segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Jornalismo - Entrevista com o Bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto

in Postal do Algarve em Maio e Junho de 2008

Textos e fotos de Paula Ferro


António Marinho e Pinto é um “advogado de província” que durante o curso trabalhou nas cantinas da Associação Académica, foi professor do ensino secundário e jornalista.
Exerce Advocacia desde 1987. Leccionou na Escola Superior de Educação de Coimbra, Universidade de Aveiro e Universidade de Coimbra. Foi director, no Funchal e em Coimbra, da antiga ANOP – Agencia Noticiosa Portuguesa, bem como da LUSA em Coimbra. Foi membro do Conselho Geral da Ordem dos Advogados e presidente da Comissão de Direitos Humanos nos anos de 2002 e 2003. Em 2008 foi eleito Bastonário da Ordem dos Advogados com uma votação considerada a maior de sempre na história da instituição e a maior vantagem alguma vez obtida por um vencedor sobre os adversários. Uma personalidade frontal e aguerrida que quer colocar ordem na justiça e na sociedade portuguesa.
O POSTAL DO ALGARVE teve oportunidade de o entrevistar aquando da tomada de posse da Presidente da Delegação de Tavira, Maria Emília Morais Carneiro. Por se tratar de uma personalidade pública de importância nacional cuja atenção se dirige para a província e para os problemas dos pequenos centros e ao mesmo tempo por se tratar de uma personalidade que gera controvérsias, a entrevista tornou-se longa. Foi dividida em três partes e será apresentada nos próximos três números.

Entrevista:

“Leis inúteis enfraquecem as leis necessárias.”
Montesquieu

Bastonário afirma que a justiça para os pobres é severa e para os ricos é de “látex”.

As pessoas que administram a justiça não prestam contas a ninguém.

Valorizei sempre muito as delegações.








António Marinho e Pinto, “advogado de província” licenciado pela Universidade de Coimbra, durante o curso trabalhou nas cantinas da Associação Académica, foi professor do ensino secundário e jornalista. Exerce Advocacia desde 1987. Leccionou na Escola Superior de Educação de Coimbra, Universidade de Aveiro e Universidade de Coimbra. Foi membro do Conselho Geral da Ordem dos Advogados e presidente da Comissão de Direitos Humanos nos anos de 2002 e 2003. Em 2008 foi eleito Bastonário da Ordem dos Advogados com uma votação considerada a maior de sempre na história da instituição e a maior vantagem alguma vez obtida por um vencedor sobre os adversários.

Nunca um Bastonário da Ordem dos Advogados se deslocou de Lisboa para dar posse aos delegados de comarca. Neste momento está em Tavira e preside à tomada de posse da Presidente da delegação de Tavira. Qual a razão?
É a importância que eu dou às delegações. Acho que estas são as células vivas deste organismo imenso e complexo que é a Ordem dos os Advogados. Valorizar as delegações da OA é valorizar a advocacia, a justiça - a administração da justiça. Os problemas da justiça e da advocacia vivem-se de uma forma mais genuína, mais autêntica e mais intensa devido à proximidade entre as delegações de comarca e os tribunais, devido à comunhão entre as delegações de comarca e os respectivos tribunais de comarca. Por isso, no meu programa de candidatura valorizei sempre muito as delegações e daí a razão por que estou aqui para presidir à cerimónia de tomada de posse da colega, Dra. Emília Carneiro.
Ganhou com uma margem muito grande
Foi a maior vitória de sempre.
A que se deve isso?
Não seguramente aos meus méritos. Deve-se ao estado grave em que se encontra a justiça e a advocacia. Deve-se a um sentimento muito profundo da necessidade de mudar, de reformar a justiça, de reformar a Ordem dos Advogados e de dignificar a advocacia. Esse sentimento, creio eu, levou os advogados a votar massivamente, mais do que na minha pessoa, no meu programa.

É preciso criar uma cultura de responsabilidade nos tribunais

Tem chamado a atenção para o novo Mapa judiciário na medida em que este pode conduzir a que a justiça se faça pelas próprias mãos, porquê?
“Não é tanto o mapa judiciário. O mapa judiciário poderá ter aspectos negativos e outros positivos, mas neste momento ainda é muito cedo para podermos formular juízos consistentes sobre isso porque ainda não entrou em funcionamento. Só estão previstas três comarcas piloto para entrar em funcionamento em Setembro próximo, que são as comarcas do Alentejo Litoral, da Grande Lisboa Noroeste e do Baixo Vouga. Depois de entrar em vigor, depois de se ver como funciona, poderemos construir opiniões consistentes sobre as vantagens e inconvenientes do modelo proposto. Estou contra é que se aproveite este mecanismo do mapa judiciário e até a necessidade de uma reforma do actual mapa judiciário para prosseguir e intensificar o processo de desjudicialização da justiça.
A justiça precisa de reformas mas para ser administrada nos tribunais não para ser administrada fora deles, em conservatórias, cartórios notariais, em centros de mediação ou nos chamados julgados de paz. Isso são formas ilusórias e perigosas de administrar a justiça. A justiça é para ser administrada nos tribunais por magistrados independentes e com advogados independentes. Fora dos tribunais a justiça conduz sempre a muito maus resultados, sai muito cara quando se quer poupar naquilo que se gasta em tribunal. Só os tribunais dão garantias de que a justiça é bem administrada através da imparcialidade, através do respeito pelos princípios que regem os processos judiciais como o princípio do contraditório e o da imediação. Nos outros locais não existe essa possibilidade.
Neste momento há muitas pessoas presas por fazer justiça pelas suas próprias mãos porque os tribunais não têm dado resposta aos pedidos de justiça. Os tribunais não querem resolver certos litígios ou porque os magistrados se consideram demasiado importantes para se preocupar ou se deter com essas «bagatelas» da vida social ou porque os tribunais não têm capacidade para responder atempadamente às necessidades da justiça; isso leva a que as pessoas procurem fazer justiça pelas próprias mãos. Isso é perigoso e representa um retrocesso civilizacional. O que marca a passagem da barbárie para a civilização na História da Humanidade é justamente o momento em que o estado chamou a si o monopólio da administração da justiça. Se o estado se demite de fazer justiça, se a entrega a privados, se entrega a organismos que não estão preparados nem vocacionados para tal, isso só vai levar a uma situação perigosa, muito grave e prejudicial para a paz social ou seja, vai levar a que os mais fortes façam a justiça pelas próprias mãos, ou seja, pela força.




A que se deve a morosidade dos processos? Falta de profissionais? O que é que corre mal?
Portugal é dos países que tem mais magistrados por habitante, mais procuradores por habitante, mais funcionários e mais tribunais.
Porque corre mal? Há muitas causas para esta situação. A justiça é lenta porque há muita pendência ou há muita pendência porque a justiça é lenta? Há muitas coisas que funcionam mal, as pessoas que administram a justiça não prestam contas a ninguém, são absolutamente independentes, são absolutamente irresponsáveis, são inamovíveis, são vitalícias. É preciso criar uma cultura de responsabilidade nos tribunais, é preciso que os magistrados progridam na carreira pelo mérito, e o mérito só se pode avaliar pela quantidade e qualidade das decisões proferidas. Uma pessoa que trabalha o triplo de outra tem que ser premiada por isso e hoje isso não acontece com os magistrados, infelizmente. É preciso que se criem novos mecanismos de progressão na carreira que apreciem a quantidade e a qualidade do trabalho produzido pelos magistrados e isso hoje não acontece infelizmente.
É preciso também formar mais e melhores magistrados. É urgente proceder a alterações profundas nos estatutos dos magistrados em ordem adaptá-los aos valores do estado de direito e às exigências da democracia. É preciso democratizar as magistraturas.

Criminalidade dos colarinhos brancos.
Existe uma expressão brasileira muito engraçada e que serve para caracterizar a situação. Diz assim: “Dura lex sed látex” porque para uns a lei é dura, para outros é látex, ou seja, estica ou encolhe muito à medida das conveniências e dos interesses de certas categorias de pessoas. Há de facto em Portugal duas justiças: uma justiça para ricos e poderosos e outra justiça para os pobres e humildes. A justiça para os pobres é severa, rude e impiedosa – é a «dura lex» - enquanto a justiça para os ricos e para os poderosos é uma justiça suave, lenta, obsequiosa – é o «látex». Daí que as prisões estejam cheias de pobres, de pessoas sem meios muitas vezes para pagar as suas próprias defesas. E isto é muito grave porque reflecte uma situação de injustiça social inadmissível num estado de direito. A justiça não pode ser denegada em nenhuma circunstância; o estado tem o dever de garantir sempre a justiça para quem dela precise. Não uma justiça formalmente igualitária mas sim uma justiça materialmente equitativa. As pessoas não podem ser privadas de justiça em nenhuma circunstância; sobretudo não podem ser privadas da justiça por falta de meios económicos para aceder a ela.





“É pior cometer uma injustiça do que sofrê-la, porque quem a comete transforma-se num injusto e quem a sofre não”.
Sócrates(470 a.C - 399 a.C)

Marinho e Pinto afirma que quem faz leis no Parlamento não pode ter clientes privados.

A única lei que se respeita em muitos tribunais portugueses é a vontade dos magistrados.

É preciso modernizar a justiça e democratizá-la.


António Marinho e Pinto um “advogado de província” que foi membro do Conselho Geral da Ordem dos Advogados e presidente da Comissão de Direitos Humanos nos anos de 2002 e 2003. Em 2008 foi eleito Bastonário da Ordem dos Advogados com uma votação considerada a maior de sempre na história da instituição e a maior vantagem alguma vez obtida por um vencedor sobre os adversários.

O que existe de errado com a lei da amnistia e perdão de 99?
As leis da amnistia reflectem muito o peso dos advogados deputados no Parlamento. Há aspectos, em muitos actos legislativos, que não são devidamente clarificados. Nunca soube por que é que aquela lei de perdão de penas e de amnistia de 1999 perdoou um ano de prisão aos condenados por crimes de abuso sexual de crianças. Nunca compreendi porque isso não foi discutido no Parlamento. Gostava de saber qual foi o fundamento político ou jurídico para aquela opção normativa do Parlamento. Legisla-se com muita opacidade em Portugal. Não são só os tribunais que funcionam sem transparência, é também a actividade legislativa. De repente aparecem umas leis que a gente não sabe como, porque ninguém assume, sequer, a sua paternidade. No último código penal houve também uma alteração, aliás inócua no meu entender, mas que serviu para muita gente perguntar quem é que a fez, e ninguém se assume como tendo a paternidade dessa alteração legislativa que é a do artigo 30º do Código Penal. É preciso que o legislador seja mais transparente, que as coisas sejam discutidas no plenário da Assembleia da Republica, em público, para se saber quais são os fundamentos (políticos e normativos) de todas as leis.

Por isso não concorda que um advogado possa ser deputado ao mesmo tempo?Claro. Quem faz leis no Parlamento não pode ter ao mesmo tempo clientes privados eventualmente interessados nessas leis. Isto é da mais elementar evidência. Quando um advogado quer ser deputado deve suspender a advocacia, como acontece quando vai para o governo ou para presidente de uma câmara municipal, por exemplo. Um advogado deputado tem, seguramente, clientes que não teria se fosse só advogado e isso distorce as regras da são concorrência entre colegas.

Todo este estado de coisas pode ter um perfil que nos remete por exemplo para os tribunais plenários. Sabe-se quem foram os magistrados dos tribunais plenários que julgaram os presos políticos antes do 25 de Abril?
Não interessa saber os nomes. Provavelmente esses magistrados já cá não andarão porque já passou demasiado tempo, mas, infelizmente, a cultura desses tribunais continua generalizada. Hoje, muitos dos tribunais portugueses funcionam como funcionavam antigamente os tribunais plenários, segundo a lei do posso, quero e mando, sem respeito pela lei e pelos direitos das pessoas, incluindo pelas prerrogativas funcionais dos advogados. A única lei que se respeita em muitos tribunais portugueses é a vontade dos magistrados e não as leis da República. Há hoje uma cultura de desrespeito pelos direitos dos cidadãos e pelas imunidades funcionais dos advogados. Há uma deturpação, muitas das vezes da própria lei em benefício de concepções e juízos prévios que certos magistrados têm sobre os casos a decidir e/ou sobre as pessoas envolvidas. Há uma promiscuidade funcional entre quem acusa e quem julga. Há uma cultura e um caldo muito favoráveis a posturas não democráticas e a decisões contrárias ao respeito devido à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais dos cidadãos. Repare: uma pessoa que vá a um tribunal tem de se dirigir a um magistrado com um súbdito, senão mesmo como um servo. Qualquer pessoa sentir-se-á, seguramente, mais à vontade a falar com o Presidente da República do que com um jovem juiz num tribunal.
A justiça é obsoleta. Se uma pessoa do tempo do tempo do Marquês de Pombal fosse transposta para o tempo actual cairia atordoada com as mudanças e o progresso verificados desde o século XVIII, ao nível das cidades, com os novos edifícios, os automóveis, os telemóveis, a rádio e a televisão, etc. Mas se fosse levada para uma sala de audiências de um tribunal sentir-se-ia completamente à vontade porque nada ou quase nada mudou desde então. É preciso modernizar a justiça e democratizá-la.

Os problemas de indisciplina escolar são para ser resolvidos pelos professores, pais e Ministério da Educação

Existe cada vez maior indisciplina nas escolas, maior criminalidade infantil. A que se deve isso? Acha que as novas fornadas vêm com defeito?
Não há crimes infantis, pela simples razão de que, face à lei, as crianças são inimputáveis em razão da idade. Só se pode cometer um crime quando se tem maturidade suficiente para poder decidir agir de outro modo. Por outro lado, os problemas da indisciplina escolar não devem ser confundidos nem sequer misturados com os problemas da criminalidade, mesmo que alguma tenha lugar nas escolas. Parece que há da parte do Ministério Público uma tendência para cavalgar ondas mediáticas. Os problemas de indisciplina escolar são para ser resolvidos pelos professores, pais, Ministério da Educação e não nos tribunais criminais. Qualquer dia, em vez de alunos teremos arguidos nas escolas e as matrículas são substituídas pelo termo de identidade e residência.

O que se deve fazer a um menor que transgrida a lei?
As crianças e os adolescentes com menos de dezasseis anos não podem cometer crimes. São inimputáveis em razão da idade. Não podem responder porque ainda não têm o desenvolvimento da personalidade suficiente para responder pelos seus actos.
Têm que ser reeducadas através das medidas tutelares de menores aplicadas pelos tribunais de menores. Essas medidas podem ir nalguns casos até ao internamento em estabelecimentos especiais vocacionados para a educação dessas crianças. Ainda não estão em idade de sofrer uma sanção criminal, porque ainda não têm o desenvolvimento da personalidade necessário para captar o sentido ressocializatório da pena, porque ainda não formaram convenientemente a sua personalidade e portanto estão ainda no processo educativo. No caso de comportamentos perigosos que ponham em causa valores relevantes da convivência social, deve ser interrompido o processo educativo normal e substituído por outro especial a ser conduzido por entidades devidamente preparadas, precisamente para a educação de menores problemáticos.

Parece que se anda a investigar o gene do criminoso e se pretende criar Bancos de ADN exactamente no sentido de detectar onde nascem os criminosos. Há um gene do criminoso?
Não, não há genes de criminosos. O crime deriva sempre de um gesto de autodeterminação da pessoa humana. Aliás, só se pode acusar uma pessoa da autoria de uma crime se no momento em que o praticou ela tinha liberdade para decidir não o fazer.
O que parece estar hoje em causa é a recuperação serôdia de certas doutrinas do século XIX que conduziram aos modelos totalitários do século XX. Isso é muito perigoso e essa cultura é absolutamente irracional e infundada do ponto de vista científico. Ninguém nasce criminoso.

O que é um criminoso?
É uma pessoa que não assume em toda a sua plenitude o papel e a responsabilidade que tem em viver numa sociedade composta por outros seres humanos. O criminoso é uma pessoa que agride consciente e deliberadamente valores fundamentais à convivência humana numa determinada comunidade, numa determinada sociedade.
Cada comunidade estabelece e hierarquiza determinados valores considerados essenciais à vivência comunitária, ou seja, fixa uma hierarquia de bens jurídicos considerados fundamentais à vivência harmoniosa dessa comunidade. Quem agredir de forma consciente e deliberada algum desses valores comete um crime, cuja gravidade varia consoante a posição do bem jurídico na respectiva hierarquia de valores. Por exemplo, para proteger o bem da vida humana o estado criou o crime de homicídio, ou seja, criou uma norma jurídica estabelecendo que quem matar outra pessoa será punido com uma pena de 8 a 16 anos de prisão (homicídio simples), mas deixando aos tribunais a possibilidade de fixar o tempo concreto de prisão com base no grau de culpa do homicida e tendo também em consideração todas as circunstâncias relevantes, agravantes e/ou atenuantes.






António Marinho jornalista e professor de jornalismo

“A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a escuta.”
Michel Eyquem de Montaigne



António Marinho afirma que o jornalismo no domínio deontológico está pior


Quem foi jornalista como eu fui, durante quase 30 anos, nunca deixará de o ser.


Confio em mim e nas pessoas em geral.



António Marinho e Pinto, o actual Bastonário da Ordem dos Advogados foi jornalista no “Expresso”, director no Funchal e em Coimbra da antiga ANOP – Agencia Noticiosa Portuguesa, bem como da LUSA em Coimbra. Leccionou jornalismo na Escola Superior de Educação de Coimbra, Universidade de Aveiro e Universidade de Coimbra.

É ou foi jornalista.
Sou jornalista. Quem foi jornalista como eu fui, durante quase 30 anos, nunca deixará de o ser. Eu fui jornalista na antiga ANOP – Agência Noticiosa Portuguesa; na LUSA e no EXPRESSO (quase 20 anos), além de, em meados dos anos 80, ter sido o fundador e director, durante mais de um ano, de um semanário intitulado A TRIBUNA DE COIMBRA.
Como jornalista e como advogado sempre respeitei a deontologia específica de cada actividade. Nunca misturei nem deixei que misturassem as coisas. Como jornalista, nunca escrevi uma linha que fosse sobre questões que pudessem interessar a um cliente meu. Como advogado nunca aceitei como cliente alguém sobre o qual já tivesse escrito alguma notícia ou feito alguma investigação jornalística.

O que é, para si, ser jornalista?
Um jornalista é uma testemunha privilegiada da realidade. É um profissional que investiga e relata factos com interesse público, subordinando essa actividade a regras e princípios deontológicos bastante rigorosos. A trilogia matricial do jornalismo é constituída, precisamente, pela Liberdade (só um profissional actuando em liberdade e com independência pode ser jornalista), pela Verdade (só os factos verdadeiros podem ser objecto de notícias – tudo o que se noticiar tem de ser verdade, mas nem tudo o que é verdade pode ser noticiado. Por isso é que a verdade constitui um limite interno ao direito de informar) e a Responsabilidade (só profissionais responsáveis – que respondem pelas suas acções e/ou omissões – podem ser jornalistas). Esses três pilares conduzem ao bem mais precioso do jornalismo e dos jornalistas que é a Credibilidade. Alguns dos mais graves problemas que afectam a informação em Portugal devem-se à circunstância de muitos jornalistas não agirem como testemunhas da realidade mas como juízes sempre dispostos a julgarem sumariamente os outros.

Os maus jornalistas obtêm por debaixo da mesa, sem nenhum esforço de investigação, informação para as suas manchetes

Foi durante 12 anos professor de jornalismo no ensino superior, nomeadamente na Universidade de Coimbra e na de Aveiro. O Jornalismo nas nossas Universidades é algo relativamente recente. Acha que melhorou? Em quê? Como?Nuns aspectos sim, mas noutros não. Nos aspectos técnicos, propriamente ditos, o jornalismo está hoje melhor do que estava há 20 ou 30 anos. A massificação do ensino e o desenvolvimento tecnológico propiciaram avanços assinaláveis na produção e divulgação de informação. Mas no domínio deontológico está pior. Há menos liberdade, há menos respeito pela verdade, há menos responsabilidade. Tudo isso conduziu a uma diminuição da credibilidade da informação. É preciso inverter o actual estado de coisas. É necessário diminuir o peso das agências de comunicação e imagem na produção da informação; é preciso diminuir a sua influência nos órgãos de comunicação social. É necessário reconstruir os antigos paradigmas da investigação jornalística autónoma e independente em vez daqueloutros que se limitam a estender o microfone ou a ouvir e a citar acriticamente as mesmas fontes (por vezes anonimamente). É preciso que os jornalistas confirmem sempre os factos relatados pelas fontes informativas por muito credíveis que eles e elas aparentem ser.
Infelizmente, hoje o que parece preocupar a maioria dos órgãos de informação não é a procura da verdade informativa mas sim a obtenção de boas histórias, de boas notícias. E para esses órgãos de informação quando uma história jornalística é boa pouco importa que seja verdadeira. Muitas vezes a sua grande preocupação desses órgãos de informação consiste justamente em evitar que a verdade estrague uma boa notícia.

Durante o seu discurso da tomada de posse da Presidente da delegação de Tavira foi muito crítico com atitudes de jornalistas. Porquê?
Pelo que disse supra e que está lapidarmente exemplificado na forma como foi noticiado por vários órgãos de informação um episódio envolvendo um Colega meu do Algarve. Esse Advogado tinha uma cliente estrangeira presa preventivamente em Portugal. Porque não tinha quaisquer familiares no nosso país, ela pediu ao seu advogado que lhe levasse alguns pertences pessoais que estavam em sua casa, a qual – sublinhe-se – tinha sido alvo de uma busca judicial efectuada pela PJ. Esses pertences foram entregues pelo senhorio da sua cliente ao meu colega sem que este se preocupasse em saber o que lá estava. Ao chegar à cadeia o meu colega entregou o saco aos guardas prisionais para serem analisados e entregues à reclusa. Entre os objectos havia medicamentos e entre estes parece que havia alguns comprimidos à base de anfetaminas e meia pastilha de ecstasy que, pelos vistos, a polícia não detectara durante a busca à sua residência. Pois bem, logo alguns órgãos de informação noticiaram que um advogado foi apanhado com droga a entrar na prisão. Isso é tentativa de assassínio profissional e de carácter. Se ele quisesse introduzir aqueles produtos na cadeia não os teria entregue aos guardas, mas antes tê-los-ia levado no bolso, onde ninguém os encontraria.
No mundo da justiça e dos tribunais há uma grande promiscuidade entre maus jornalistas e maus polícias e maus magistrados porque se servem inescrupulosamente uns dos outros. Os maus jornalistas obtêm por debaixo da mesa, sem nenhum esforço de investigação profissional, informação (normalmente em segredo de justiça) para as suas manchetes, pouco ou nada se importando que essa informação seja verdadeira ou falsa. Os maus polícias e os maus magistrados conseguem esconder a sua incompetência, já que são apresentados à opinião pública como autores de retumbantes sucessos investigatórios e, mais do que isso, conseguem criar artificialmente o alarme social tão necessário à aplicação de duras medidas de coacção ou de pesadas condenações.
Há muita manipulação na informação relativa à justiça e aos tribunais, devido também à falta de preparação dos jornalistas no domínio dos conhecimentos jurídicos. Se um jornalista não conhece bem as regras do processo penal como é que poderá noticiar com rigor a audiência de julgamento de um processo-crime, por exemplo. Acha que um jornalista que não conhece as regas do futebol – que, por exemplo, não seja capaz de distinguir uma pontapé de canto de um penalti - poderá noticiar correctamente um jogo de futebol? Este é um dos grandes problemas da informação sobre a justiça em Portugal. É urgente aumentar a preparação técnico-jurídica dos jornalistas, não só no aspecto processual (a fim de poderem compreender o que noticiam e serem mais rigorosos e menos disponíveis para a manipulação ou instrumentalização), mas também no campo do direito substantivo, propriamente dito (a fim de terem uma percepção mais sólida sobre os limites ao direito de informar). Este direito não é absoluto. Nalguns casos pode sobrepor-se a outros direitos, mas muitas vezes deve ceder. Ora, muitos jornalistas pensam que o direito de informar deve prevalecer sempre perante outros direitos sejam estes quais forem.

É possível melhorar este estado de coisas e se tal é possível, logo é obrigatório.

No seu discurso de abertura começa por dizer que a justiça atravessa a crise mais grave talvez de sempre, mas exprime sempre um sentimento de confiança e de esperança. Seguidamente expõe uma situação caótica e quase assustadora mas termina com uma mensagem de confiança e esperança. Confiar em quê, em quem?
Confiar na capacidade dos homens e dos agentes da justiça em superarem esta situação, em porem de lado os seus interesses pessoais ou de grupo em benefício dos interesses colectivos da boa administração da justiça.
Se não tivesse confiança, se não tivesse esperança, não me candidatava a Bastonário da Ordem dos Advogados.

Confia assim tanto no ser humano?
Confio, obviamente; confio em mim e nas pessoas em geral - nos advogados, nos magistrados, no povo português em nome de quem se administra a justiça. É possível melhorar este estado de coisas e se tal é possível, logo é obrigatório. É, desde logo, obrigatório, para todos nós, trabalhar para melhorar a administração da justiça, tornando-a mais rápida, mais preocupada com a resolução dos problemas dos cidadãos e da sociedade e menos voltada para si própria e para os seus agentes. A questão central é que se deve pôr sempre os interesses colectivos da boa administração da justiça acima dos interesses de grupo, dos interesses individuais, dos privilégios e das pequenas ou grandes vantagens corporativas. É preciso substituir a cultura de poder que se generalizou nos nossos tribunais por uma cultura de serviço público. Só assim se impedirá que os diversos interesses corporativos que se movem no interior do sistema judicial prevaleçam sobre o interesse público da boa administração da justiça.




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