarvio, sobre as mudanças do território, muito pressionado pelo turismo. Tudo isto numa perspectiva de criar conhecimento e de multiplicar esse conhecimento. As coisas têm dado frutos. Alguns artistas estrangeiros que cá vieram querem estabelecer-se aqui, alguns até já o fizeram. Isto é uma lógica sempre multiplicadora. E é preciso entender uma coisa: estes projectos não se fazem com dinheiro, fazem-se com conhecimentos, com contactos, com o trabalho que vai sendo cozido. O meio da arte contemporânea é um meio que se move muito pela generosidade das pessoas. Estes projectos são muito acarinhados pelos agentes do meio, têm uma enorme visibilidade pública e percebe-se que têm em si uma semente que pode crescer de um modo muito forte”.
O projecto Mobilehome é uma parceria do Atelier Educativo com a Câmara Municipal de Loulé, “que continua e estamos a preparar um forte programa educativo que cobre vários escalões etários, várias áreas e pretende reunir um conjunto de pessoas em torno da energia que a arte contemporâneas evoca”.

Algarve Visionário, Excêntrico e Utópico
A Rede de Museus do Algarve criou um projecto expositivo que se chama “Algarve, do Reino à Região” que vai ter lugar em Maio do corrente ano onde participam catorze museus, tendo cada museu uma exposição dedicada a um tema e a uma época. O Museu Municipal de Faro escolheu o séc. XX e convidou Nuno Faria para conceber e comissariar um projecto relativo à arte contemporânea. O projecto apresentado intitula-se “Algarve Visionário, Excêntrico e Utópico” e faz uma leitura a partir de uma tese e de uma figura tutelar.
“A figura tutelar é o poeta João Lúcio que foi muito mais do que um poeta simbolista”, explica o curador, “tinha um trabalho e toda uma existência muito utópica e visionária com o chalé que construiu para criar, para escrever e que infelizmente não chegou a usar com a intensidade com que queria. João Lúcio tem todo um contexto e um conjunto de figuras anunciadoras como o João de Deus que ia e vinha para Coimbra, escrevinhando os seus poemas e dedilhando a sua guitarra numa espécie de prenúncio de uma beat generation. Teixeira Gomes, um vulto absolutamente incrível, foi a visão que o levou mais longe e à abdicação do poder para o exercício da viagem”.
Esta exposição, a partir de um conjunto de figuras, tenta estabelecer uma leitura do território e do modo como este influencia as pessoas “e tenta marcar um conjunto de projectos mais ou menos utópicos, mais ou menos excêntricos, mais ou menos conhecidos. Dá-nos a realidade deste território que é completamente estilhaçada, muito polimórfica, em que as pessoas raramente falam umas com as outras, em que vêm para estar isoladas, para realizar a sua mitologia e a sua utopia individual.”
A exposição estabelece uma ligação entre o Norte e o Sul. “O Algarve é uma espécie de Norte do Sul e de Sul do Norte. Desde sempre há uma relação simbolista com o mundo própria do Norte, essa relação intensa com a natureza, essa infalibilidade com os fenómenos. Isso confirma-se com a presença de um conjunto de figuras do grande Norte, os nórdicos, os austríacos, os alemães, os franceses, numa relação de grande fascínio. Isso tem que ver com o magnetismo deste lugar e o que a exposição faz, num certo sentido, é tentar mapear várias tipologias de relações com o lugar”. A construção da casa “que é a máxima utopia de valorização pessoal. Grande parte de projectos excêntricos e completamente deslocados do lugar são exemplo disso”.
A exposição é composta por vários núcleos. “Um núcleo que se chama ‘Gastronomia enquanto obra de arte total’ apresenta várias figuras e a importância da alimentação e da cozinha neste lugar e contém figuras que basearam todo o seu trabalho criativo aí, pessoas de cá e outras que vieram para cá, mas que levaram estes projectos para o Norte”.
Outro núcleo que tem que ver com o experimentalismo e como figura central René Bertholo apresenta “um disco maravilhoso que se chama ‘Um Argentino no Deserto’, um disco de música electrónica e experimental a que Bertholo dedicou grande parte da sua vida”.
Outro núcleo elege “a plêiade de personagens ligadas à poesia, à palavra, ou à tertúlia no final dos anos 50, princípio dos 60 que aconteceu em Faro gerando esse movimento absolutamente essencial para a mudança radical da literatura portuguesa a que se chama ‘Poesia 61’ e reuniu pessoas como Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge, Gastão Cruz, Manuel Baptista, António Barahona e até Zeca Afonso. Aqui vai-se tentar ver, de uma forma mais ou menos livre, como o território influenciou a escrita”.
Outro núcleo diz respeito à relação entre a pintura e a escrita. A palavra e imagem, a poesia e a pintura. “Chama-se ‘Lagos são os Lagos’ e está entre o Joaquim Bravo e a Sofia de Melo Breyner”.
A exposição vai ocupar quatro lugares em Faro: as galerias municipais Trem e Arco, o Museu Municipal e no Museu Regional. “É uma exposição muito forte que vai durar sete meses. É uma espécie de laboratório e também uma homenagem ao Manuel Baptista. Vai ser um trabalho crítico mais decantado”. Os seus grandes “cúmplices” são Vasco Célio e com o Jorge Graça. “É um bocadinho agitar as águas, criar um chão para se debater”, explica, “e é uma exposição com um orçamento relativamente baixo”.
Sobre as críticas à falta de artistas da região no Allgarve,
Nuno Faria afirma: “O debate sobre o Allgarve é um desencontro de ideias e uma perda de energias. Assisti às mais patéticas manifestações de ignorância provindas quer de pessoas do Algarve e que aqui trabalham, quer de pessoas de Lisboa e do Porto e que têm responsabilidades críticas. O projecto Mobilehome esteve incluído na programação oficial do Allgarve e é um projecto que está a ser feito aqui, por uma associação sedeada no Algarve, em parceria com uma câmara algarvia e reuniu mais de vinte artistas que trabalham cá, vivem cá e são de cá.
É preciso ter conhecimento de causa para se falar sobre as coisas. Ninguém tem legitimidade crítica se não sabe distinguir o trigo do joio. Agora quando se quer ter plataforma, ter tribuna para se mostrar e se recorre a um tema como estes, é evidente que não se pode estar à espera que se fale de modo responsável”.

Paula Ferro

1 comentário:

Unknown disse...

Ter O Dr. Nuno Faria como Professor é um Previlégio.
E Já agora Paulinha, que te descobri vê lá se me contactas pois deixei o meu tel na farmácia.
O teu numero desapareceu aquando da "gripagem" que deu no meu tel.
Gostei muito das tuas matérias. Agora andas nas Artes? -. Que bela surpresa.
Beijinhos
Ilda Silvério de S. Catarina