quarta-feira, 3 de junho de 2009

Entrevista/reportagem com Jorge Côrte-Real

in "Postal do Algarve"
Abril de 2007


"A foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam... diante da objectiva, sou ao mesmo tempo, aquele que a fotografia julga e aquele de que se serve para exibir sua arte."
Roland Barthes in “A Câmara Clara”






Quando deixar de haver “material fotográfico sensível” a fotografia morre.

Jorge Côrte-Real nasce praticamente com uma máquina fotográfica nas mãos. O negócio de família na fotografia vem de Angola faz mais de 60 anos. Começou com um tio paterno que mais tarde passa o negócio a seu pai (hoje com 80 anos). Já em Portugal, passa para o seu irmão mais velho (já falecido). Actualmente encontra-se nas suas mãos. Como profissional começou a “dar ao dedo” em velhas maquinetas analógicas aos 14 anos. Na firma, inicialmente a sua tarefa era mais parecida com a pintura. Limitava-se a retocar os positivos de fotografia. Não apenas as de maiores dimensões como era habitual, mas em todos os tamanhos devido ao perfeccionismo do pai. Apesar de ser um trabalho mais de pintura do que de fotógrafo, entusiasmou-o e agudizou a sua paixão pela imagem.

Depois do 25 de Abril “caí em Olhão por acaso. O meu pai é natural de Ermesinde mas como na altura não havia lá lugar para nós, acabámos por rumar ao Algarve. Naquela altura mandar revelar um rolo de fotografias a cores demorava no mínimo uma semana. Eram todos revelados em Lisboa. O meu pai abriu o primeiro laboratório a cores no Algarve para onde passaram a ser encaminhadas quase todas as revelações da região. Trabalhávamos praticamente 20 horas por dia. Quase todo o trabalho era artesanal”. Nessa altura os Côrte-Real já tinham preocupações ambientais. “Os químicos não eram despejados directamente nos esgotos. Eram previamente filtrados. O processo permitia não só evitar descargas poluentes mas também a recuperação da prata existente na película fotográfica que era posteriormente vendida, o que nos proporcionava uma mais valia. Hoje em dia temos de pagar a empresas para a recolha das soluções químicas.”



- Desculpem interromper. Isto é uma entrevista?
- É!
- Para que jornal?
- Para o “Postal do Algarve”!
- Mas como? Eu também venho fazer uma entrevista para o “Postal”. Há aqui qualquer coisa que não bate certo!
- Problema seu... o meu está praticamente resolvido.
- Mas o que não está é o meu...


- “Desculpem, não tenho nada a ver com isso nem quero ser mal educado, mas ou fazem mais perguntas ou vou-me embora. Tenho mais que fazer!”

Regista Olhão, o Algarve e as suas gentes há mais de 30 anos.

Jorge Côrte-Real regista Olhão, o Algarve e as suas gentes, em película, até hoje. Isso resulta num espólio considerável. Um testemunho histórico importante que já merecia ser estudado e publicado. No seu deambular de mais de 30 anos pelas ruas desta cidade foi captando imagens do que já não existe e daqueles que já cá não estão. Muitas personagens típicas desta cidade só continuam a existir graças às suas películas religiosamente guardadas.
A primeira exposição de fotografia em que Jorge participa foi uma colectiva em Olhão em 1981, num antigo café à data abandonado, onde hoje funciona a dependência do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa. Exposição que na altura se saldou por um sucesso de público calculado em alguns milhares de pessoas.
Em “A Semana Santa do Senhor Morto em Olhão” - fotos nocturnas de 1984- as fotografias são impressas em tela de modo artesanal, o que lhes confere um ar quase “sobrenatural” quando a cor e o brilho da textura da tela se misturam. Todo o processo é manual, desde a captação das imagens sem flash, até às molduras que ele próprio cola e pinta.
- Desculpe mas agora sou eu a fazer a pergunta!
- Como queira, desde que não me atrapalhe!
- Ora querem lá ver!?
- “Ou se entendem ou vou-me mesmo embora!... Santa paciência!”


Possui material e conhecimentos para ampliar fotos em grandes dimensões

Possuidor de diverso material que possibilita ampliações de grandes dimensões em papel fotográfico, mantém-no guardado numa cave do seu antigo laboratório em Olhão, Jorge Côrte-Real confidencia que consegue “revelar fotos de 3 por 5 metros. Hoje em dia não sei se haverá mais alguém em Portugal com capacidade ou conhecimentos para fazer ampliações tão grandes. Há alguns anos havia laboratórios que o faziam mas agora não sei se haverá.” Truques que aprendeu na mestria do ofício e lhe permitem, utilizando pequenas tinas, revelar fotografias de grandes dimensões. Um segredo que guarda só para si: “há pessoas que têm noções de fotografia e quando vêem fotografias grandes dizem: ‘Isto teve que ser no chão, teve que ser na banheira!’ Não é nada disso! A ampliação faz-se na parede e a revelação em tinas pequenas. São trabalhos que dão muito gozo mas que hoje raramente faço por falta de tempo. Estou sozinho no negócio. O meu pai já tem 80 anos, está reformado, o meu irmão faleceu. Tenho mais irmãos que gostam de fotografia mas não se dedicam a ela profissionalmente”.

A firma Côrte-Real foi das últimas a aderir ao formato digital sem ter abandonando o analógico. Prova disso é que as reportagens efectuadas pelo Jorge ainda são feitas em filme e só depois passadas para digital. Diz-nos com alguma mágoa que “no dia em que a película a preto e branco acabar, a fotografia para mim e para outros que eu conheço, acaba também. A fotografia analógica tem magia! É uma lente mágica! Quando deixar de haver o “material fotográfico sensível” a fotografia morre, perde o interesse.”

Não somos pessimistas ao ponto de pensar que a fotografia acabará quando se deixar de fotografar em película ou quando se deixar de revelar em papel fotográfico. A prova disso mesmo é existirem artistas como ele. E enquanto existirem artistas tão sensíveis e imensamente grandes na sua simplicidade como Jorge Côrte-Real uma coisa é certa: as coisas que eles fizeram ou vierem a fazer, quer queiramos ou não, ficarão para sempre guardados em filme, ou em fotografias amareladas pelo tempo, muito para lá da nossa memória colectiva.

- Só por curiosidade, quem assina a entrevista?
- Claro que sou eu!
- Tu... E porque não eu?
- Porque estou há mais tempo no jornal e porque fui eu quem começou a entrevistar o Jorge.
- Pois vê-se pelos cabelos brancos! Mas também pelo que escreves... não aprendeste nada.
- “Basta! Xau até depois. Mas que seca de entrevista!”
- Jorge... Jorge? Espera lá, Jorge... ainda não...
- Olha, foi-se embora! Tinhas mais alguma pergunta para fazer?
- Eu não. E tu?
- Eu também não... que se lixe! Fica assim...


Paula Ferro versus Henrique Estêvão




Entrevista/reportagem com Daniel Vieira



in "Postal do Algarve"
Abril de 2007









“Pela Arte o homem sente que domina e detém, enfim, o poder de imobilizar e conservar, não só o que viu à sua volta, mas também o que viveu dentro de si.”

RENÉ HUYGHE




A minha verdadeira universidade foi pelos cafés e por aí.


Daniel Vieira começou a gostar de pintura em criança. “O meu pai pintava a vista da varanda e eu gostava daquilo. Um dia apareceu aqui um pintor da velha escola dos impressionistas, o senhor Jorge Falcão Trigoso. O meu pai levou-o para casa. Eu gostava das coisas que ele fazia.” Não achava graça à escola. “ Fui estudar para Faro. Mau estudante! Não estudei nada! Eu gostava era de rua! Voltei para Alte e comecei a pintar com o meu pai. Tinha pr’ aí 12 anos.” Hipnotizado pela vida, não parou de aprender coisas. “A gente aprende em qualquer lado, não é? A minha verdadeira universidade foi nos cafés e por aí. O meu tio Caixeiro, um dia deixou cair uma bilha no poço. O poço tinha o gargalo de pedra. Ele disse-me: Estás a ver? O baraço é mole, não é? Mas tantas vezes foi buscar coisas lá em baixo que furou a pedra! Assim podes ser tu!” Nessa altura já Daniel queria ser pintor e “um senhor, parente do Cândido Guerreiro, disse-me que um pintor tem que saber de tudo. Essa também me ficou na cabeça. Entusiasmei-me e comecei a estudar em Loulé, na explicação do sr. Porfírio Lopes. Um personagem engraçado! (parou a olhar para o ar como quem regressa por instantes a um lugar já inabitável mas que se mantém aceso na sua memória. “Fiz o 2º ano, fui para Lisboa. Fiz a António Arroio à noite. Fui trabalhar na Caixa Geral de Depósitos e matriculei-me na Escola das Belas Artes” que concluiu em 1974.

Quem nos tira a aguarrás tira-nos tudo.

Daniel Vieira fez cursos nocturnos de Pintura, Gravura, Música, (um deles com o professor João de Freitas Branco, “grande maestro, gostava muito de ver as mãos dele!”), Teatro, Expressão Dramática… Em Belas Artes especializou-se em Gravura, “quem nos tira o cheiro da aguarrás tira-nos tudo!” Não pára de estudar. No ano passado voltou para as Belas Artes para um curso de Ilustração porque sentia “necessidade de falar com pessoas novas!” Um eterno jovem. “ Nasci no ano da graça de 1937. No ano em que Picasso pintou a Guerenica”, a última invenção feita em Arte. Agora é muito difícil criar algo verdadeiramente novo. Pinta por necessidade, porque sente coisas e tem que as pôr cá fora. Não trabalha todos os dias a horas certas, funciona por impulso quase visceral. “Bem, estou trabalhando sempre, mas às vezes é só de cabeça!” Tem imensos quadros inacabados e trabalhos terminados que são compostos por várias telas que se completam, como se de um puzzle se tratasse. As exposições que apresenta na Horta das Artes, muitas vão-se renovando e continuando, porque o tema lhe agrada e encontra sempre forma de melhorar aquilo que exprimiu. Isso acontece com a actual, intitulada “Herotices”, “sim, sempre fui virado para o herótico mas agora estou mais descarado!!!” (risos), e se mistura com uma série de outros trabalhos que enchem as paredes da “oficina”, trabalhos seus e trabalhos de outros que por ali passaram. Em simultâneo existe outra exposição, permanente, de gravura (sempre a renovar-se, claro!), esta sobre a música popular, tema que trabalha neste instante também em desenho, aguadas e técnicas mistas e sobre a qual tem umas “esculturazitas” de barro.

Aprende a tocar viola campaniça… pelo telefone!?


Detentor de aguçado espírito crítico e social preocupa-se com as raízes dos hábitos e costumes das gentes que estão na vida. Participou em inúmeros Congressos e Colóquios ligados à cultura e música popular. Investiga nessa área. Tem vários trabalhos publicados como “ Simbologia do Povo Português”, “Música, dança e gastronomia medievais” entre outros publicados e inéditos. Teve diversos cargos públicos. Fez várias recolhas de música popular e desde 1976 tem pertencido a diversos grupos de música popular portuguesa, nalguns como coordenador. Ainda hoje pertence ao Grupo de Música Popular Erva Doce da Casa do Povo de Alte (voz, bandolim, cavaquinho e percussão). “Agora deu-me para aprender a tocar viola campaniça.” Como aprende? “Pelo telefone!” Olha para mim, divertido, “com um amigo meu de Évora, o Virgílio Neve, vou-lhe perguntando coisas e ele vai-me explicando.”
Para o Teatro, Daniel Vieira elaborou cenários, foi actor, encenador, agente cultural, e fundador do Teatro da Estrada, um projecto que já vinha de Messines, criado por Pedro Ramos e outros. Continuou-o e adaptou-o juntamente com a Célia Martins “uma força da natureza. Ela é assim como eu, dá tudo pela Arte, até recusou pertencer a um grupo de teatro onde poderia ganhar dinheiro para se dedicar a isto onde o que ganha é trabalho.”
O projecto Teatro de Estrada funciona dentro da Horta das Artes que “começou de uma maneira muito simples. Quando acabei o curso de Belas Artes fiquei por lá a trabalhar em gravura com o Mestre Teixeira Lopes e com a professora Matilde Marçal. De vez em quando lembrava-me de Alte e tinha as minhas confissões. O Teixeira Lopes perguntou-me se eu não tinha cá uma casa velha onde pudesse fazer uma oficina de gravura. Inicialmente isto era só um armazém onde o meu pai tinha as alfarrobas e as amêndoas. Ele deixou de apanhar alfarroba e amêndoa e eu roubei-lhe a casa. (Risos) Fiz a minha primeira oficina! Depois houve aqui um curso intitulado ‘Pensar Alte’ com sociólogos e arquitectos de vários países. A Isabel Raposo era a comandante da malta. Fez-se um estudo bastante completo e interessante sobre como reconstruir a aldeia. A Isabel Raposo escreveu dois livros, ‘Alte e a roda do tempo’, que conta a história de Alte e da sua arquitectura e outro sobre a maneira de reconstruir a aldeia. O livro foi para a Câmara Municipal de Loulé e durante três ou quatro anos esteve guardado em caixotes. Depois de terem feito estes mamarrachos todos é que fizeram o lançamento do livro!?” Nessa altura constatou-se que era necessário criar uma escola. Havia falta de terreno. “Se fizerem uma escola dedicada às artes gráficas, eu dou o terreno. A Câmara não quis! Então eu pedi dinheiro emprestado, a Isabel Raposo fez o projecto, ainda me vi à rasca com isso, cheguei a dever dinheiro a dois bancos ao mesmo tempo. Mas cá está a Horta das Artes” com exposições e outras actividades culturais que abre diariamente das 11 às 19 horas, não apenas aos visitantes mas também a quem queira ir para lá aprender e trabalhar.
E… fica afinal quase tudo por dizer sobre este homem onde a vida pulsa, lançada em diversas direcções que se completam, em permanente renovação.


Paula Ferro

Entrevista/reportagem com Susana Nunes






in "Postal do Algarve"





Novembro de 2007






"Não há nada mais fútil, mais falso, mais vão, nada mais necessário que o teatro."
Louis Jouvet






Já fiz praticamente de tudo que se possa fazer em teatro.











O seu percurso como actriz foi muito autodidacta.



Susana Nunes sempre gostou muito de cinema e de música mas o teatro passava-lhe ao lado até que veio estudar engenharia biotecnológica para a Universidade do Algarve. No primeiro ano inscreveu-se num “curso de iniciação teatral do SIN-CERA. Tinha 19 anos”, era um curso “de três meses, expressão dramática, o geral, o básico para pessoas que quisessem ter o primeiro contacto com o teatro” orientado por “Vítor Zambujo que é actor e professor. Trabalha com o CENDREV em Évora, é um dos manipuladores dos bonecos de Santo Aleixo. No final fizemos uma pequena apresentação pública a partir de uns textos de Karl Valentim, e adorei aquilo, foi a primeira vez que tomei contacto com aquele tipo de exercícios e foi toda uma nova série de possibilidades que se abriram ali. Foi uma sensação muito clara porque foi muito orgânica, uma coisa desproporcionada em relação àquilo que via que os meus colegas estavam a sentir. Não tinha memória de ter feito alguma outra coisa na minha vida que me tivesse dado tanto gozo, que me tivesse dado tanta alegria fazer e percebi que independentemente do curso que a minha vida viesse a tomar, ia ter de arranjar maneira de continuar ligada ao teatro porque simplesmente não havia outra hipótese. Continuei a colaborar com o SINC-ERA e fiz de tudo: sonoplastia, operação técnica de luz, de som… fui fazendo workshops de teatro, de movimento, de dança… coisas promovidas pelo SIN-CERA e por outras entidades em Faro, em Lisboa… Fui complementando a minha formação, comecei a ver espectáculos, tudo o que tinha possibilidade de ver, aqui, fora, onde quer que fosse. Fui-me envolvendo de uma forma cada vez mais intensa com o SIN-CERA, estive na direcção durante quatro anos e a trabalhar como intérprete, sonoplasta, produtora… durante seis anos. Já fiz praticamente de tudo aquilo que consigo lembrar-me que se possa fazer em teatro. Não fiz direcção, nunca parti para um projecto de raiz para encenar e assumir inteiramente a responsabilidade artistica de um trabalho. Para já não é o que me interessa, também porque não me sinto preparada para o fazer. Acho que convém ir acumulando experiências, ver o trabalho dos outros, observar, conversar, ler, e perceber se tenho alguma coisa para dizer e de que forma é que o posso fazer…”


O teatro não pode apartar-se de uma certa responsabilidade.


Quando está a representar “a sensação que considero mais interessante experimentar é a dualidade. Conseguir estar em dois espaços, em dois estados de consciência em simultâneo…é uma viagem que permite abstrairmo-nos completamente de tudo. Um estado de concentração… essa possibilidade de me conseguir fechar sobre uma coisa, sobre um objecto, sobre algo que estou a fazer, mas em que há um publico, um receptor muito concreto”.
O seu percurso como actriz “passou muito pela auto descoberta, desenvolver o auto conhecimento, foi de uma forma muito autodidacta”.
Para Susana Nunes “o teatro não pode apartar-se de uma certa responsabilidade. Considero que a experiência é intensa para o público, sempre. O teatro é eficaz, de uma forma sub-reptícia para que as pessoas se encontrem e se confrontem com as suas próprias emoções. Essa eficácia e esse poder não podem ser usados de uma forma inocente e quem o faz, tem que saber que tem essa responsabilidade. O teatro pode ser um veículo transformador, de desbloqueio, mas não tem que ser nada massivo. Aqueles pequenos dados que se vão introduzindo, deixando sementes... trabalhar com essa subtileza pode ser mais eficaz do que estar a ‘bandeirar’ explicitamente determinadas ideias”. Creio que o essencial é gerar diferenciação, confrontar o público com novos dados, novas perspectivas e deixá-lo ir para casa germinar”.






Representar em interacção com o público é um bocadinho como estar em queda livre.


É muito diferente representar uma peça onde o público não intervém directamente e representar quando existe contracena com o público, como acontece muitas vezes com o grupo Al-MasRAH, do qual Susana Nunes também é fundadora. Representar em interacção com o público é “um bocadinho como estar em queda livre. Ainda que não tenhamos que esperar uma resposta do público, olha-se para as pessoas e percebe-se exactamente o que elas estão a sentir, percebem-se as emoções, os pensamentos, as reacções, em esgares muito pequeninos, em momentos muito pequeninos de expressão. Se calhar as pessoas pensam que estamos alheios ao que elas estão a sentir, que criamos uma esfera para nos protegermos e não deixarmos que isso nos perturbe ou distraia, mas não, nós estamos atentos, presentes e altamente sensíveis a esse estímulo. Esse jogo é muito interessante, a possibilidade de o espectador, de um momento para o outro, tomar a coisa nas suas mãos, alterar o curso, introduzir um dado novo, agora mando-te esta, o que é que fazes com isto? Não posso ignorar isto senão estrago o jogo. Só que nunca acontece, e é essa linha ténue que o actor vai percorrendo porque sabe que o espectador a maior parte das vezes não tem coragem para o fazer, há uma espécie de intimidação, se bem que a possibilidade está sempre presente. Enquanto espectadora sinto muito isso. Quando estou numa plateia e sinto que de repente os actores vão arrancar para o público, vão agarrar alguém pela mão, ou que me vão perguntar alguma coisa, eu fujo! Não sei bem porquê. Se calhar, há uma certa perda da inocência quando se conhece o processo de dentro, e depois se parte para o lugar de espectador. Parte-se do princípio que o actor precisa dessa inocência para fazer o jogo funcionar, e se calhar eu não lhe vou dar isso, só vou tornar a coisa mais complicada”. Quando trabalha directamente com o público, “há essencialmente essa troca e uma sensação muito clara que as pessoas são altamente generosas, receptivas e estão cheias de vontade de participar. Isso é muito evidente e muito estimulante”.




Teatro e expressão dramática não são a mesma coisa.


Susana Nunes também é formadora, “a experiência que tenho é só ao nível da expressão dramática e com um público muito jovem, entre os seis e os doze anos, essencialmente. Teatro e expressão dramática não são a mesma coisa. Expressão dramática, não tem por propósito a criação de um objecto teatral formal para mostrar a um público. É uma disciplina com exercícios próprios, uma ferramenta de trabalho para o teatro mas existe fora do teatro. Existe agora no currículo de escolas secundárias, por exemplo, e independentemente de os alunos virem a ser actores ou não, expressão dramática é útil para a vida”. Para as crianças, “basicamente é o exercício da imaginação, estimular a imaginação. E, é auto conhecimento, o contacto com o outro, o conhecimento dos outros, o conhecimento do seu corpo e da sua expressão particular, dos seus potenciais e limites. Ajuda a inter agir e é partir daí que se cresce. Qualquer pequena brincadeira de crianças tem todo esse processo, eles fazem expressão dramática naturalmente, criam personagens instintivamente, imitam o que vêem os adultos fazer, em casa, na televisão, os professores… O que nós também podemos fazer é trazer questões da vida deles, conflitos, problemas, evidenciar isso de alguma forma no trabalho de grupo e ajudá-los a reflectir para encontrarem soluções”.
A expressão dramática, seja para crianças ou para adultos, ajuda o individuo a tornar-se mais assertivo na medida em que “desenvolver a empatia pelo outro, conhecer o outro, desenvolver o auto conhecimento… predispõe a entender o meio em que se encontra. Se a pessoa se conhecer bem, sabe lidar melhor com os seus próprios ‘reveses’, aceita melhor o que a vida lhe traz, torna-se mais responsável pelos seus gestos e pelas circunstâncias em que se encontra. Fica mais perto de si própria e por isso também mais perto dos outros e do mundo”.

Paula Ferro

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Entrevista/reportagem com Marta Caldas







in ".S" - Caderno de Artes

do Postal do Algarve

Janeiro de 2009








“Temos a arte para não morrer da verdade.”in “Vontade de Poder” de Friedrich Nietzsche







Uma coisa com que não me preocupo nada é com a função da arte, espero que ela não funcione

Marta Caldas nasceu em Lisboa em 1982. Estudou música e teatro. Frequentou o curso de História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e completou o Plano de Estudos Completo do Ar. – Co. Participou de exposições colectivas e colaborou em projectos de artistas como Thierry Simões e Armanda Duarte.
A sua primeira exposição individual está patente ao público na Artadentro em Faro até dia 31 de Janeiro.
Presentemente trabalha na tese de mestrado em Artes Visuais na Universidade de Évora.


A forma como construo os desenhos faz com que cada um deles não tenha um parceiro obrigatório.
Onde se inicia a sua relação com as artes?
Em termos de prática das artes plásticas começou no Ar-Co mas a atenção para certas coisas já tinha começado antes, na música e no teatro. Comecei aos treze anos a fazer teatro. Entretanto entrei no Conservatório de Música, fiz um ano de violoncelo que interrompi porque entrei na Escola Superior de Teatro para fazer formação de actor. Posteriormente abandonei o Conservatório e fui para o Ar-Co. Fiz um ano de pintura e percebi que não era de todo a pintura. Não tenho sensibilidade à cor e comecei a aperceber-me que aquilo que fazia na pintura era desenho. Foi um erro de inscrição, no fundo devia ter-me inscrito em desenho e inscrevi-me em pintura por não saber os espaços de cada coisa e que o meu espaço era o desenho e não a pintura.


São dois espaços assim tão diferentes que não se podem misturar?Para mim não. É uma questão de superfície e matéria. A tinta não me serve, nunca me serviu. Com o desenho é completamente diferente. Mudei a tempo. No segundo ano de Ar-Co ainda fiz um semestre de pintura mas percebi que não era aquilo e passei para o desenho que era de facto o sítio onde estava bem. Aí parei. Entrei para o Ar-Co com dezoito anos e mudei muito. Houve uma mudança muito grande principalmente na forma como eu me coloco e como uso as coisas.

Desenho sempre na horizontal e isso implica na visão que tenho dos desenhos e até na forma como eles são desenhados.
Participou de que exposições?
As exposições que fiz foram sobretudo no Ar-Co. A primeira foi no terceiro ano de desenho na Quinta de S. Miguel em Almada na exposição de Verão. Até terminar o Ar-Co, expus outra vez na Quinta de S. Miguel e na exposição de finalistas no Júlio de Matos.
Na Páscoa integrei uma exposição colectiva organizada pela Andreia Brandão. Ela resolveu juntar um grupo de pessoas que por algum motivo achou que tinham alguma afinidade, muitas delas nem se conheciam mas havia algo que permitia construir uma exposição sem que à partida houvesse um enunciado que nos ligasse, ou que servisse de ponto de partida para os nossos trabalhos. Eu não conhecia muitos dos trabalhos até os ver no espaço. Não houve nunca uma conversa, não havia um tema, não havia nada por trás que unisse os trabalhos de toda a gente. Essa foi a primeira exposição autónoma, sem estar ligada a uma escola. Foi no Espaço Avenida. Tínhamos o espaço mas tudo o resto foi preparado por nós. Sorri com um brilho fresco e contagiante. Correu bem! Em Faro é a segunda. Mas o ritmo não pode ser muito mais acelerado do que este. Não faria sentido para mim fazer mais exposições do que as que fiz, acho que foram as justas.
Em relação a esta, na Artadentro, combinou-se a exposição e só depois é que vi o espaço. Tive algum tempo para pensar nela. Muitas possibilidades foram acontecendo na minha cabeça. Fui fazendo o meu trabalho normalmente e depois cheguei ao momento em que percebi que os trabalhos iam ser expostos juntos e tive de perceber se eles podiam ou não estar juntos.
Aquele espaço de galeria é rectangular, tem uma escada e a sala de cima. Sempre percebi que não queria dois níveis de exposição. A forma como construo os desenhos faz com que cada um deles não tenha um parceiro obrigatório. Não faço séries, isso implica que no momento em que os trabalhos são expostos seja um bocadinho complicado encontrar o parceiro. A forma como são vistos implica em cada um deles e pode transformar muito. Quando cheguei ao ponto em que percebi que tinha que começar a juntar os trabalhos que tinha feito, de escolher aquilo que ia ser mostrado, como é que ia ser mostrado, com qual é que ia ser mostrado, é que surgiu a disposição que está lá, um desenho numa mesa e dois desenhos nas paredes.

A mesa faz parte do trabalho, também foi feita por si.Sim, mas não dou a importância de objecto à mesa. A mesa é como a moldura, é um auxiliar de exposição.
O ser mostrado na horizontal é que tem importância para mim porque tem a ver com a maneira como os desenhos são feitos. Desenho sempre na horizontal e isso implica na visão que tenho dos desenhos e até na forma como eles são desenhados. Ao levantá-los, eles ganham outro ponto de vista. Há uns que se permitem a ser levantados, os que estão nas molduras permitem-se a isso, outros não se permitem.
Não é uma regra, não é qualquer coisa que eu imponho à partida mas normalmente coloco-os na horizontal. Há uma relação completamente diferente quando o desenho está levantado na parede ou quando está na horizontal, há uma proximidade completamente diferente com o corpo do desenho. Quando se entra numa galeria e o desenho está exposto na parede não precisamos de chegar ao pé dele para o ver. O facto de estar numa mesa implica um aproximar da mesa e o dobrar para ver o desenho. Isso é completamente diferente.
Quando percebi que aquele era o grupo de coisas que fazia sentido expor porque havia uma união entre elas, tive de jogar com o que vai ser visto ao pé do quê e como é que pode ser visto. O facto de haver dois planos, o da mesa e das molduras, é importante. Não é possível ver o que está na mesa e o que está na parede ao mesmo tempo, implicam tempos de visão diferentes. Quando se entra na sala só se vê os desenhos da parede. O desenho da mesa só é visto quando se chega ao pé dele. Isso foi um elemento que apareceu em relação àquele espaço onde as coisas tinham que olhar obrigatoriamente umas para as outras porque são só paredes, não há recantos nem divisões, é uma sala ampla. Houve alturas em que pensei que só podia expor um desenho. Isso aconteceu no Espaço Avenida, numa das salas só expus um desenho porque tinha de estar sozinho.
Porquê a “queda” como título da exposição?Olha-me a rir, com ar divertido.
O título não é a “queda” (de cair).
Não?Não! Continua a rir da minha confusão. A queda (de cair) ou a queda (de quieta). O título da exposição é a queda (de quieta). A queda (de cair) não me interessa para nada. Interessou-me a palavra por ter esse duplo sentido mas o título só passa a existir a partir do momento em que é lido porque se torna uma opção em relação a ele, até lá, é uma palavra que tem os dois significados. No fundo quem escolhe o título da exposição é quem lê, não sou eu.


Depender do desenho para sobreviver é muito triste.
Também existe texto.
Sim. Descobri que havia uma série de coisas escritas que no início me chegava como uma confusão que me fazia trabalhar. Depois percebi que a confusão não era propriamente uma confusão, era qualquer coisa que existia naquelas frases que escapava à própria frase mas à qual eu conseguia aceder num plano qualquer da frase que não existia na própria frase e que era isso que me interessava, era isso que me fazia desenhar.
Faz uma pausa, baixa a cabeça como quem olha para dentro, abre-se em sorriso que rebenta num gargalhar quase infantil e olha-me, com ar traquina. Depois deixei de roubar frases e passei a ser eu a escrevê-las.

Roubava frases?Sim, roubava de livros, normalmente rearranjava-as, tirava aquilo que as contextualizava, tentava pô-las como frases auto-suficientes que não tinham necessariamente que vir na sequência de outras.

Trabalha independentemente da arte?Sim, sim.

A arte é paralela.O trabalho é que é paralelo. Sorri, mas há segurança e serenidade no seu olhar frontal e cheio de brilho. Dar umas aulas é uma necessidade, preciso disso para comer. Depender do desenho para sobreviver é muito triste. Acho que não há grande hipótese ou se calhar não quero construir essa hipótese. Como é que isso se faz? Não faço a menor ideia. Isso deve implicar fazer mais do que “x” desenhos por mês e não tenho muita vontade de pensar que desenhar tem a ver com a minha sobrevivência.

No fundo onde é que nasce a arte, o que é que é isso da arte?Ai não, não, não! Olha-me com um ar divertido, acenando com as mãos como quem afasta o assunto. Isso não me interessa nada. Sem deixar de rir olha-me de frente com ar seguro embora solto. Não preciso de ter essa resposta para fazer o que quer que seja. É-me indiferente ter ou não ter a resposta, até porque só ter uma resposta é coisa pouca, prefiro ter mais do que uma e ir variando. Um dia posso acordar com uma e outro dia acordar com outra. Prefiro isso do que ter uma espécie de revelação de revista.

Acha que a arte tem uma função social?Espero bem que não. Faz uma pausa. Está nitidamente divertida com as minhas questões. Ter função social? Não sei. Para uns tem uma grande função, ganham imenso dinheiro com isso. Ri, solta. Uma coisa com que também não me preocupo nada é com a função da arte, espero que ela não funcione.

Num momento destes em que se fala tanto em crise, há desemprego, há pessoas que não têm como alimentar os filhos, acha que há o direito de se fazer, comprar e vender arte?Que eu tenha dado por isso não tenho nada a ver com esta crise, não a provoquei, não a pedi. De repente olha-me com um ar sério embora não deixe de sorrir. Agora, se me sinto uma sortuda por poder estar a desenhar enquanto há gente a morrer de fome? Sim, sinto! Mas também acho que essas pessoas vão continuar a morrer de fome mesmo que eu pare de desenhar e esse é que é o problema.


Paula Ferro


Entrevista/reportagem com Jorge Rodrigues

in ".S" - Caderno de Artes
do "Postal do Algarve"
Fevereiro de 2009




A arte não imita, interpreta.”
in "Note Azzurre" de Carlo Dossi



Jorge Rodrigues
persistir e acreditar na própria genialidade


Jorge Rodrigues cresceu na Raposeira, uma terrinha a cerca de 20Kms de Lagos onde o mistério está instalado no ar e o peso da história reside nos gestos das gentes que a habitam. Desde que se conhece, o desenho e a pintura fazem parte do seu quotidiano. “É uma coisa natural em mim”. É curioso, gosta de experimentar. Enquanto aluno do secundário fez teatro e esteve ligado a diversas iniciativas que se prendiam com as artes plásticas. Depois, “Lagos, sempre teve muita força a nível das artes, muitos artistas passaram por lá”. Gosta de aprender com quem sabe, por isso colaborou com artistas de renome internacional, “o artista aprende com o mestre. As escolas afinal são recentes”.
No início da década de 90 decidiu estudar artes e a partir dos encontros que foi tendo apercebeu-se “que realmente no Ar.Co é que estavam os grandes mestres”.
Em 1994 era aluno do Ar.Co (Centro de Arte e Comunicação Visual) em Lisboa, onde se entregou afincadamente ao trabalho.
“Quando vou pintar, penso sempre que esta tela vai ser a melhor de todas”. Cria metas a si próprio, estimula-se, “tenho que ter um objectivo alto para me motivar e conseguir trabalhar”.
A sua máxima é: “quanto mais trabalhar, melhor conseguirei atingir os meus objectivos”. Não se permite a preguiças e acredita que “a inspiração não faz nada. Dá ideias, e é com o trabalho que ela se espevita. A inspiração acontece com o músculo do trabalho e depois torna-se viciante. Não consigo passar muitos dias sem pintar”.
Em 2000 terminou o Curso avançado de Artes Plásticas no Ar.Co e desde então já participou de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro. Está representado em várias colecções públicas e privadas das quais se citam o Banco de Espanha, a Galeria Filomena Soares em Lisboa, a Fundação EDP, a Fundação Arzpar Szenes/Vieira da Silva em Lisboa e o Hammersith Hospital em Londres.

O azul do silêncio, do infinito, do caminho para a claridade

Neste momento está patente ao público uma exposição de Jorge Rodrigues no Centro Cultural de Lagos intitulada “Silencescapes”.
“A exposição apresenta-alberga alguns trabalhos realizados recentemente. Trinta desenhos em formatos idênticos que foram criados para este projecto e percorrem metricamente todo o espaço. Estes são confrontados por pinturas sobre tela em formato maior que, cromaticamente, oferecem ao olho de quem passa e ao espaço, a consagração da cor. Estas telas levam-nos o caminhar até à última sala onde estão seis desenhos de referência, de trajectória”, obras mais antigas que nos fazem entender um percurso condutor, o caminho de um sentir. E é aqui, afinal, que começa a exposição, “quando se faz o percurso em sentido contrário”. À porta, “estrategicamente colocada à saída que é entrada”, uma tela, “a primeira e a última imagem que se tem da exposição” e “funciona como quadro eléctrico onde tudo se liga energeticamente”.
O propósito da exposição são os trabalhos sobre papel, são eles que “ lhe dão o título. Os outros complementam-nos embora também façam parte dessa solução”. Estes, “cada um tem o seu espaço, tempo e decomposição diferentes que formam ritmos entre si e no todo. Depois há a cor, de silêncio, a mesma cor de milésimas variações de tonalidade, o zoom da escala de cada cor. O azul, que os une em sintonia, aquele azul, das profundezas da cor, da transparência, do vazio exacto, puro e frio. O azul do silêncio, do infinito, do caminho para a claridade”.
Os azuis de Jorge Rodrigues deixam-nos presos a um tempo sem tempo, a um espaço sem espaço, num navegar em estado zen que nos transporta para dentro e para fora em simultâneo. E em paz.

Definir a arte é colocar-lhe limites e ela não os tem.

“O meu próprio olhar como fazedor de pintura e inventor de imagens começou pela paisagem. No início a terra enchia a tela e depois o céu foi crescendo. Fui dando mais importância ao céu, e depois houve uma altura em que deixei de me preocupar”, sorri e um pedaço do céu assoma-se do seu olhar. “É como o mapa da evolução humana, o homem vai-se levantando, vai-se aproximando do céu…”, faz o gesto de como o macaco se faz homem, e abre os braços, como quem já sabe voar.
Mas a sua terra é muito importante para a poética do seu trabalho, para a poética do seu sentir. A terra onde foi aprendendo a ser e a olhar “é finisterra em fim de mundo, é a divina comédia do vento. Onde o mar se ergue, determinante, explodindo de alegria, ao esculpir suas pedras como se de um espectáculo pirotécnico se tratasse”. Há ventos coloridos a correr pelos pigmentos do olhar. “A adrenalina das nuvens, as nuvens das ilusões, do anunciar. O movimento não uniforme, acelerado”. Pequenas pausas acontecem mas as imagens quase se atropelam e adiantam a melodia da voz. “A vegetação que se agita espevitadamente, direccionando e inclinando a verticalidade dos seus traços, proclamando o caminho pró sul”. Um cintilar interior invade o olhar de sorrir. “Em que o fantástico faz 360 graus no que é possível a retina reter em cada ser humano ou ‘coisa’ que capte imagem. Valores tempestivamente intemporais, que sinto de sentir e funcionam na minha pele, no meu corpo, quando me aproximo, e na memória, quando me afasto”.
Este sentir embala-lhe as pinceladas e as suas obras deixam em nós a sensação de uma espécie de concórdia acesa.
O palmilhar do seu trabalho “é espontâneo”. Tanto pode ser “devida e minuciosamente projectado” como pode acontecer “sem projecto algum”.
Para o Jorge, “a estética é formada/dividida por conceitos como beleza, equilíbrio, harmonia, forma. Conceitos que, ao longo da história, sempre estiveram intimamente ligados à arte”. Mas a arte é muito mais do que isso. “É valor acrescentado, é habilidade, consciência…” e não se define, porque “definir equivale a delimitar. Definir a arte é colocar-lhe limites e ela não os tem. Jamais poderia tê-los”.
O seu trabalho prende-se com a sua “(sobre) vivência mental e física enquanto ser humano. O ser conduzido por absoluta necessidade interior do fazer, do continuar”.
O seu lema é “ser perseverante, estar preparado para o reagir do tempo, das massas planetárias, mais, menos, muito ou pouco interessadas ou esclarecidas, que de algum modo têm acesso ao trabalho”.
Acredita que “há um artista em cada homem” e o mais importante “é persistir e acreditar na própria genialidade”.


Paula Ferro

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Entrevista com Margarida Palma

in "Postal do Algarve"
Novembro de 2008



“A arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou um fantasma: e quem aprecia a arte volta o olhar para o ponto que o artista lhe indicou, observa pela fenda que este lhe abriu e reproduz dentro de si aquela imagem”.

in “Breviário de Estética” de Benedetto Croce





"Vejo a arte como uma coisa do dia a dia."




O encontro com Bartolomeu dos Santos marcou a sua vida




Margarida Palma nasceu em Lisboa mas os três primeiros anos de Pintura em Belas Artes foram feitos no Porto, onde o ensino era “muito clássico, muito formal. Quatro horas de pintura três vezes por semana, várias disciplinas de desenho com objectivos diferentes. Essa ênfase muito grande no desenho está bem vincada no meu trabalho”.
Termina o curso em Lisboa e inicia-se uma nova fase da sua vida.
“Comecei por trabalhar no bar da Casa das Artes em Tavira”. Nesse dia conhece Bartolomeu dos Santos que “ia inaugurar uma exposição com alunos das diversas escolas por onde tinha passado como professor. O projecto chamava-se Caleidoscópio”. Este encontro marca definitivamente a sua vida. “Foi ele quem me incentivou a fazer o mestrado em Londres e também a voltar para cá”.
Bartolomeu dos Santos era cliente assíduo da Casa das Artes. “Fui conhecendo muita gente mas o Bartolomeu era uma figura constante. Um dia ele soube que eu era aluna de pintura e, generoso como de costume, convidou-me para experimentar a fazer gravura, logo ali, ao virar da esquina da Casa das Artes. E foi um momento mágico da minha vida. Quando vi uma primeira prova de uma gravura percebi que tinha que fazer aquilo. Então, primeiro fiz uma, depois outra, e comecei a fazer gravura com alguma regularidade”.
Um dia Bartolomeu dos Santos convida-a para ser sua assistente num registo mais regular. “Ele vinha a Portugal com frequência e eu ia a Tavira trabalhar com ele. O trabalho era muito intenso. Mas apesar da diferença de idades e de percursos, havia uma afinidade e um entendimento muito grandes”.
Bartolomeu continuou a transmitir-lhe conhecimentos e “a certa altura achou que já não fazia sentido eu estar aqui. Começou a incentivar-me para tirar um mestrado em Londres”. Margarida termina o mestrado em gravura na Camberwell College Of Arts em 2004. “Comecei a expor mais regularmente, criei uma rede de conhecimentos e consegui mostrar as minhas coisas noutros países, então o Bartolomeu começou a insistir para eu vir para cá pois era muito importante não perder o contacto com a realidade do meu país”.
No seu trabalho está patente a vivência como mulher portuguesa, “apesar de ter estado fora durante cinco anos, um período considerável numa vida de trinta, sinto-me profundamente portuguesa e sei que há coisas que preciso de explorar nessa identidade”.
Tavira marca-a como pessoa e como artista, “foi ai que se deu uma série de acontecimentos importantes. Foi ai que conheci o Bartolomeu e ai se passa muito da minha história pessoal. Cresci em Lisboa mas as férias eram sempre passadas em Tavira”.

A parte positiva da minha vida passou por Tavira

As vivências que as paisagens solicitam, que os lugares permitem, assim como o modo como usufruímos dos espaços, esculpe forma em nós, cria chão para as nossas aderências e opções no futuro.
“A parte positiva da minha vida passou por Tavira. O tempo para gozar as coisas, para sentir. Passou pela praia quando a ilha era uma coisa fantástica. Havia um microcosmo nas nossas brincadeiras que passava completamente despercebido a qualquer outra pessoa e que numa escala e uma natureza marcou o meu trabalho. Gosto desta dimensão íntima das pequenas coisas que ninguém vê”.
As raízes bem vincadas no solo, plantam gestos no fluir do nosso quotidiano actual. Selecções do real abrigam-se no nosso olhar, através das histórias de outros, onde o mesmo sangue dava outra forma à vida, no momento da habitação do tempo.
"O meu avô era de Santo Estêvão e a minha avó é de Santa Catarina. A família do meu pai tem uma história muito próxima da terra. Ficou-me o cheiro das alfarrobas e dos figos. Ouvir os grilos e as cigarras ao calor… é uma coisa tão intensa! Só conseguiria explicar isto a alguém que passou por lá e sentiu”.
Aqueles ensinamentos que passam de geração em geração e não são imunes à transformação. “Tinha uma bisavó a quem chamávamos a avó velhinha. Ninguém sabia exactamente qual a idade dela. Contava muitas histórias, as suas experiências, que para nós eram realmente do outro mundo. Outra época, outro manifesto. Essas narrativas da minha bisavó, as da minha avó, e as do meu pai, marcaram-me profundamente”.

Não seria quem sou hoje se não tivesse vivido e brincado nestes sítios

O passado só pode estar vivo dentro da transformação e da consciência da alteração que cada decisão individual implica na direcção de um percurso que pode ser de todos. “Acho que as coisas não se devem preservar como um boneco mas há memórias a guardar e tenho pena que se tenha perdido muita coisa genuína no Algarve”.
Sente-se feliz por ter tido acesso ao contacto directo, por ter convivido com os gestos adequados ao que era a vida neste local onde tudo se conjuga: paisagem, arquitectura, hábitos, crenças, sabores, cheiros, objectos e rostos. “Não seria quem sou hoje se não tivesse vivido e brincado nestes sítios. O Mediterrâneo tem esta força para quem o viveu, para quem o sentiu como criança. Marca muito mais do que a vida em Lisboa”.
Nós somos um resultado das nossas vivências, muitas delas prendem-se com os espaços que habitámos, são consequência dos hábitos e práticas daqueles que nos são mais chegados, daqueles com quem, no fundo, aprendemos a ser.
A sua avó era costureira e “os processos manuais de costura são uma coisa fundamental no meu trabalho”.
Passado e presente tocam-se através de instantes vividos que permanecem suspensos e residem em objectos que atravessaram o tempo, gerando hoje outras acções, outros começos.
“Parti para uma série de trabalhos que têm como base uma boneca que fiz, quando tinha onze anos, para oferecer à minha mãe. Uma boneca estranhíssima, totalmente disforme, com um corpo estranho. Mas eu achava a boneca perfeita quando a fiz. Tem um sorriso enorme, os olhos são bordados, o cabelo é linha mas a boca é desenhada. Fiz a boneca e coloquei-a numa caixa que na altura também achava perfeita e que agora acho incrivelmente mal feita. A minha mãe preservou-a mas só depois dela morrer é que voltei a pegar na boneca. Comecei a usá-la como uma espécie de metáfora para o corpo e para a identidade, para a tentativa de os definir. Ser perfeito ou não, depende do ponto de vista, depende da nossa percepção da realidade. E isso é um elemento que tem aparecido muito frequentemente no meu trabalho”.
O mundo estimula-nos, obriga-nos a uma adaptação permanente à sua transformação contínua, mas “nós temos as nossas ferramentas, físicas e emocionais, para nos conseguirmos defender e adaptar. Essa adaptação pode ser microscópica ou macroscópica, pode partir do interior ou do exterior mas temos que encontrar novas fórmulas para nós mesmos. É isso que essa boneca me tem trazido como ponto de partida para o meu trabalho, essa ideia de readaptação à realidade”.




Recolhia sobretudo uma mitologia familiar

A exposição que se encontra neste momento no Palácio da Galeria “começa por ser um desafio do Dr. Jorge Queiroz. Perguntou-me se eu gostaria de fazer uma exposição relacionada com ‘Tavira Patrimónios do Mar’. Explicou-me quais os princípios e no que é que ia constar essa exposição. Deveria haver uma relação entre o meu trabalho como artista e a minha ligação a Tavira. Deveria haver um paralelismo entre um conceito museológico e a Arte Contemporânea”.
O trabalho nasce então da partilha de vivências entre três gerações. “A partir de conversas com o meu pai e a minha avó comecei a fazer, até por curiosidade, uma espécie de árvore genealógica da família, mais no sentido figurado porque aquilo que me interessava não eram as relações e as linhas directas e indirectas, o que me interessava eram as histórias de cada uma das personagens. Para cada pessoa eu criava um balão enorme ao lado com as histórias. Recolhia sobretudo uma mitologia familiar”.
E o caminho surge de uma prática simples entre mãe e filho. “Começo a valorizar uma história que já tinha ouvido: o meu pai a aprender a ler e a minha avó, que não sabe ler, ambos ao serão. Ela a bordar e ele a ler para ela, à luz de um candeeirozinho a óleo, julgo eu. Mas ele lia um livro que não tinha as últimas páginas, que não tinha fim. E eles leram aquele livro uma série de vezes. Acho isto uma coisa extraordinária! Se a história não tem fim, porque a leram tantas vezes?”
A resolução de uma falta conduziu à prática da multiplicidade de possibilidades que o devir contém e “este exercício de projectar um final, interessou-me muito. Porque é realmente aquela ideia do fio quebrado e das múltiplas possibilidades, das reformulações, da história que pode ser aquilo que nós quisermos”.


Pretendi reflectir um pouco sobre o que é que nós guardamos, o que é que nós depois utilizamos no nosso processo, na nossa vida.

A história, que se constrói a partir das pequenas histórias, das histórias vividas por cada personagem que compõe as gentes dum determinado local. No fundo, as histórias individuais que se entrecruzam é que são o miolo da história.
“O que apresento é um paralelo entre o que é o museu e os princípios museológicos que estão por detrás daquilo que está feito na outra exposição, e uma espécie de ‘paramuseu’ que é o que eu fiz, que é o meu museu, a minha memória, a minha visão das coisas”.
A partilha é fundamental. Para que exista partilha, nalgum ponto, tem que existir identificação. “Há um lado da identificação que era muito importante alcançar: conseguir que o trabalho fizesse sentido para outras pessoas dali, de Tavira. As exposições atingem o seu objectivo quando uma pessoa se me dirige e percebo que o trabalho chegou lá, que lhe tocou de algum modo, que a pessoa reflectiu um bocadinho que seja sobre aquilo que viu”. Objectivo que consegue atingir. “Houve uma senhora que me disse: ‘obrigada por me ter deixado percorrer as suas memórias’, e fez mais alguns comentários evidenciando claramente essa identificação com o que viu”.
É importante perceber o que as coisas são porque a nossa acção sobre o mundo é transformadora, seja ela consciente ou não, da transformação que propicia. É importante ter consciência disso para percebermos o que fazemos com os bocados de mundo que nos vêm parar às mãos.
“Pretendi reflectir um pouco sobre o que é que nós guardamos, o que é que nós depois utilizamos no nosso processo, na nossa vida, na nossa personalidade. Como é que recebemos uma coisa e depois a transformamos noutra coisa qualquer”.
E, como quem arranca um fruto de uma das árvores do pomar dos seus avós, saboreia o conteúdo de “uma frase da Tracey Emin que acho muito importante: ‘não interessa o que uma pessoa tem ou recebe dos outros, o que interessa é o que uma pessoa faz com aquilo que recebe dos outros’. Como é que utilizamos aquilo que chega até nós para evoluirmos. A arte passa muito por aí. Conseguirmos compreender aquilo que chega até nós, reformularmos e darmos uma visão do mundo tal como o percebemos”.
De algum modo, ser artista é “continuar a pertencer a essa cadeia de eventos, de receber e dar algo. Não vejo a arte como uma coisa sagrada, vejo-a mais como uma coisa do dia a dia, dos objectos e das experiências”. Todos somos potencialmente artistas, “não acho que a arte seja pertença de alguns iluminados. Todos temos potencial para criar qualquer coisa, a predisposição para criar é que já é diferente. Nem toda a gente está disposta a olhar para ver, a pensar para depois transformar”. A arte “é um processo de transformação que deverá trazer algo de novo ou pelo menos deverá fazer olhar de novo para as coisas”. A arte tem um papel, o “de nos fazer parar e pensar” e deve ter um propósito social, “enriquecer o modo como as pessoas se relacionam com o mundo”.

Paula Ferro





quarta-feira, 13 de maio de 2009

Entrevista com Pedro Cabrita Reis




in ".S"


- Revista de Artes - Suplemento Mensal do Semanário


"Postal do Algarve"
( Fevereiro de 2009)






Cabrita Reis
autenticidade materializada










Cabrita Reis nasceu em Lisboa mas escolheu o interior da serra algarvia para construir a sua casa. Gosta da luz do sul porque possui um imenso “rigor mental”. Conta com o reconhecimento internacional dentro da arte contemporânea. Considera-se um pintor mas a sua obra tornou-se crucial para o entendimento da escultura.
Mantém-se em diálogo com as grandes tradições da história da arte moderna. Encontra nelas terreno fértil onde planta a sua imensa capacidade de se deixar impressionar por momentos simples mas únicos da realidade que depois de integrados faz acontecer em Obra.
Homem e artista aliançam-se numa amálgama compacta de vida que se busca e se expressa. Possui uma personalidade saliente que alberga um luzir constante. A sua presença sente-se. Quando entra, o olhar antecede-o e marca território no primeiro instante.
Para quem só o conhece do outro lado das coisas, ele intimida.

Como artista revelo-me em tudo aquilo que faço e na maneira como sou.

- O que é que leva uma pessoa a optar pelo caminho das artes plásticas e depois a manter-se nele? Perguntei. É por ser uma profissão como outra qualquer ou é algo mais visceral?
- Só posso responder por mim.
A sua voz é palpável e enche o lugar.
- Desde que me conheço sempre quis ser pintor e sempre o fui. Nunca tive qualquer dúvida ou hesitação. Nunca se me pôs a questão da dúvida sequer.
Há firmeza, ritmo, cadência, na projecção das palavras.
- As dúvidas que eventualmente pudesse ter tido, tenho e terei, prendem-se com as minhas interrogações sobre o trabalho, nunca sobre a minha vida, ou sobre aquilo que nem sequer escolhi fazer, fiz sempre.
Fica suspenso por um momento.
- Nunca me interroguei sobre a justeza desse modo de estar na vida.
Há uma frontalidade intensa no olhar. A sua presença instala-se como autenticidade materializada.
- Considera-se um pintor…
Deixa escapar uma pequena impaciência. As palavras saem-lhe a trote.
- Considero-me um pintor e sou um pintor e é coisa que faço sempre. Posso, de vez em quando, fazer ou não fazer esculturas, ou outras coisas…
- Era isso que queria dizer, como é que fazendo escultura…
- Não vejo as coisas tão diferentes umas das outras. Devo-lhe dizer que por mais de uma vez essa questão me foi colocada.
Uma macieza recente roça a tonalidade da voz que de repente volta a ficar firme e segura.
- Volto àquilo que sempre disse. Eu, de facto, sou um artista, com a carga e o peso que isso tem. Como é que me revelo como artista? Revelo-me em tudo aquilo que faço e na maneira como sou. Não creio que haja uma forma linear de determinar uma evolução causal no processo. Não faço desenhos para depois fazer pinturas, para depois olhar para elas e fazer esculturas. Provavelmente a pintura ainda não está seca e já estou a pregar as tábuas uma na outra e entretanto olho para o lado e vejo que não tenho pregos e já passa da hora para os ir comprar, e porque não posso continuar a fazer a escultura que estou a fazer, faço uns desenhos, enquanto a pintura está a secar. Não há um edifício causal em que umas coisas levam às outras num processo de evolução. O que há é um todo que é o eu, é o ser, é nome, é o olhar sobre o mundo, e esse todo vai-se reconhecendo a si próprio, vai-se materializando, existe, vai-se satisfazendo, fazendo o que lhe dá na gana. E eu sou assim.
Quando a comunicação se começa a estabelecer, há uma confiança que nasce no ar e o tempo começa a escorregar, balançado pelo sopro da sintonia.
- Há uma altura em que inclui lixo nas suas obras.
- Incluo tudo o que me interessa, tanto faz. Posso incluir um bocado desta conversa, ou uma imagem que tenha visto por acaso, fortuitamente. Posso dizer, por exemplo, que a imagem mais forte que hoje guardei na memória foi um gato entalado entre uma janela e uma grade. Entalado na transparência do vidro. Gostei de ver. Agora faz parte do meu caderno de apontamentos mental tal como um bocado de um lixo qualquer, ou algo que veja e mais tarde me dá informação para um trabalho.
- Para si a arte não tem limites.
- Creio que para ninguém.
Um sorriso marca o instante e um princípio de cumplicidade amanhece.
- Não imagino como poderia ter limites. Teria limites se tivesse uma determinação de funções e uma determinação de usos. Nem uma coisa nem outra se podem aplicar ao entendimento ou ao exercício da arte. A arte é, digamos, uma das características da espécie.
- Mas acha que a arte serve para alguma coisa?
Sorri.
- Não. Essa é que é a sua grande vantagem. Justamente.
A qualidade absolutamente extraordinária deste exercício que só nós inventámos é a sua absoluta inutilidade. Não serve para garantir nenhuma das funções da sobrevivência humana e contudo é específico da nossa espécie. Quer dizer que evoluímos ao ponto de fazermos uma coisa que não serve para nada. Mais ainda, evoluímos ao ponto de deixar que alguns de nós, da comunidade, possam fazer uma coisa que não serve para nada e que é, à posteriori, muito útil para todos, por muitas razões.
Deixa o tempo exacto para que as suas afirmações se aconcheguem no interior do outro. E continua:
- É, de facto, uma actividade que não tem qualquer utilidade, entendida esta à luz de um discurso de necessidades imediatas, por hipótese. E é isso que a torna tão escorregadia, tão fugidia, tão incapaz de poder ser massificada e inclusive de ser utilizada. Não é que tenham faltado ocasiões ou pessoas que a tenham querido utilizar por razões políticas, mas curiosamente, o resultado ou produto desses momentos é sempre o primeiro a ser descartado e mandado para o lixo porque não tem, jamais atinge, a qualidade ou a importância da arte que não é vista por esse lado funcional. Todas as fases da história da arte que foram ilustração propagandística deste ou daquele momento, desta ou daquela circunstância histórica e fugaz, acabam por ser deitadas para o caixote do lixo pela própria história. Neo-realismo, o Realismo Socialista, etc...
Uma curta pausa culmina em novo arranque sem espaço para questões.
- É evidente que a arte não está desligada das contradições sociais e da história. O Barroco não podia ter aparecido na altura do Neoclássico e a Arte Flamenga não podia ter aparecido na altura da Renascença, o Impressionismo só podia ter aparecido depois das primeiras descobertas ópticas e o Cubismo só aparece com a psicanálise. As coisas só aparecem no tempo em que podem aparecer. Daí inferimos, sem grande dor ou sofrimento, ou sem grande exercício mental, que a arte tem sempre um pé na história e um pé no futuro, na utopia, na visualização daquilo que há-de ser. Por isso é que a arte é importante, por ser aquela espécie de capacidade de poder configurar aquilo que nós viremos a ser. Curiosamente só se percebe isso depois.
As pessoas que cumprem na sociedade a função inútil de ser artistas, são pessoas que configuram modelos de relação, olhares sobre o mundo. Essas coisas não são importantes ou claras no momento em que se fazem, mas são, à posteriori, ferramentas para se perceber o tempo.
A arte tem algumas vantagens em relação a outras actividades humanas, ela é uma ferramenta do mundo, dizem que menos objectiva que a ciência, mas seguramente mais rica no modo como pode permitir ao ser humano imaginar-se como um todo. Posso perceber o que é que se passa com as células estaminais, posso considerar importante a questão da difusão da luz ou física quântica, contudo nada disto, em si mesmo, me dá uma noção absoluta de mim próprio e do mundo. São coisas parcelares, seguramente muito importantes para a luta contra o cancro mas absolutamente inúteis quanto ao entendimento da espécie. A arte tem essa capacidade, imagino eu. Se me perguntar como é que tenho a noção de como é que nós fomos e do que eventualmente poderemos vir a ser, seguramente temos muito mais margem para perceber isso analisando as pinturas, lendo os livros e escutando as musicas que foram construídas, do que analisando os decretos-lei, as decisões dos reis, ou as tricas da Igreja, meras questões parcelares. Há um conhecimento absoluto, radicado na posição artística, não verificável em qualquer outra manifestação da espécie.

A procura da beleza é a procura de uma coisa impossível que é sarar uma ferida, uma ruptura entre a expulsão do paraíso e a tentativa de retornar a ele.

Aproveito um silêncio e pergunto:
- E qual é o lugar da ética? Estética e ética. Há relação, não há relação?
- Não creio que haja uma relação intestinal entre ambas . A ética de um artista prende-se exclusivamente com a natureza do trabalho que faz. A ética é uma construção de um comportamento ou de uma atitude que apenas se prende com o modo ou a forma como esse artista pretende projectar uma imagem de si próprio sobre o mundo. Não pode ser um juízo valorativo ou um código determinador de comportamentos, não há, não pode haver.
- Nem chamadas de atenção…
- Não, de todo, de forma alguma. Não!
- É apenas a expressão de si próprio?
- Só pode ser assim e depois a sociedade digerirá ou interessar-se-á por isso, se a coisa for oportuna e se de facto tiver algum peso.
Posso-lhe perguntar: qual é a ética da escola de Barbizon? Aqueles pintores que pintavam umas ovelhas no campo, umas nuvens e uns pôr-do-sol. Aparentemente nenhuma. Não vem daí nenhum princípio normativo para regulamentação do comportamento humano. Contudo são o sintoma de uma coisa muito importante que é uma espécie de um momento pré moderno, e quando a saída do atelier para o exterior vem prefigurar uma mudança de paradigmas nos interesses dos artistas, que até essa data integravam sobretudo um universo muito ligado à mitologia, ou à religião, ou ao elogio heróico da sociedade política, dos reis. Libertos no campo com telas, pincéis e cavaletes, no fundo, os artistas preparam-se para se desviar das regras políticas que os tornavam meros ilustradores do status quo. Descobrem a individualidade e, passam a descobrir que a vida real, aqui simbolizada pela observação e representação da natureza, é suficiente manancial para reflexão e exercício da arte. Propõem-se, ao sair para a natureza, sem que o saibam ainda, fazer uma mudança radical que é subtrair a acção do artista à estrutura histórica de ligação a uma posição que, esteticamente, seria a validação permanente dos sistemas de valor políticos a que estavam ligados. Com a saída para fora do atelier, para fora do palácio ou da Igreja, cria-se uma ética nova.
Em arte, não creio que se olhe para a ética esperando que esta tenha uma função. Não se espera sequer que tenha uma função. O artista não está obrigado a salvar nada ou ninguém através da importância da sua arte. Tê-lo-á, ou não. A sociedade é que determina se a ética que o artista tem lhe interessa ou não. A estética faz parte da Filosofia. O problema da estética é o problema clássico da procura do Belo. É, e será sempre. O Belo é uma coisa muito simples, é a questão da harmonia, do equilíbrio. A procura da beleza é a procura dessa coisa impossível que é sarar a ferida, uma ruptura entre a expulsão do paraíso e a tentativa de retornar a ele. Uma necessidade, em absoluto, de encontrar a verdade. A beleza é uma espécie de harmonia última, é o lugar onde não há mal, onde não há morte, é o lugar da eternidade. Nesse aspecto interessa-me. A estética interessa-me seguramente mais do que a ética. A estética é uma permanente escavação num campo onde se julga que está um tesouro escondido. Esse tesouro seria a unidade absoluta entre o autor e a sua obra, entre as pessoas umas com as outras, era o lugar da perfeição, inatingível é evidente, por isso é que ainda continua o debate, e continuará sempre.
- Quando cria uma peça preocupa-se com a harmonia?
- É evidente que uma obra só estará acabada quando se sente que ela tem uma espécie de equilíbrio próprio, de vida própria, sabemos que ela não tem falhas, não há falta de balanço em todas as suas partes, é como se lhe reconhecêssemos uma capacidade de autonomia. Não sei como posso explicar isto melhor. É uma coisa que se sente, não é uma coisa que se possa explicar. É tal como quando faço uma obra. Sei que está acabada de uma forma que não tem a ver com a inteligência tal como a conhecemos. Não é um discurso racional ou lógico, é mais, quase um bem-estar físico oriundo ou fruto da sensação, assim: “Ah! Está feito!”
Uma expressão elevada e fresca sai em talhe de sorriso.
- E o corpo sabe isso de uma forma diferente da cabeça, sabe-o provavelmente com maior antecipação e talvez até com mais clareza do que a própria cabeça. A cabeça virá depois e analisará, lembrando-se, até, de como o seu corpo reagiu quando percebeu que a coisa já estava acabada.
- A cabeça já faz parte do corpo.
- Sim, mas tem tendência, o que não é desinteressante, para ter uma espécie de pensamento próprio. O corpo pensa de uma maneira, a cabeça pensa de outra, e isso é produtivo, é bom!
Acontece um silêncio. Pedro lembra-se do charuto que mantém na mão desde que chegou e leva-o à boca.
- Nas suas leituras tem preferência por poesia.
- É verdade. A poesia tem aquela coisa particular, de ter uma forma condensada, depurada, de linguagem. É uma forma quase perfeita.
- Na sua obra existe poesia?
- Na minha obra!?
Pendura um olhar no espaço e continua:
- Se entendermos a poesia como uma forma exaurida de utilizar a palavra no sentido de a tornar pura, é evidente que sim, eu gostaria de ter isso na minha obra. Gostaria de ter a capacidade de atingir essa pureza, essa lucidez, essa justeza, esse rigor mental.
A poesia é isso em relação à linguagem. O meu esforço maior é nesse sentido, é no sentido de que aquilo que faço transporte consigo essa inevitável certeza, percebe?
E a mão direita, porque a outra mantém o charuto hasteado, interrompe por instantes a sua dança constante que amplia o semblante ao pensamento.
- Tudo o que é a mais não existe, o gesto deve ser reduzido ao mínimo. Por muito confusa que possa ser, a contribuição das coisas todas deve ser pensada e feita de tal modo que não restem quaisquer duvidas. Não há nada a mais. Pode ser um caos, pode ser cheio de muitas coisas, mas contudo, o corpo da obra, por muito complexa que seja formalmente, deve ser perfeito, não deve ser fechado, não deve ter falhas, não deve ter interrogações ou dúvidas.
Pequena pausa. O corpo gira sobre si próprio e o olhar, virado para dentro, expressa uma fidalga divagação.
- Isso acontece uma vez em cada cinquenta anos. Mas não custa nada tentar.
Sorri, e o luzir interior anima-se.
O à vontade está estabelecido e a conversa flúi com a serenidade das águas que correm para a amplitude.

Não se tem outra coisa, como artista e como pessoa, que não seja o desejo absoluto, único e último de se ser tudo ao mesmo tempo.

- Este Verão fez uma exposição no Palácio da Galeria em Tavira com obras que pertencem a colecções privadas e agora uma exposição de trabalhos recentes na Galeria Trem em Faro. Há alguma marca na sua carreira que pretenda anunciar?
Sorri como se já esperasse uma pergunta assim. Movimenta-se no banco, dá uma fumaça no charuto e embala:
- Não, não há nada, é uma coisa muito simples. A exposição de Faro estava prevista antes da de Tavira. O Manuel Baptista, grande amigo, pessoa que admiro muito e um belíssimo pintor que já conheço há muitos e muitos anos, voltou a perguntar-me se, neste novo momento dele na direcção da Trem, eu quereria fazer qualquer coisa. Disse-lhe que sim. As exposições tinham uma natureza e uma dimensão diferentes. Pensei que não era bom para ninguém se as exposições fossem excessivamente próximas no tempo.
- Tem alguma coisa a dizer relativamente a estas duas exposições?
Volta a sorrir e dispara:
- Tenho a dizer que ambas me deram grande prazer e que alem disso ficaram muito boas. Tavira, o mérito de mostrar que existem coleccionadores, em Portugal, acompanhando o trajecto dos artistas e fazendo essa coisa extraordinária que é gastar dinheiro numa coisa que não serve para nada.
Pareceu-me interessante, mostrar um conjunto de obras que além de desvendarem o tempo de um percurso, revelam, por pertencerem todas a colecções privadas, que há pessoas que compram arte. Isso é muito importante. Essas pessoas, provavelmente não tendo disso uma consciência muito presente, também constroem de alguma maneira e, a seu modo, a história. São guardiães se assim o quiser, guardiães de ideias, guardiães de tesouros para os que hão-de vir depois. Ora bem, isso é importante mostrar. Acho que essas coisas têm que ser realçadas, daí que tenha ocorrido fazer a exposição e chamar-lhe “Colecções Privadas”. Fi-la apenas com obras que vieram de colecções privadas portuguesas, e isso, de alguma forma, permitiu-me trazer a Tavira um percurso transversal ao longo dos vinte e tal anos de trabalho que fui fazendo.
A de Faro é unicamente obra do atelier, trabalho recente, com dois, três anos no máximo. Contudo, encontra-se com a de Tavira no sentido em que pretende trazer às pessoas a diversidade de linhas de acção e de pensamento que se têm revelado no meu trabalho nestes últimos anos. Tavira informava sobre o meu passado mais longínquo, esta informa sobre questões mais recentes.
- O catálogo do Palácio da Galeria…
- O catálogo é um objecto muito, muito bonito, tem sido muito admirado e não há razões para menos.
- No catálogo diz que “não há obra de arte alguma que não seja ela própria uma substituição do mundo por inteiro.” Isto é ânsia, volúpia, intensidade?
- Em cada pintura, ou desenho, em cada risco simples num papel, está o seu autor e por inerência, quase poderia dizer também o mundo por inteiro. Num risco, nesse risco, está tudo aquilo que se precisa de fazer. Não se escolhe qual a parte de si mesmo que faz aquele risco.
O olhar apontado e os gestos acesos em movimento reforçam os contornos do sentido.
- Pega-se num lápis e faz-se assim no papel, (faz o gesto de desenhar), e ao fazer-se isto não se está a escolher de dois em dois centímetros qual é a parte da nossa vida que se está a pôr ali. Uma coisa que é verdade é que esse risco transporta tudo aquilo que se é. Ora, cada um só é o mundo inteiro, porque não se tem outra coisa, como artista e como pessoa, que não seja o desejo absoluto, único e último de ser tudo ao mesmo tempo, porque é a única maneira de desprezar a morte. Cada traço, por mais simples que seja, é o mundo inteiro. É isso que essa frase queria dizer.
Desde o momento em que se começa qualquer coisa de novo, volta-se a querer continuar… a querer continuar a não morrer.
- E isto é uma atitude do homem ou só dos artistas?
- Não creio que haja diferença. Cada um de nos fará à sua maneira e como souber, riscos sobre o papel.
Pára uns instantes. Fico suspensa no saborear as suas palavras. A sua energia sugere uma estrutura sólida, terrena, que contém no seu interior um rio galopante, imparável, transportando imagens, ideias, emoções várias, que vêm ao de cima com precisão e consonância.
- Na sua “Autopsicografia” Pessoa define o poeta como um actor do seu próprio sentir. E o pintor? O Pedro é actor quando cria?
- Acho que não há gesto humano, por mais simples que seja, que não carregue consigo essa qualidade que Pessoa descreve nessa poesia. Toda a vida é uma mediação do mundo. Nas coisas mais simples, desde lavar os dentes até seja o que for. E todo o caos, o rio infindável de gestos humanos entendidos seja individualmente, seja socialmente, são mediações do mundo, são coisas que têm como única função criar uma hipotética verosimilhança para justificar porque é que se existe, porque é que se está aqui. Se entendermos que existe na actuação, ou no ser actor, essa espécie de deslocação para criar uma projecção de comportamentos que, sendo abstracta, seja de algum modo simbólica, trazendo consigo alguma coisa mais do que simplesmente o gesto que se vê, acho que essa qualidade residirá, afinal, em tudo o que fazemos e portanto não posso estar fora disso. Não, não estou fora disso.


Paula Ferro